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Marcelo Vieira 08/05/2016 22:16
    A Serra Fina Medida em Léguas

    A Serra Fina Medida em Léguas

    Travessia da Serra Fina reversa e em solitário, realizada entre os dias 17 e 19 de abril de 2016.

    Trekking Montanhismo

    Você sabe quanto mede uma légua? Eu também não sabia até semana passada, quando tive de consultar o oráculo pra dar uma resposta mais completa. A légua é uma unidade de medida da época do nosso império, tendo as variações marítima e terrestre (cada uma com comprimentos diferentes). Mas o interessante é a interpretação que ela teve no Brasil, principalmente no interior: é a distância que uma pessoa percorre caminhando dentro do período de uma hora, costumando variar de 2 a 7 km.

    Essa definição é genial em sua simplicidade - utilizar uma medida de tempo pra medir o espaço - sem referenciais definidos, sendo cada pessoa o seu próprio referencial.

    A Serra Fina sempre foi vista como troféu pela maioria dos trekkers, como uma graduação em trilhas de 'gente grande', como um item necessário no currículo de todo montanhista que se preze. Considerada pela mídia como a travessia mais difícil do Brasil, não é de se estranhar que seja assim.

    Após um mês e meio sofrendo com a Chickungunya, eu precisava de um tempo na montanha. Mas não queria esperar até o feriado, quando eu sabia que haveria uma multidão na montanha. Não me levem a mal aqueles que gostam de ir com a galera pra montanha, mas isso não tem nada a ver com montanhismo. Com a poluparização das atividades outdoor nas redes sociais, todos querem um selfie no cume da pedra da Mina, e eu queria evitar isso a todo custo.

    Aproveitando uma janela de bom tempo na semana anterior ao feriado da semana santa em abril, pedi a meu irmão que me levasse em sua moto até Itamonte, 3km após a garganta do Registro, onde eu comecei a caminhada.

    Vale aqui uma nota: a Serra Fina é muito mais difícil de ser atravessada ao contrário (Itamonte - Passa Quatro) que em seu sentido convencional. Como 99,999% dos caminhantes a atravessa no sentido convencional, a vegetação fica trançada neste sentido, ou seja, ela se abre nesse sentido. Ao ser feita ao contrário, a mesma vegetação trava o caminho, principalmente quando você está com uma cargueira, além de cortar/furar/bater nos olhos. Isso dificulta bastante a progressão na trilha.

    Duas horas após começar a caminhar, eu percebi a dimensão do que seria a travessia. Debilitado pela Chickungunya, tudo estava mais difícil. O problema não eram as dores articulares, mas sim um cansaço absurdo em qualquer subida. Por vezes eu baixava a cargueira no meio da trilha e deitava sobre ela, apagando por breves momentos. Tudo o que eu queria nesses momentos era montar logo o acampamento e rastejar pra dentro da barraca.

    Mas a beleza da montanha é que ela te ensina. Não adiantava lamentar pelo meu estado, eu precisava me adaptar à nova situação e sabia que a travessia sairia em 3 ou 4 dias, dependendo de como meu corpo se comportasse e do que a montanha permitisse.

    Às 16:00 armei acampanento no Alto dos Ivos. Ainda havia luz do dia para continuar a caminhada, mas eu simplesmente não tinha mais força pra continuar. Encontrei uma pequena proteção com pedras que dava pra exatamente uma barraca, com uma vista incrível do parna Itatiaia, e foi lá que fiquei a primeira noite.

    O segundo dia não foi diferente. Pela primeira vez eu tinha vontade de ficar mais tempo na barraca, e isso era novidade pra mim. Mas o dia seria longo, e eu tinha a pretenção de pernoitar no cume da pedra da Mina, só não sabia se chegaria até lá (pelo menos não naquele dia).

    O dia segue, e meu corpo vai se acostumando à sua nova condição. Como todos que já cruzaram a Serra Fina sabem, a água lá é uma questão delicada. Há poucos pontos de abastecimento, e você tem que carregar pelo menos 4 litros pra poder pernoitar e continuar no dia seguinte. Meu próximo ponto de abastecimento seria no rio Verde, ainda longe dali.

    Devagar vou seguindo, légua após légua vai se passando. Não encontrei com ninguém no primeiro dia, e não esperava encontrar com mais nenhum humano nos próximos dois ou três, até sair da montanha.

    Ao iniciar a descida para o vale do Ruah, vi o que pareciam ser duas pessoas no meio do capim elefante. A primeira impressão é que eu estaria alucinando, mas ao aproximar mais vi que realmente eram duas pessoas. Então pensei: quem em sã consciência estaria no meio da Serra Fina numa plena segunda feira? Como se estar fazendo a travessia no sentido contrário, em solitário e ainda relativamente doente fosse uma coisa normal... Bem, é perfeitamente normal, pelo menos dentro da minha cabeça.

    Chegamos praticamente juntos ao rio Verde, ponto de abastecimento no vale do Ruah. Conheci a Cris Alves, e depois seu parceiro, um montanhista que usava duas muletas no lugar de trekking poles, e um visual como o do Lemmy Kilmister, uma das lendas vivas do montanhismo e da escalada brasileiros - Bito Meyer.

    Nosso encontro foi breve, nos despedimos e cada um seguiu seu caminho. Às 16:00 cheguei à base da pedra da Mina, a 300m de desnível vertical de seu cume. Estava cansado, mas inspirado pelo encontro anterior e pela possibilidade de dormir no 4° ponto mais alto do Brasil, decidi tentar o cume ainda aquele dia.

    A subida foi dura, em alguns momentos pensei até em portear aos poucos até o cume (fala sério, uma mochila de 15kg???). Mas não foi necessário, e às 17 horas eu chagava ao cume da pedra da Mina.

    A noite foi tranquila, até mais quente que a noite anterior no Alto dos Ivos. Dormi pelado dentro do caso de dormir meio aberto, enquanto que minhas roupas de caminhada secavam.

    O dia amanheceu perfeito, demorei mais que gostaria para desmontar o acampamento, um cansaço incomum estava sempre presente. Légua após légua, continuava a seguir. A subida do Capim Amarelo foi dura, mas por volta das 13:30 cheguei em seu cume.

    Por volta das 15:00 estava no cume do Quartzito. Pensei em pernoitar por lá, ha um ponto de água um pouco difícil mas possível de ser coletada, mas ainda era muito cedo. Continuei a descida, parando na Toca do Lobo pra abastecer e segui para Passa Quatro, ainda uns 15 km distante.

    Já quase chegando na rodovia, consegui uma carona para os últimos 6km até a entrada de Passa Quatro. Eram as primeiras pessoas que eu via neste dia, já no final da tarde.

    Em Passa Quatro, fui muito bem recebido pela Doca no Hostel Harpia. Uma noite de sono e um café que não fosse feito por mim era tudo que eu precisava...

    Mas agora você pergunta: O que tudo isso tem a ver com légua, a unidade de medida citada no início do relato?

    Essa é a terceira vez que atravesso a Serra Fina, todas elas em solitário. A primeira vez ela media 12 léguas, pois a fiz em 12 horas. A segunda vez ela tinha 18 léguas, pois a fiz ao contrário depois de ter feito a Serra Negra no dia anterior, numa travessia de dois dias e 90 km de Maromba a Passa Quatro, que terminou por volta da meia noite. E dessa vez ela teve 60 léguas.

    Acho que daqui pra frente medirei tudo o que fizer na montanha em léguas. É uma medida extremamente pessoal, e exclui a possibilidade de comparação. E, ao final das contas, cada vez que se vai a montanha é única: nem o homem é o mesmo, e nunca é a mesma montanha...

    Marcelo Vieira

    Marcelo Vieira
    Marcelo Vieira

    Publicado em 08/05/2016 22:16

    Realizada de 17/04/2016 até 19/04/2016

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    8 Comentários
    Bruna Fávaro 09/05/2016 07:05

    Marcelo, o relato mais interessante e sensível que já li sobre a Serra Fina, parabéns!

    Marcelo Vieira 09/05/2016 07:30

    Obrigado, Bruna! A montanha sempre nos ensina, e às vezes eu tento dividir o que consigo aprender. Abraço!

    Renan Cavichi 10/05/2016 10:14

    Muito interessante essa referência as léguas Marcelo! Não sabia que no interior eles tinham essa definição, gostei! O pessoal de exatas da época não devia gostar muito :b ahaha!

    Renan Cavichi 10/05/2016 10:15

    Bateu a saudade da Serra Fina!

    Mascarenhas 10/05/2016 13:24

    bacana o relato Marcelo!

    Fabio Fliess 15/05/2016 09:04

    Muito bom Marcelo! Sempre acompanho suas "proezas", aventuras e treinos lá no Wikiloc. Mas aqui temos a vantagem de um texto mais completo! Parabéns! Abraços.

    Pedro Braga 05/08/2023 21:42

    Nossa!! Rapaz, você não é apenas montanhista, trilheiro ou coisa assim... é escritor!!!

    Marcelo Vieira 13/08/2023 16:37

    Pedro Braga obrigado, às vezes escrevo umas besteiras pra ler anos depois, rsrsrs... Abraço!

    Marcelo Vieira

    Marcelo Vieira

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