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Peter Tofte 05/03/2018 09:50
    A atração do abismo

    A atração do abismo

    Mergulho técnico a 125 metros na borda da plataforma continental, diante de Salvador/Bahia.

    Mergulho

    Nunca sentiram uma atração pelo abismo? Algo que atrai e assusta ao mesmo tempo? Isto também ocorre debaixo d'água, a vantagem é que você pode passar da borda do precipício e flutuar como se estivesse voando. O risco ali não é de queda!

    Já comentei num relato anterior que Salvador é uma das cidades litorâneas que está mais perto da borda da plataforma continental brasileira. Em alguns pontos esta borda fica em torno dos 100 metros de profundidade.

    O mergulho técnico profundo exige um bom planejamento. Antes de cair na água devemos eleger os gases que respiraremos, inclusive se numa contingência o equipamento principal (o rebreather) falhar e tivermos que abandonar o circuito fechado e pular para o circuito aberto (bailout).

    Usamos misturas ricas de hélio (trimix) para diminuir o percentual e o efeito do nitrogênio, que é narcótico em profundidades abaixo dos 30-40 metros. Abaixo dos 100 metros a margem para erros é mínima e devemos estar sóbrios para evitá-los.

    O László Mocsári me convidou para um mergulho na borda da plataforma. Após longo planejamento e briefings zarpamos da Bahia Marina na lancha Blue. Cada um de nós tinha 3 garrafas de bailout (cilindro de gás de reserva para emergência). Eu levava um Trimix 8/68, um 40/25 e Oxigênio puro. László levava Trimix 8/68, 20/45 e 40/25. Os primeiros dois dígitos representam o percentual de oxigênio na mistura, os dois seguintes são o percentual de hélio, o restante para completar 100% é nitrogênio. O ar que respiramos é aproximadamente 21% de oxigênio e 79% de nitrogênio. Mas o ar não pode ser usado abaixo dos 50 metros.

    Daniel Rastelli, mergulhador experiente, seria o safety diver deste mergulho. Após 40 minutos contados do início de nosso mergulho ele desceria até os 30 metros para verificar se estávamos bem, quando já estaríamos fazendo descompressão naquela profundidade.

    László preparando os rigs dos cilindros de bailout, observado por Rastelli.

    Farol da Barra no través. Deixando a Baía de Todos os Santos.

    Após hora e meia de navegação de Salvador, rumo a Morro de São Paulo, com mar tranquilo e água azulíssima, chegamos na borda da plataforma continental. A ecosonda mostrava uma queda abrupta de um platô a 100 m para 200 m ou mais. Um precipício submarino.

    Tivemos duas tentativas frustradas de ancoragem. A âncora caia no platô a 100 metros mas não unhava e a correnteza empurrava o barco para além do platô e ali a âncora ficava pendurada a meia água, no abismo. Só na terceira tentativa a âncora conseguiu agarrar em algo.

    Nos equipamos fazendo o último check pré dive e caímos na água, onde cada um clipou três cilindros de bailout. A correnteza estava tão forte que László criou um cabo de segurança com engate rápido caso contrário a corrente levava para Morro de São Paulo. Com sorte após 2 ou 3 dias eu chegava na 2ª praia daquele paraíso e ia direto para uma barraca pedir uma cerveja! Os pernambucanos chamam esta correnteza forte de carrera d'água e com razão.

    Para vencer a correnteza e ir da popa até o cabo da âncora na proa foi um bom exercício aeróbico. Aos 6 metros de profundidade após recuperar o fôlego, fizemos uma checagem de bolhas (verificação de vazamentos no sistema) e após trocarmos OK iniciamos a descida.

    Não adiantava bater nadadeira. Até os 70 metros de profundidade a correnteza era forte e usávamos os braços para descer puxando o cabo da âncora. Um alpinismo ao contrário!

    Chegamos no fundo aos 110 metros. Notamos que a âncora por sorte se agarrou numa reentrância de rocha e unhou. Mais um pouco teria ficado pendurada como um pêndulo, novamente, sobre o abismo. Abaixo, 10 ou 15 metros mais fundo, víamos a beira do precipício. A rocha era calcária, resquício de um recife de coral afogado, após a última era glacial, num período entre 15 e 30 mil anos atrás, quando o mar estava entre 100 a 120 m mais baixo em relação ao nível atual. Um cenário diferente, que poucos seres humanos já viram presencialmente.

    Amarrei o cabo da carretilha ao cabo da âncora. Estava um breu e não queríamos subir para a superfície se não pelo cabo da âncora. Para voltarmos com segurança a âncora usamos um cabo-guia numa carretilha. Se nos perdêssemos do cabo seriam 3 horas de descompressão arrastados pela correnteza em mar aberto. Ao emergir estaríamos sozinhos e longe do barco. Ligamos então as lanternas e exploramos os arredores.

    A euforia que sentia não era só pela narcose do nitrogênio. O esforço da descida contra a forte corrente fez acumular dióxido de carbono no circuito, que potencializa a narcose. Mas também a beleza do lugar e a alegria de ter batido a marca dos 100 metros, algo raríssimo no mergulho, me faziam feliz. Admirável mundo novo!

    O László seguia tranquilo e filmando. Ele, um guru das profundezas, parecia que estava passeando num parque.

    Ele notou que eu estava meio narcosado, inclusive me enrosquei no cabo da carretilha, coisa que normalmente nunca me acontece em mergulhos mais rasos. Me ajudou a desenroscar e seguimos. Um badejo quadrado observava curioso aqueles estranhos alienígenas em seu mundo fluido e escuro.

    Após 15 minutos os computadores já marcavam quase 3 horas de descompressão e começamos a longa subida. A descompressão, a grosso modo, evita que o nitrogênio e o hélio borbulhem em nosso sangue criando sérios problemas circulatórios e neurológicos. Subir direto para a superfície desta profundidade é caixão e vela. A primeira parada foi a 51 metros. Assim foi a cada 3 metros, até os 6 metros de profundidade onde ficamos por cerca de uma hora. Damos assim oportunidade para o hélio e nitrogênio saírem do sangue e voltarem para os pulmões. Os computadores de mergulho (dois para cada um) informavam a cada instante nosso status descompressivo e guiavam nossa subida.

    Para dar uma ideia, se ficássemos 5 minutos a mais a 120 metros (em vêz de 15 minutos, ficássemos 20 minutos no fundo), teríamos mais 40 minutos de deco (descompressão). A estas profundidades somos muito penalizados pela descompressão.

    A deco, a princípio tediosa, foi até divertida. Nos prendemos ao cabo da âncora usando jon lines (cabo de cerca de 2 a 5 metros presa numa ponta ao cabo da âncora e noutra ao mergulhador, evita o cansaço de segurar o cabo com as mãos) e curtimos a descompressão embandeirados (a correnteza fazia que parecêssemos bandeiras ao vento). Sorte que só havia correnteza e não ondas na superfície, que fazem o cabo sacolejar e tornam a descompressão chata.

    Nos 6 metros, o Daniel Rastelli, o safety diver, nos passou água num Camel Back, para nossa hidratação. Ele já estava nos observando desde os 30 metros de profundidade.

    De volta ao barco nos cumprimentamos pelo mergulhaço.

    Perfil do mergulho registrado no computador (profundidade X tempo).

    Agradecimentos ao grande Daniel Rastelli, safety diver perfeito e ao habilidoso mestre da embarcação, Jorginho.

    O vídeo anexo, muito legal, é do László Mocsári, médico anestesista e hiperbárico, referência nacional em rebreathers, sócio da Bahia Scuba, vários mergulhos abaixo dos 100 metros no seu log book, inclusive em cavernas, autor do único livro sobre rebreathers da língua portuguesa. E grande parceiro de mergulho. Dizem que basta respirar junto dele que aprendemos algo sobre mergulho técnico. Valeu László!

    Peter Tofte
    Peter Tofte

    Publicado em 05/03/2018 09:50

    Realizada em 03/03/2018

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    1 Comentários
    Fabio Fliess 07/03/2018 10:17

    Caramba!! 123m, Peter? Impressionante... Parabéns!

    Peter Tofte

    Peter Tofte

    Salvador, Bahia

    Rox
    3913

    Carioca, baiano de criação, gosto de atividades ao ar livre, montanhismo e mergulho. A Chapada Diamantina, a Patagônia e o mar da Bahia são os meus destinos mais frequentes.

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