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A Carta de Caminha
'’E desta maneira, Senhor, dou aqui à Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi''.
‘’Senhor;
Haja vista que outros capitães entregarão à Vossa Alteza as boas novas, dirijo-me a dar conta sobre o que vi no achamento desta nova terra’’ (Pero Vaz de Caminha).
Ao sexto dia de Setembro dos dois mil e quatorze anos de Nosso Senhor, partimos de Curral Del Rey, com Dom Gomes Afonso, Dom Durães de Barreto, Dom
Coimbra Nepomuceno, Dom Castilho, Dom Pereira D'almeida, Dom Messias de Pinheiro, Dom Costa e Corrêa e Dom Fagundes, liderados por Dom Polaro dos
Santos.
Navegamos diuturnamente por mares desconhecidos, tendo o astrolábio, o ‘’buscador de estrelas’’ nos orientado em nossa jornada ao leste. Ao descortinar da luz da manhã, avistamos, sob o branco de véu do qual se fazia a neblina, viçosas fazendas com suas tenras e verdes folhas de café, d’onde pendentes sacudiam os grãos no puro e gélido ar dos montes de Caparaó.
Lançamos de nossas caravelas as âncoras para, assim, aportarmos nas províncias de Alto Caparaó, aldeia que despontava com suas montanhas
desafiadoras. Rumaram os senhores à hospedaria do Senhor Lucas de Bezerra, onde houveram trocas de cumprimentos e abundância do que comer. Lá descansaram os seus alforges, comeram e beberam das provisões de Dom Lucas e sua esposa, senhora virtuosa nas práticas de cozinha.
À convite reverencioso de um sargento da colônia, Dom Polaro, aclamado navegante e sua respeitada comitiva, foram recebidos com solene honraria militar. Levados foram a conhecer a magnificente terra que descansa aos pés da gigante
Serra do Caparaó, onde seus nativos ora acenavam e gritavam a ver-nos a perambular pelos ladrilhos: "Salve a coroa trepatoriana!".
O cortês sargento, homem distinto e de comprazimento cristalino, nos levou ao mercador, outro senhor justo e gentil, detentor de bom conhecimento. Do armazém provinham tabaco, café, açúcar mascavo, óleo de cânfora, seda, noz moscada e outras especiarias. Dom Pereira D'almeida, senhor de medidas abundantes e traços corpóreos arredondados, veio a angariar para si um colant e a dirigir-nos a pergunta: '' Respeitáveis senhores, 'tás a ver' tal vestimenta. Viria-me a calhar?''. Neste instante, rebateu Dom Barreto: ''Ora pois, com tal peça irás tu reacender nos homens desejos proibidos, que são guardados para vossas esposas em Portugal", seguido de uma gargalhada que caiu ressonante sobre o mercado, fazendo com que
Dom Pereira, sabiamente, desfizesse de tal peça.
Como a imitar uma brincadeira entre miúdos, Dom Messias Pinheiro e Dom Pereira laçaram Dom Castilho pelos braços para que tomasse de assento uma cadeirinha de bebês, justaposta em um carrinho de se pôr as provisões.
Seguindo sábios conselhos do mercador, que orientou-nos de certa forma insistentemente, alugamos capichamas por dez réis, preparando-nos para uma noite
que, de fato, se sucederia em uma madrugada inóspita e de frio cruel. Despedimo-nos do bom sargento e passamos então a subir, ainda de manhã, o monte que nos levaria ao descampado conhecido como ‘’Tronqueira’’.
Na Tronqueira deixamos nossos cavalos e ajeitamos as nossas cargas. Quatis comiam de nossas mãos. Reunimos os homens, calibramos nossas bússolas e Dom Polaro deu a ordem da subida.
A dar-se conta do tempo frio, Dom Castilho ousara levantar dúvidas quanto a Dom Corrêa, que cogitara se banhar no ribeirão gélido e assim o fez, para espanto e
admiração de Dom Castilho.
No acampamento alto conhecido por Terreirão, estendemos as nossas tendas. O frio da tarde trazia-nos a lembrança de Leiria e Bragança. O sol em tom
alaranjado ao ocaso se despedia e uma névoa densa se aproximava para tomar o acampamento, tal qual os nevoeiros que assombravam as nossas embarcações,
porém como magia ela se retraiu magnificamente por detrás dos montes. A Lua cheia já despontava quando vimos as últimas mulas trazerem as tralhas de
caminhantes menos laboriosos.
Retiramos de nossos alforjes nacos de carne, grãos prensados e pó de café. As bolsas de couro continham provimentos que iriam saciar nossa fome. Acendemos
os fogareiros e no refúgio dos guarda parques cozinhamos nosso jantar. Enquanto o braseiro aquecia nossas caçarolas, longa conversa à mesa foi iniciada, regada à conhaque e outras bebidas quentes. Os causos confidenciados faziam-nos rir de nossos próprios infortúnios. Após sentirmos que o repouso se fazia necessário, retiramo-nos para o descanso.
Havia no Terreirão outros caminhantes desconhecidos e incautos que abusavam do tabaco. Na madrugada ouvimos rumores que perturbaram nossa paz. A tribo vizinha, os incautos, provocava ruídos perturbadores, que nos aguçava o desejo de
desembainhar nossas espadas e bacamartes. O aço poderia cortar a densa neblina mas o frio acalmou
o nosso espírito guerreiro.
Levantamo-nos às duas horas e trinta minutos da madrugada do dia sete. Vestimos nossos chapéus e casacos, calçamos nossas botas ante o frio que gelava-nos a espinha e fazia-nos bater os ossos. O monte culminante da província do leste nos aguardava.
Lucas de Bezerra conclamou aos caminhantes: ''Cavalheiros! Guardai vossas
lanternas e bússolas por um instante! Ide pela mata, guiados pelo silêncio e pelo brilho prateado da lua cheia. Só por um instante, cavalheiros!''. Assim Dom Barreto
e Dom Coimbra se puseram à marchar. Os nove cavalheiros da coroa trepatoriana à quinta hora já haviam cruzado a serra. Dom Polaro e Dom Messias de Pinheiro, líderes de expedição e outrora divergentes quando assuntavam sobre os rumos da tropa, deixaram suas diferenças de lado por força da temperatura mui cortante que se fazia implacável e os mesmos
se dispuseram numa pedra d'onde ficaram protegidos e encolhidos, descobertos apenas os olhos ansiosos pelos primeiros raios da manhã.
Ora ou outra ouvíamos Dom Barreto com sua característica gargalhada abafada rir de algumas lamúrias oriundas de Dom Castilho. Dom Corrêa, D.Pereira, D.Fagundes e D.Coimbra também se apertavam em compadrio para se aquecerem,
enquanto D.Afonso fazia os registros.
Os registros de Dom Afonso eram de beleza inenarrável. Acima das nuvens, pisávamos respeitosamente com as nossas botas os 2891m do Pico da Bandeira.
Em meio à última escuridão vimos entreabrir-se nas nuvens uma ''janela'', nos possibilitando avistar as luzes da aldeia abaixo. O manto, que sempre víamos ao
olhar para o alto ao nosso rogar por providências divinas, estava sob os nossos pés. O algodão, que reluzia o vermelho fogo em suas bordas, eram nuvens tocadas pelo sol do oriente.
O mar de nuvens de certo nos rememorava o oceano nebuloso que causava pavor em nossas naus. No horizonte, outros picos despontavam acima da altura das nuvens, como cabeças de dragões emergindo das águas do Atlântico. Essa visão de beleza imensurável mostrava-nos que havia algo além mar pelo que ainda
buscar.
Viram os nove homens brotar por sob as nuvens os primeiros raios de sol. Os nove corpos recebiam gratos cada fio de calor emanado pelo astro.
Estes senhores se abraçaram, orgulhosos. O feito foi alcançado e aqui descrevo, ainda que eu devesse à estes senhores maiores deferências, pelo seu êxito e bravura na condução de seus passos.
Erguemos a nossa bandeira a mando da Coroa em Sete de Setembro de 2014, às sete horas. Serenamente, estes senhores guardaram no peito a vossa emoção,
refletida em cada olhar de inteiro deslumbre. Encheram os seus pulmões com o bom ar da Serra de Caparaó e agradeceram à Deus. O Pico da Bandeira se fazia
tangível, real e conquistado.
Assim que aquecidos os seus corpos enrijecidos pela noite de extremo e negativo frio, deixaram essa terra excêntrica e hospitaleira.
E desta maneira, Senhor, dou aqui à Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi.
Era um dia sete de Setembro de 2014, ano de Nosso Senhor.
Relato do livro "No Cume da Montanha Repousa a Nossa Vitória", de Alexandre Polar, narrando as aventuras do grupo Trepators Adventure.
