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Daniel Miranda 19/09/2021 00:34
    Gás, suor e capim navalha - Morro Branco X Mixila - 04 dias

    Gás, suor e capim navalha - Morro Branco X Mixila - 04 dias

    Um relato de estreia nessa rede, em uma das travessias mais tradicionais dos antigos garimpeiros do Capão.

    Dentre as inúmeras benesses concedidas pelos deuses ao Vale do Capão, ser uma jazida de diamantes não foi uma delas.

    Ao contrário de suas irmãs, pertencentes as outroras Lavras Diamantinas, o Capão não possui a tão deslumbrante quanto amaldiçoada pedra em sua formação geológica, o diamante, formado em condições vulcânicas, está presente em Lençóis, Mucugê, Andaraí, Palmeiras... devido presença da formação tombador em seus territórios, o Capão, cujo solo foi formado durante o período do Mar do Espinhaço, a 1.7 bilhões de anos atrás, apesar da falta dos brilhantes, foi um agente muito importante para a logística garimpeira.

    Grande produtor de alimentos, o vale supriu as falanges de garimpeiros no século XX, uma das principais rotas para alguns dos grandes garimpos da época saia do Capão, a subida dos Araújos (provavelmente o nome da família detentora das terras do morro branco) é uma rota tradicionalíssima, que dava acesso aos rios Caldeirão, Lages, Ancorado, e a garimpos como o da Ilha Grande, governado pelo Pedim, o qual ainda iremos citar nesse relato.

    Algum tempo atrás, em julho de 2021, foi a minha vez de conhecer esse patrimônio histórico-cultural que se localiza em partes, em uma das zonas intangíveis do parque.

    A convite de um grande amigo que me apresentou e auxiliou em inúmeras trilhas no parque nacional (o qual não citarei o nome verdadeiro por se tratar de uma trilha que transpassa, embora brevemente, a zona intangível) por ocasião das circunstâncias, chamar-lhe-ei Frederico.

    Nosso combinado era subir o Morro Branco em direção as Lages, de lá quebrar a esquerda para fazer uma fotografia da cachoeira do Mixila, e retornar ao Capão pelo Palmital.

    Começamos um pouco tarde, às 10:30, a caminhada do primeiro dia seria extenuante, uma trilha quase sem uso atualmente, varando o duro cerrado e as implacáveis matas de capim navalha, até o nosso primeiro pouso, um local conhecido como Visage, um afluente das Lages, seriam pouco mais de 13km, que quando em um terreno favorável, não são nenhum desafio, mas em uma trilha quase fechada e ora perdida, se traduzem em uma realidade onde necessita-se tempo para gerenciar as adversidades que podem surgir.

    Foto de um dos mirantes laterais do Morro branco

    A trilha que dá acesso a rota do garimpo começa no bairro da doce mel no Vale do Capão, a ascensão do morro branco, tradicionalmente conhecida como subida dos araújos, apesar de ser uma subida forte não apresenta maiores dificuldades, eu, entretanto, tive uma súbita queda de pressão, causada pelo que julgo por uma condição hipoglicêmica, algumas paradinhas, umas bolachas a mais, e problema resolvido, estávamos agora na lateral do morro branco.

    Quando se chega a esse ponto, muitas pessoas (leia-se muitos registros no wikiloc) tentam acessar o topo do morro pela lateral, pensando em ter uma visão mais privilegiada do vale, isso entretanto, é praticamente impossível.

    O morro supracitado tem sua lateral toda entrecortada por fendas, e para se chegar ao topo é necessário fazer um movimento conhecido como volta do rosário, e dar as voltas até chegar às "costas" do morro branco, tomamos esse caminho já que o acesso ao topo se bifurca no acesso a trilha do garimpo.

    Alguns anos atrás, subi aqui a convite de um amigo, na tentativa de achar a trilha pro topo, procuramos, sem sucesso, dormimos em cima do morro e pegamos uma tempestade daquelas, essa é uma trilha utilizada mais pelos brigadistas, que possuem um ponto de monitoramento lá em cima, onde também existe uma toca, ainda faço essa trilha, mas ela não é o nosso assunto de hoje.

    Após fazer essa "volta do rosário", atravessamos uma das várias nascentes do rio capivara para então nos deparar com dois vales.

    A matinha e a matona são cânions que precisam ser transpassados para alcançar o nosso objetivo, a trilha do garimpo vai circundando-os sem maiores dificuldades, na matinha, o já citado Pedim, gerente do garimpo da ilha grande, mandou instalar por ocasião do desmoronamento do antigo caminho, um ferro fincado na rocha para que se pudesse fazer a rota até o garimpo, esse local ficou conhecido como "ferro de pedim"

    Após atravessar a matona, passamos por uma passagem conhecida como rampa do gato, eu, por pura teimosia, decidi não ir com uma blusa manga longa necessária em trechos como esses, e sofri desnecessáriamente com os capins, micro-cortes deliciosamente temperados com o sal do meu suor, prato de chef! Algumas horas meu corpo parecia arder em chamas hehehe

    Sobre a rampa do gato, penso em que deva ter sido construída por alguém da famíla Gato?? Tradicional família da região... responsáveis pela criação de Conceição dos Gatos, até onde eu sei.

    Essa trilha é um espetáculo da engenharia garimpeira, com diversas modificações feitas para facilitar a labuta dos homens de rocha.

    Bom, superada a rampa do gato, estamos margeando o rio caldeirão, tive a oportunidade de ver de longe o trajeto que fiz outrora junto a alguns guias do Capão na serra do queimadão (a direita da entocada) para tentar encontrar um caminho que conectasse o topo da cachoeira da entocada a base da mesma, ficamos sem água, bebemos bromélias, cairam em fendas, rolê dos bons.

    Após contornámos o rio caldeirão, chegamos ao mete língua, uma subida que me deixou muito curioso acerca do caráter etimológico kkkk com uma passagem estreida ao lado de uma fenda sem tamanho definido, seguimos com atenção até virarmos a serra.

    Virada a serra, seguimos em declive para o afluente das lages, chegamos no visage um pouco antes do lusco-fusco, sem chuva esperada na noite, esticamos nossos sacos de dormir e proseamos um pouco, uma aranha desnecessáriamente grande (que eu devia ter fotografado) apareceu, era amarelo-esbranquiçada e tinha em suas patas manchas lineares brancas que refletiam como fitas em um macacão refletivo, foi logo tangida pra longe, não consegui reconhecer a espécie, mas não acredito se tratar de um armadeira, uma das três únicas espécies de aranhas com interesse médico no BR.

    Algumas horas mais tarde a chuva deu as caras, nos obrigando a cada um montar sua lona, fiz um armengue só para aguentar o resto da noite, torcendo para que o vento não desfizesse as frágeis estruturas rochosas que usei pra substituir os espeques no lajedo.

    Durante a noite uma das luas mais belas que eu já vi, amarelo queijo, quase senti fome, no frigir dos ovos, um sono tranquilo.

    O dia raiou, mas a nossa disposição demorou mais um pouco.

    Saímos do acampamento beirando o meio-dia, mas como nosso destino estava próximo, sem maiores problemas.

    Mochilas arrumadas, hora de seguir para a toca de Ailton, um verdadeiro castelo rupestre (seria isso uma redundância?)

    No caminho passamos pelo brejo da bala, triste exemplo da destruição que o garimpo afligiu nas serras da Chapada, aqui, o rebaixamento do solo segundo o ICMBIO foi de 06 a 12 metros, não dá nem pra imaginar o quão frondosa já foi essa terra antes da febre multifacetada.

    Brejo esse, que tem esse nome de brejo da bala, devido ao refugo dos conglomerados presentes no chão, pequenas bolinhas que incomodam ao andar, como diria um antigo garimpeiro "lá é onde até de bota doi os pé!"

    Finalmente chegamos à toca do Ailton, e que lugar viu! Parece saído diretamente de uma história céltica, com jardins de pedra e bromélia, um paisagismo que deixaria Burle Max orgulhoso.

    Ficando a apenas 15 minutos do Poção (ponto de partida para a cachoeira do Mixila) a toca do Ailton é uma experiência incrível de imersão na residência garimpeira, depois de chegarmos, deixamos nossas coisas e fomos dar um oi pra cachoeira do Capivari.

    Bom, no título diz "gás, suor e capim navalha", os dois últimos já foram apresentados, mas o fator gasoso só deu as caras no dia de ataque ao Mixila.

    Ao preparar uma refeição, meu fogareiro fica descontrolado, as chamas começam a lamber a lateral da panela (própria do fogareiro, um jetcook da azteq), na ânsia de fechar a válvula, esqueci que o havia colocado em posição inversa, e abri liberei mais gás a essa pequena tragédia, tento fechar novamente na posição correta e nada da chama diminuir.

    Como estávamos em um abiente com coisas inflámáveis e por medo da explosão, atirei o fogareiro longe, mesmo sabendo que isso significava a perda do equipamento.

    Tentei em vão apagar o fogo com água, obviamente sem sucesso já que ele continuava a ser alimentado pelo gás. Aceitei, e no final, filmei, vai que a Azteq me dá outro né, se não conseguir pelo menos faço um daqueles vídeos "Não compre o Jetcook antes de ver esse vídeo" ou "meu fogareiro explodiu, olha no que deu!" ah, e sim, depois de consumir bastante gás, a tampa traseira não aguentou e o fogareiro literalmente explodiu, arremessando a tampa sabe-se lá para onde, por sorte nenhum dano colateral.

    Recuperado do susto (mas não do prejuízo $$$) seguimos para a cachoeira do Mixila, havia chovido muito durante a noite e nos preocupamos se iríamos conseguir adentrar o cânion, o poção estava bombando.

    Decidimos tentar, sem loucuras, se ficasse ruim voltaríamos, mas sinceramente, ultrapassamos essa parte da loucura quando precisamos subir uma cachoeira bombando, chegando em casa descobri que tinha uma corda lá e que não precisávamos ter nos exposto tanto.

    A cachoeira estava bombando, um festival de andorinhas dançava em frente a queda, só conseguimos (nem sequer tentamos) chegar ao poço anterior a cachoeira, julgamos desnecessária a exposição nessa situação, estava muito, muito frio, e desistir passou pela minha cabeça algumas vezes, fizemos até uma fogueira contrariando as diretrizes do mínimo impacto, questão de sobrevivência hehehe

    Mais uma noite, boa comida e boas histórias, aprendi que comendo lentilhas, não corteja-se o rei, no outro dia, desceríamos a serra do bode para chegar a Lençóis, lá começaria a minha epopeia de pegar um ônibus de volta pro Capão estando sem documento, tive mais sorte que os troianos e garanti o conforto do meu lar.

    Bom, gostaria de agradecer ao Peter Tofte por me incentivar com seus relatos a fazer os meus próprios nesta plataforma, e queria deixar aqui registrado a minha felicidade ao ver que o Guilherme Cavallari me segue por aqui, só o aventure box proporciona esse tipo de coisa :D

    No mais, me coloco a disposição para quem quiser saber mais sobre essa trilha, e para escutar relatos de outras pessoas que também a fizeram.

    Daniel Miranda
    Daniel Miranda

    Publicado em 19/09/2021 00:34

    Realizada em 11/05/2020

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    6 Comentários
    Fabio Fliess 19/09/2021 06:39

    Excelente relato Daniel. Daqueles que nos instigam a conhecer a região. Bem-vindo ao AventureBox!!!! Abs.

    Daniel Miranda 19/09/2021 08:49

    Obrigado Fábio! Se estiver pela região estou a disposição para ajudar, um abraço

    Peter Tofte 19/09/2021 12:13

    Muito bom o relato Daniel e muito bem escrito. Parabéns. Me lembrei da minha trilha solo Morro Branco - Lajes anos atrás mas vc citou trechos que não recordo ter feito. Passei junto a beirada de um canion estreito e profundo de um afluente do Ancorado, mas não passei sequer perto do Caldeirão. Gostei muito das referências históricas que não conhecia. Muito legal!!!

    Daniel Miranda 19/09/2021 13:40

    Obrigado pelo Feedback Peter! Seus relatos são os melhores. Sobre o trajeto, quando eu falo Caldeirão, quero dizer o rio, bem antes da cachoeira, o afluente que encontra o rio da entocada mais a frente, para então seguir vale abaixo em direção a cachoeira do Caldeirão Eu já ouvi falar de uma bifurcação, ali na altura da matinha / matona, que vai lhe jogar no ancorado, talvez você tenha seguido esse caminho? Não tenho maiores informações, mas gostaria

    Peter Tofte 19/09/2021 15:55

    Entre em contato comigo no privado ptofte@hotmail.com que lhe mostro no mapa o caminho que fiz. Sei que tem um caminho que sai no topo da Entocada mas poucos conhecem.

    Cainã Brasileiro 03/01/2024 23:23

    Que massa esse relato! Fiz fumaça por baixo, capão lençois. Esse ano vou com uma galera que quer fazer mixila morro branco. É mesmo uma parte peculiarmente mais perigosa ou apenas um pouco mais perigosa?

    Daniel Miranda

    Daniel Miranda

    Rox
    21

    Guia na Chapada Diamantina, apanhador de desperdícios, curioso de nascença ⛰🐺 @danielguiachapada - lá eu produzo uns conteúdos legais