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POR QUE O ACESSO AOS PICOS DO CARAÇA PRECISA SER CONTROLADO?

    Ponto de vista sobre as restrições de acesso aos picos do Santuário do Caraça.

    André Deberdt
    03/06/2022 08:42

    Santuário do Caraça, com o pico do Inficionado (2.068m) ao fundo.

    André Deberdt, biólogo, montanhista e presidente do Centro Excursionista Mineiro (CEM).

    Marcelo Vasconcelos, biólogo, mestre e doutor em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre e pesquisador na Serra do Caraça.

    Localizada no Quadrilátero Ferrífero, nos municípios mineiros de Catas Altas, Santa Barbara e Mariana, a Serra do Caraça é um maciço quartzítico onde estão algumas das maiores elevações do estado de Minas Gerais, dentre elas o Pico do Sol (2.072m) e o Pico do Inficionado (2.068m). Diferentes formações vegetais estão distribuídas ao longo do gradiente altitudinal, como os campos de altitude e matas nebulares, que abrigam espécies endêmicas da fauna e da flora, algumas delas bastante raras e ameaçadas de extinção.

    Boa parte da Serra do Caraça é de propriedade da Província Brasileira da Congregação da Missão, instituição Católica formada por padres Lazaristas ou Vicentinos. Denominado oficialmente como Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, o local é mais conhecido como Santuário do Caraça, reconhecido desde 1994 como Reserva Particular do Patrimônio Natural, unidade de conservação de âmbito federal, gravada com perpetuidade por meio da Portaria IBAMA, nº 32-N, de 20 de março de 1994. Por sua importância natural, histórica e religiosa, esta região tem sido, há séculos, alvo do interesse de religiosos, naturalistas, cientistas e, em tempos mais recentes, de excursionistas e montanhistas.

    A partir de 2002, após dois grandes incêndios no Pico do Sol e grande parte do Pico Carapuça, (segundo consta, decorrentes de descuidos por parte de visitantes), o acesso aos picos e locais com distância superior a 6 km passaram a ser realizados, obrigatoriamente, com o acompanhamento de um guia cadastrado no Santuário do Caraça, o que acirrou os ânimos da comunidade de montanhistas, até então habituados a circular livremente pela serra.

    Mediante a aprovação do Plano de Manejo da RPPN pela Portaria ICMBio nº 189 de 17 de maio de 2013, as normas de visitação ficaram ainda mais restritivas, pautadas nas recomendações dos especialistas responsáveis por sua elaboração. Ao final de 2015, o acampamento nos cumes passou a ser proibido aos visitantes.

    As normas para visitar os picos da RPPN Santuário do Caraça (em vigor a partir de 2015) são as seguintes:

    - Acompanhamento do guia/condutor cadastrado na RPPN Santuário do Caraça;

    - A capacidade de carga para cada pico por dia, não pode exceder o número de 10 pessoas;

    - Passeio de ida e volta no mesmo dia; e

    - Não permitido em dias de chuva.

    Ao contrário do que muitos pensam, as regras de visitação aos picos no Santuário do Caraça não foram estabelecidas de forma arbitrária, sem maiores critérios, mas sim, baseadas em estudos e recomendações de pesquisadores e instituições renomadas que atuam há bastante tempo na região.

    Assim como em outras partes do Brasil e do mundo, os cumes de montanhas costumam ser locais de alta sensibilidade ambiental, com espécies da fauna e da flora submetidas a condições específicas e limitantes, impostas, principalmente, pela altitude e pelas condições climáticas. No caso particular da Serra do Caraça, alguns picos abrigam espécies exclusivas da flora, que não ocorrem em mais nenhum outro lugar. Ou seja, em caso de incêndio, excesso de pisoteio ou qualquer outro impacto mais grave, podem desaparecer completamente da face da Terra. E a estas espécies estão ligadas outras, inclusive da fauna, mantendo assim uma delicada rede que sustenta o ambiente único que encontramos no alto dessas montanhas. Apenas este aspecto já seria motivo suficiente para isolar completamente estas áreas da visitação pública.

    Apesar da pressão de montanhistas e das tentativas de negociações conduzidas ao longo dos últimos anos pelo Centro Excursionista Mineiro (CEM), pela Federação de Montanhismo e Escalada do Estado de Minas Gerais (FEMEMG) e pela Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (CBME), as exigências para o acesso aos picos vêm se tornando cada vez mais restritivas. Muito disso também se deve ao acesso clandestino e cada vez maior de pessoas a estes locais, alardeado de maneira inconsequente nas mídias sociais, o que incentiva ainda mais esta prática ilegal, sepultando qualquer possibilidade de entendimento com a administração do Santuário do Caraça.

    Para o verdadeiro montanhista que luta pelo livre acesso às montanhas, nada soa pior que a frase “obrigatório o acompanhamento de um guia”. Mas é preciso admitir que, em algumas situações, isso se faz necessário, uma vez que muitas pessoas não estão imbuídas dos conceitos básicos de boas práticas de mínimo impacto no ambiente natural. Nestes casos, o ordenamento e o controle da visitação são medidas necessárias, principalmente para proteger ambientes delicados e únicos.

    Temos como exemplo a Serra Fina, aludida como uma das travessias mais difíceis do Brasil, onde o acesso sempre foi livre, o que levou uma quantidade excessiva de pessoas a visitá-la, tornando seus principais cumes e demais pontos de pernoite em verdadeiras latrinas a céu aberto, contaminando o solo e as cabeceiras de cursos d’água com dejetos humanos, além de outros impactos como a proliferação de roedores, favorecida pelo aumento na oferta de alimentos deixados pelos visitantes, o que certamente teve um impacto na cadeia trófica, ao privilegiar algumas poucas espécies e detrimento das demais. O incêndio ocorrido em 2020 foi apenas a cereja do bolo para coroar um desastre que já vinha se anunciando há tempos. Hoje, paga-se, literalmente, um preço alto para realizar a travessia.

    Assim como nós montanhistas almejamos o livre acesso ao cume das montanhas, outras pessoas também compartilham do mesmo sentimento, motivadas por desejos distintos, como a busca por um local isolado para reflexão e oração, a prática de exercícios físicos, observar ou fotografar a paisagem, a fauna e a flora, entre muitos outros. Então, o que nos diferencia dos demais e nos torna tão especiais? Montanhistas seriam seres iluminados com direitos exclusivos? Obviamente que não. Os responsáveis pelo Santuário do Caraça compartilham do mesmo entendimento:

    ... parece necessário conciliar, nos entendimentos futuros, a visão dos montanhistas, dos que procuram o Caraça como centro de peregrinação, cultura e turismo, com a dos conservacionistas e dos pesquisadores que pleiteiam seriamente o fechamento de algumas áreas ou regiões à passagem de esportistas ou turistas, visando a preservação de endemismos já extremamente comprometidos na Serra do Caraça”.

    (Plano de Manejo da RPPN Santuário do Caraça, pág. 127)

    Portanto, é importante deixar as rusgas de lado e parar de olhar apenas para o próprio umbigo. A administração do Santuário do Caraça não proíbe a visitação aos picos, que é permitida mediante a contratação de um guia / condutor cadastrado. Quem conhece o João Júlio e o Neneco, duas figuras já quase folclóricas do local, sabe que o acompanhamento deles costuma enriquecer ainda mais o passeio. O limite no número de participantes e o horário reduzido de visitação atrapalham e podem ser um entrave para algumas pessoas, mas, de fato, têm contribuído para a conservação destes delicados ambientes montanos.

    A visitação pública tem sido uma forte aliada da conservação de nossas áreas naturais, mas não é uma atividade livre de impactos ambientais. Diante da confirmação científica dos inúmeros benefícios advindos do contato com a natureza, um número cada vez maior de pessoas tem se interessado por atividades realizadas ao ar livre, o que torna inevitável a necessidade de um regramento a fim de se evitar danos maiores e irreparáveis a estes locais.

    Phlegmariurus ruber, espécie endêmica e criticamente ameaçada de extinção, que só ocorre em alguns poucos picos da Serra do Caraça.

    Próximo ao cume do pico Carapuça (1.912 m). Abaixo e à esquerda, um exemplar de Heterocoma albida, categorizada como Criticamente em Perigo, com ocorrência restrita à Serra do Caraça.

    Turma do Centro Excursionista Mineiro, em visita aos picos Conceição (1.803 m) e Três Irmãos (1.908 m), acompanhados do guia Neneco.

    2 Comentários
    Wanderson Dias 24/06/2022 22:30

    Excelente artigo. Levanta bem as questões que envolvem a conservação dos ambientes de montanhas. Mesmo com montanhistas cientes dos impactos, temos muitas pessoas que não conseguem enxergar como algumas atitudes podem desbalancear o equilíbrio de uma montanha. A Serra fina, e tantos outros pontos de grande presença de pessoas são bons exemplos dessa falta de conhecimento. Obrigado pelas palavras.

    André Deberdt 25/06/2022 07:44

    É isso mesmo Wanderson. Pena que muitos montanhistas aqui de MG não conseguem enxergar isso. 

    André Deberdt

    André Deberdt

    Belo Horizonte - MG

    Rox
    736

    Biólogo e montanhista filiado ao Centro Excursionista Mineiro.

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