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Peter Tofte 25/01/2017 13:49
    Intocada!

    Intocada!

    Trekking numa parte remota da Chapada Diamantina, pela Cachoeira das Lajes e da Intocada, descendo o difícil rio Caldeirão até a foz.

    Trekking Cachoeira

    Alberto Alpire, o co-fundador do Bushcraft Bahia, passará a residir na Alemanha. Ele pediu ao grupo uma última trilha na Chapada, que ele tanto gosta e conhece, antes de sair do País. Sugeri uma região pouco conhecida, que ele tentou explorar uma vez, a região da cachoeira das Lajes e, especialmente, da Intocada e do rio Caldeirão, passando pela vila fantasma do Rabudo.

    Proposta aceita, partimos de Salvador quinta à noite no busão para Lençóis. Um grupo experiente, forte e coeso: além do Beto (que ajudou na cartografia de parte da Chapada para o mapa do Sapucaia), estavam eu (desde 2003 vagando por lá), Ernani (mestre mateiro de longa data), Lucas (Planeta Outdoor de Salvador, veterano calejado de trilhas) e Lígia (guerreira), Fabio Dal Gallo e Cristina Alves de Macedo (experientes trekkers na Itália) e o Thacio Marques Lima, nosso novato que foi o “estagiário” na trilha.

    Chegando em Lençois encontramos o Sandro, que tem uma Toyota Bandeirante de carroceria prolongada (as famosas de Caruaru/PE), que nos levou pela estrada velha do garimpo até o córrego Piçarra, local onde iniciaríamos a trilha subindo a serra do Bode. Ganhamos 2 a 3 horas nesta brincadeira.

    Na subida puxada, um dos membros do grupo sentiu a pressão baixar. Ele estava se recuperando de uma gripe. Após aguardarmos a melhora, continuamos a subida carregando a mochila dele (desconfiamos até hoje que era treta para ele não carregar a mochila serra acima). E tivemos sorte porque iniciamos cedo a subida e a manhã estava nublada.

    No topo tomamos um banho no córrego Piçarra, comemos o café da manhã e seguimos rumo ao cânion do Mixila.

    No caminho nosso mestre mateiro achou um beija-flor caído no chão. Disse que provavelmente estava velho, já sem forças para voar. Demos um pouco de água com hibiscus no bico e ele reanimou. O deixamos num local alto para ele não ficar no chão a mercê de um predador. Não existe aposentadoria de pijama no reino animal. Luta-se pela sobrevivência até o final.

    Antes do cânion do Mixila pegamos uma trilha à esquerda para subir para a Toca/Cachoeira das Lajes. Trilha escondida. Após cerca de uma hora no sentido Sul cruzamos outra vez o Piçarra e chegamos na Toca do Ailton, local bem estruturado e ponto de passagem obrigatório no rumo que tomamos.

    Entrada do cânion da Mixila:

    Toca do Ailton:

    Desde lá mais uma hora de caminhada para a Toca das Lajes. Chegamos nesta velha conhecida minha por volta de 13 horas.

    O rio das Lajes estava sem água, apenas uma poça com água corrente que vinha de um minadouro lateral. A cachoeira estava praticamente seca. Nunca a vi assim tão sem água!

    Como a previsão era de tempo bom, sem chuva, acampamos no local que seria o poção da cachoeira em situações normais. Algo não recomendável, mas na Chapada o tempo não muda sem avisar e o local é muito bonito. Em todo o caso estudamos as rotas de fuga se houvesse chuva pela noite.

    Subi com Cris e Fábio para apreciar a parte superior da cachoeira, que tem três patamares, todos lajeados. A escalada foi possível porque a cachoeira estava seca. Bonita vista lá em cima, de onde avistamos nosso destino no dia seguinte, o vale do rio Caldeirão e o início do cânion.

    No final da tarde uma cobra caninana avançou sobre Ernani enquanto ele acendia o fogareiro para fazer a janta. Ele deu um pulo para trás e a cobra fugiu se abrigando debaixo de uma laje. Ela apareceu cruzando mais duas vezes o acampamento. É uma cobra não venenosa, mas muito ágil e agressiva. Não ficamos aborrecidos porque sabíamos que nos é que estávamos invadindo a morada e a área de caça dela.

    Conselho de guerra fazendo o planejamento do dia seguinte

    Noite divertida, com conversa ao pé da fogueira. Cada um fazendo o outro provar a sua comida. Batida de limão, cachaça e até uma deliciosa grappa produzida no Chipre, oferecida pelo Fábio. Os casais dormiram em barraca, Beto e Thacio em redes e eu e Ernani bivacamos direto na laje.

    Ao amanhecer o Ernani acordou com o liner molhado bem na região da pélvis e me falou que achava que tinha urinado durante a noite. Demos risada, mas logo constatamos que um filete de água da cachoeira passava por baixo de nossos isolantes e era o motivo da umidade. Não havia este filete ao anoitecer.

    Durante a noite o volume da cachoeira aumentou um pouquinho. Isto é normal em países tropicais. O orvalho da noite e a redução da evaporação aumentam ligeiramente o volume dos córregos. Nos países frios, com neve nas montanhas, ocorre o contrário.

    Depois do café e desarme do acampamento mostrei a Lucas, Lígia, Fábio e Cris o início da trilha Lajes – Morro Branco do Capão, que fiz solo há alguns anos atrás. Trilha legal, mas difícil.

    Partimos descendo pela margem direita verdadeira do rio (seco) das Lajes. A trilha estava bem batida para minha surpresa. No caminho Ernani avistou uma pequena cobra coral verdadeira, que fugiu para o capinzal.

    Tivemos que procurar a trilha em determinado ponto. Mas nada muito dificultoso para quem já tem experiência.

    Com aproximadamente uma hora chegamos ao bonito Caldeirão. Ele tinha mais água que o Lajes. Escondemos as mochilas e subimos o rio até chegar na bifurcação com outro cânion à direita. Descansamos e Lucas fez uma pirca no encontro dos rios. Guinamos para o cânion da esquerda rumo a Intocada, uma das mais remotas cachoeiras dentro do PN da Chapada Diamantina.

    Subindo o Caldeirão:

    Chegando na bifurcação dos cânions:Pirca levantada pelo Lucas:

    Trecho lindo, num tronco caído as margens do rio contei cinco espécies diferentes de orquídeas. Bromélias e palmito amargo em profusão. Barbas de velho enfeitavam as árvores. Ou seguíamos pelas pedras do leito ou pelas margens onde os poções do rio não permitiam seguir pelo leito. Não havia trilha exceto a feita por pacas, que apelidamos de Transpacaneira.

    Chegando perto do final do cânion, onde estava a Intocada, o aclive ficava bem acentuado com grandes blocos de pedra. A esta altura o rio estava seco. Estávamos perto do horário limite que estipulamos para voltar ao acampamento. Apressamos o passo (Beto quase pisa numa caninana que estava sobre uma pedra) até chegarmos ao deslumbrante anfiteatro da Intocada. Levamos 3 horas andando desde o local que largamos a mochila.

    Perto da Intocada:

    Mas não havia água, sequer no poção! Uma pena, um espetáculo pela metade. Mesmo assim ficamos cerca de meia hora observando aqueles imensos e espetaculares paredões que já valiam a visita. Num paredão uma reentrância na rocha parecia uma meia abóbada, portal de igreja, onde Lucas e Lígia descansaram.

    Na descida ouvimos muito o zabelê, piando para demarcar seu território. É uma bela ave, relativamente rara, devido à caça e destruição do seu habitat. Os cã-cã eram constantes no caminho. Ernani mostrou-nos fezes de onça.

    Chegamos por volta de 17:30 no local onde guardamos as mochilas e onde acamparíamos. Caímos na risada quando Lucas descobriu, ao abrir a mochila, que nela colocaram escondida uma pedra de 2 quilos. Carregou aquela pedra da Lajes ao Caldeirão.

    Durante a noite na beira do rio mais conversa e risadas, especialmente porque apareceram umas aranhas armadeiras graúdas e um dos presentes sofre de severa aracnofobia. Impressionante que o homem é trekker de primeira, muito experiente e valente no enfrentamento das situações de trilha, mas não pode ver uma aranha. Em compensação brinca com as cobras, o que não podia deixar de ser motivo de mais gozação.

    Segundo Ernani, bivacar é uma lição de humildade:

    Dia seguinte partíamos às oito horas para o que seria a parte mais difícil da trilha, a descida do rio Caldeirão até sua foz. Em 30 minutos descendo o rio, num trecho fácil, mas sem trilha, chegamos a cachoeira do Caldeirão sem água. O rio secou entre o ponto que acampamos e a cachoeira. Lá embaixo também não havia água no cânion do Caldeirão, até onde a vista alcançava.

    Poço do Caldeirão. Apenas um pouco de água parada e suja.Descemos pelo lado esquerdo da cachu e enfrentamos um trecho de grandes pedras e arbustos no leito do rio. Progressão lenta e difícil. Trepa pedra, pula pedra, joelhos bem exigidos. Procuramos trilha pelas margens, mas não havia.

    Observem a dificuldade para percorrer este "leito de rio":

    Fabio e Cris passando por um dos inúmeros obstáculos:

    Em determinado ponto pegamos uma bifurcação do rio, à esquerda, o que causou desorientação. Era um braço secundário do rio com muito mato. Propus abortarmos ali regressando, pois não tínhamos muita idéia do relevo dali por diante. Mas ganhou a maioria que preferiu continuar, pessoal raçudo! A volta seria cansativa e avistamos o cânion mais abaixo, com árvores, indício de que deveria haver água.

    O que constatamos, e soubemos depois por um amigo, o Miguel Moraes (guia veterano em Lençóis), é que esta era a pior seca que ele havia presenciado em 20 anos de Chapada, especialmente porque o verão é época de muita chuva. Não encontramos água no cânion. Pior, como saímos rio acima com água no leito, resolvemos carregar pouca água. O normal é no vale abaixo encontrar mais água e o rio ser mais caudaloso.

    Em certo ponto decidimos descansar na sombra e contabilizar a água que todos carregávamos. Apenas um litro para 8 pessoas. Ainda tínhamos 3 km num terreno difícil, que levaria mais 3 horas naquele ritmo para percorrer, isto se não houvesse um obstáculo intransponível.

    Guerreiros! Sorrindo apesar de terem apenas um litro de água na ocasião.

    Recomeçamos a caminhada. Sol escaldante em cima da pedreira do leito seco. Muita pirambeira. O fundo do desfiladeiro parecia um forno. Nos paredões onde havia musgo e onde deveria haver um gotejamento constante e filetes de água escorrendo estavam ressecados. Nunca vi isto em anos de Chapada.

    Alguns grandes monólitos, de centenas de toneladas, bloqueavam o caminho no rio obrigando-nos a contorna-los ou escalar ou mesmo a passar por baixo deles (a água escavou um túnel por baixo).

    Eu e Ligia seguimos na frente na expectativa de encontrar algo. Até que ouvimos um grito:“achei água!”. Voltamos correndo. Beto entrou numa pequena área sombreada de mata na lateral do cânion para procurar um cipó d’água quando viu um pequeno minadouro numa parede com musgo. Cortamos uma folha de bananeira de Canalão para captar a água e direciona-la para os cantis. Cada cantil levava alguns minutos para ser preenchido. Mas nunca a água foi tão deliciosa. Era fria ainda por cima!

    Aquele minadouro passou a ser conhecido como “Fonte Alpire” em homenagem ao herói do dia.

    Com a barriga cheia de água e cantis abarrotados, seguimos uma hora depois. O animo retornou ao grupo. Com mais uma hora e meia avistamos um bando de jacus grasnando. Ernani disse-nos que era sinal de água. Surgiram então poças de água parada em buracos conhecidos como caldeirões (origem do nome do rio). Poucos se atreverem a molhar os chapéus, bonés e bandanas naquela água suja, para refrescar o corpo.

    Gigantesca formação rochosa em balanço, no topo de cânion:

    Quando finalmente chegamos no final do cânion e o rio fez uma curva para o Norte, na altura do povoado fantasma do Rabudo, encontramos um filete de água corrente saindo de uma laje. Água morna, mas bebemos outra vez com sofreguidão.

    Desistimos de subir para as ruínas do Rabudo (como planejado inicialmente) devido ao adiantado da hora e ao cansaço.

    As poças foram crescendo de tamanho. A quantidade de rastros de animais na areia demonstrava que eles tinham poucas opções de bebedouros.

    Apenas quando chegamos no encontro do rio Caldeirão com o rio da cachoeira do Crefi a água passou a escorrer abundante, vindo deste afluente da margem esquerda verdadeira do Caldeirão. Alguém propôs uma parada para um banho. Disse um irritado “não!”. Não podíamos perder tempo. Embora já perto do destino não sabíamos o que teríamos ainda pela frente e andar com a luz de headlamps numa pedreira é difícil. Além disto tínhamos o rendez-vous com o Sandro. Se ele fosse embora teríamos de andar mais 3 horas pela estrada do garimpo até Lençóis.

    O desejo de todos era tomar um banho refrescante e descansar um pouco ali. Seguimos porque era melhor garantir a chegada no ponto de encontro. Lá poderíamos pedir ao Sandro para aguardar um pouco enquanto tomávamos banho na foz do Caldeirão.

    O trecho final da descida foi chato. Num poço largo eu entrei na água e molhei as botas para evitar um contorno difícil pela margem. Neste contorno o Lucas abriu caminho com facão e acabou cortando o dedo, felizmente nada muito sério.

    Eu, Fábio e Cris avisamos que seguiríamos na frente, para encontrar logo o Sandro e avisar que os demais do grupo chegariam em breve. Fábio e Cris voaram que nem passarinho tomando a dianteira. Pareciam que passeavam no quintal da casa. E era a primeira trilha deles na Chapada.

    Felizmente nosso resgate esperava lá, bem pontual. As 17:30 estávamos todos reunidos. Trocamos apertos de mão, felizes, e tomamos um banho de rio, além de botar uma muda de roupa limpa para voltar para Lençóis e viajar para Salvador.

    Realmente não é todo 4X4 que agüenta a estrada de terra do Caldeirão até o Piçarra, um dos piores trechos da estrada velha do garimpo. O Toyota Bandeirante é valente. No caminho vimos uma raposa cruzando a estrada.

    Chegamos em Lençóis já no escuro. Fomos direto para um restaurante. Miguel encontrou-nos após o jantar e falou sobre a seca. Disse-nos que um grupo de guias locais tentou subir o Caldeirão algum tempo atrás e desistiu no meio do caminho devido ao leito extremamente pedregoso e acidentado do rio.

    "Os Intocáveis" (visitantes da Intocada) na chegada a Lençois. Esquerda para a direita: Lucas, Lígia, Ernani, Beto, Cris, Fábio, Thacio e o Sandro.

    A cidade estava quente e cheia de turistas. Não gosto de visitá-la nesta época.

    O suco de mangaba (coisa deliciosa), a coca e a cerveja desciam maravilhosamente pelas nossas gargantas. Um dos membros do grupo tomou quatro copos de 500 ml de suco de mangaba, quatro copos de cerveja e só urinou em Salvador 10 horas depois.

    Jornada inesquecível por locais remotos da Chapada com um grupo disciplinado e com exemplos de superação. Apesar da surpresa ao encontrar o cânion do Caldeirão totalmente seco o grupo soube o que fazer.

    Trajeto percorrido. Plotado do track log do GPS sobre foto de satélite:

    E já estamos imaginando novas trilhas na Chapada Diamantina. Volto de lá cada vez mais convencido de que é o mais bonito Parque Nacional do Brasil em beleza e diversidade de cenários.

    Este relato é dedicado ao Alberto Alpire, que irá breve morar fora do país. Vai deixar saudades entre os amigos e companheiros de trilhas. Ele na descida do Caldeirão:

    Peter Tofte
    Peter Tofte

    Publicado em 25/01/2017 13:49

    Realizada de 20/01/2017 até 22/01/2017

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    17 Comentários
    Peter Tofte 07/02/2017 08:53

    Com certeza, valeu Getúlio!

    Samuel Santos 09/04/2020 14:39

    Muito bacana seu relato!!! Você tem pode compartilhar esse traço do gps cmg?? Gostaria de trocar uma ideia com você sobre essa trilha que você mencionou das Lages até o morro branco do capão!! Se puder disponibilizar o seu WhatsApp...obrigado

    Alberto 10/04/2020 15:20

    Obrigado pela homenagem Peter. Momentos assim nunca sairao da minha cabeca, mesmo apos varios anos. Abraco!

    Peter Tofte 11/04/2020 20:57

    Homenagem mais que merecida Beto! Além de fundador do Bushcraft Bahia, o que permitiu estas aventuras maravilhosas, foi o Salvador da Pátria ao encontrar água! Saudades de vc!

    Peter Tofte 11/04/2020 21:00

    Samuel, eu não tenho GPS. Alguém do grupo fez este mapa. Ele deve ter. Verei se descobro quem foi e te aviso.

    Peter Tofte 12/04/2020 08:21

    https://drive.google.com/open?id=0B1dTTd5jE-3cOGFsdGRwQ1d1R2c

    Peter Tofte 12/04/2020 08:22

    Aí em cima, cortesia do Alberto Alpire.

    Cainã Brasileiro 06/01/2024 20:49

    Oi Peter Tofte ! Desde 2009 desço o vale e esse ano vou fazer intocada e  também voltar pro vale pelo morro branco. Consigo ver o mapa, será? 

    Peter Tofte

    Peter Tofte

    Salvador, Bahia

    Rox
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    Carioca, baiano de criação, gosto de atividades ao ar livre, montanhismo e mergulho. A Chapada Diamantina, a Patagônia e o mar da Bahia são os meus destinos mais frequentes.

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