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Felipe Romano 04/05/2023 17:16
    Escaladas no Baú: Transbaú e Peter Pan

    Escaladas no Baú: Transbaú e Peter Pan

    Relato de escaladas realizadas na Pedra do Baú e Ana Chata, em abril/2023.

    Escalada Montañismo

    Aviso: Relato longo e detalhado. Recomendado para curiosos, escaladores procurando betas e meu eu-futuro.

    Planejar um fim de semana de escaladas tradicionais geralmente é um pequeno desafio. Temos que contar com as condições climáticas, licenças, alvarás, logística geral, interesses em comum, e demais imprevistos. Porém, às vezes, ou raramente, alguns imprevistos acabam sendo benéficos. E foi isso que aconteceu neste feriado de Tiradentes.

    Eu e Fernando tínhamos planejado, umas duas semanas antes, escalar algumas vias tradicionais na região de Andradas (Pedra dos Lobos e do Boi) no feriado. Mas na mesma semana, faltando dois dias praticamente, surgiu um imprevisto, levando a possibilidade de mudarmos o destino para a região de São Bento do Sapucaí. Como a distância é quase o dobro de Andradas levantei essa idéia com o Fernando para saber o que ele achava e não demorou para confirmarmos o novo rolê. Íamos na quinta à noite para dormir em Campos do Jordão, ao invés de sair na sexta para Andradas. Já era quarta-feira, menos de 24h antes de partir, mal deu tempo de pensarmos nas vias a fazer, e propus fazer a Transbaú na sexta-feira e “alguma outra” no sábado.

    E aqui vai um parêntese para a Transbaú: esta clássica via foi conquistada em 2011 pela escaladora Karina Filgueiras, em solitário. A conquista demorou 3 semanas, dividida em uma investida de 3 dias e outra de 4. É uma das vias mais lindas de todo o complexo do Baú, além de ser a mais longa do local, com 280m. Desde então é uma das vias mais repetidas por escaladores que tenham uma experiência razoável em vias tradicionais, já que é cotada como 5sup VIIa E3, com três cruxs acima do 6º grau, e algumas passadas expostas.

    Eu já tinha vontade de escalar esta via há alguns anos, mas sabia que precisaria estar em boa forma, física e mental. Apesar de não ter preparado especificamente para ela, eu vinha treinando bem, então não hesitei. E o Fernando já tinha subido esta via alguns anos atrás, guiando todas as cordadas, então se eu tivesse algum problema com alguma guiada ele poderia se lembrar de alguma dica, ou tomar a ponta da corda.

    Já para a outra escalada, que faríamos no sábado, acabamos escolhendo a Elektra, que fica na pedra vizinha, Ana Chata. Já tínhamos escalado ela, no final de 2017, então dessa vez só iríamos inverter as partes que cada um guiou, assim teríamos guiado todas as partes da via. Ela é outra via clássica, variada, com aproximadamente 200m, mas com uma dificuldade mais baixa.

    Na mesma quarta-feira à noite separei os equipamentos, e quinta-feira logo após voltar do trabalho o Fernando passou em casa, e partimos. Viagem mais demorada por ser véspera de feriado, chegamos na casa por volta das 23h, só deu tempo de organizar rapidamente os equipamentos antes de dormir.

    Pedra do Baú – via Transbaú

    Tínhamos toda a sexta, sem tempo para voltar, então acabamos saindo um pouco mais tarde do que se deveria, 8h, chegando no estacionamento do Restaurante do Baú às 9h. Uns 50 minutos de trilha e estávamos na base da via, que fica bem próxima da escada da Face Norte e do campo-escola do Baú. O tempo estava perfeito, completamente aberto, com temperatura agradável e sem chance de chuva, como previsto. E devido a essas condições e ao feriado, o complexo do Baú já contava com muitos visitantes em suas trilhas e vias de escalada.

    Ao chegar na base já havia um trio de escaladores na segunda parada. Normalmente um trio demora mais que uma dupla, mas felizmente neste caso este eles estavam num ritmo bom (os dois participantes da cordada escalavam em simultâneo após o guia assegurar a parada acima), e logo vimos que não seria problema. De todo modo, tomamos nosso tempo para descansar na base da via antes de iniciar a subida.

    Como eu nunca tive escalado a Transbaú, e estava com muita vontade, tive a honra de começar guiando, eram 10h25. Sabia que era possível emendar as duas primeiras enfiadas em uma cordada cheia de 60 metros, e sai do chão com esta missão. Até a primeira chapa foi tranquilo, mas entre esta proteção e a terceira senti que era realmente um lance de Vsup delicado em aderência com uma exposição considerável. Uma queda neste trecho podia chegar no chão com queda de uns 15 metros. Tinha que confiar em um pé esquerdo chapado, quase vertical. Pelo menos havia uma pequena laca, pouco confiável, onde encaixei uma micro-proteção móvel para aliviar o psicológico. Após alguns ensaios do movimento, consegui proteger a próxima chapa, e até a “primeira parada” ficou mais fácil.

    Esta primeira parada, a qual passei batido, se dá num platô onde sobe uma fenda fácil. Daí foi mais uma proteção móvel no alto desta fenda, uma diagonal para esquerda, outra fenda com proteção móvel perfeita, diagonal para direita, chapa, e a parada. 60 metros de uma das cordadas mais legais que já fiz, a fama da Transbaú estava fazendo jus à experiência. O Fernando veio na sequência, recolheu os equipamentos e logo subiu para guiar o trecho seguinte, que não tinha grandes atrativos, um terceiro grau exposto, mas bem fácil.

    Foto: Fernando chegando na P2

    Foto: Fernando em direção à P3

    Chegando nesta terceira parada logo visualizei o primeiro crux da via: um tetinho bem protegido de VI ou VIsup acima de um lance de fendas. Bem atraente. Após uma leitura do croqui que levei no bolso, saí rapidamente protegendo a fenda e logo estava na base do teto. Sem demorar protegi a primeira chapa, entrei no movimento do crux, procurei agarras tentando encaixar os pés com firmeza neste trecho negativo, e quando quase estava desistindo achei uma laca salvadora à direita da segunda chapa. Clipei a costura na segunda, e última, chapa deste crux, mas quando fui tirar a corda ela tinha se enroscado na chapa de baixo (algo não incomum quando há duas chapas próximas). Para evitar uma queda ali por conta desse enrosco segurei na costura acima, desfiz o enrosco, clipei a costura de cima, e já emendei os movimentos para ganhar o lance. Para a escalada esportiva isso não seria considerado uma “cadena”, mas sei que fiz os movimentos desse crux, sairia limpo se não fosse o enrosco, então fiquei contente do mesmo jeito. Diferente do que se sucedeu na cordada seguinte...

    Foto: Primeiro crux: tetinho Estrella Fullgas

    Foto: Fernando chegando na P4

    Após este crux ainda teve um bom trecho vertical com uma bela fenda de quinto grau. A via continuava mostrando suas belezas. Na quarta parada discutimos quem iria guiar o próximo trecho e o Fernando deu um apoio moral para que fosse eu, afinal, eu que estava conhecendo esta via, e vai saber quando estaria ali de novo. Este seria o trecho mais duro que guiaria, mas estava empolgado. O crux seria uma sequência de dois lances de VIIa (embora eu tenha achado o primeiro lance mais duro que isso, e o segundo um VIsup).

    Esta enfiada se inicia num belo trecho vertical de Vsup, com proteções próximas, logo emendando numa travessia em aderência, então chegando no famoso teto “Space Station”. O primeiro lance de VIIa é bem protegido por duas chapas, mas é uma movimentação difícil. Consegui ganhar um bom pé direito alto na altura da primeira chapa, mas não encontrei agarras decentes para as mãos, nem ao pé esquerdo, para ficar sólido e progredir dali. Tentei umas quatro vezes, sem sucesso, percebendo que talvez fosse uma graduação até mais alta. Quando se trata de escalada tradicional a “dignidade da cadena” não é levada às máximas consequências como numa escalada esportiva (mais curta), então tirei minha fita de 120cm a tiracolo, clipei na segunda costura e enfiei o pé direito para ganhar altura – o que chamam de “artificializar” o lance. Mas quem disse que seria fácil sair dali?

    Assim que ganhei altura achei um pequena reglete para o pé esquerdo, e me esforcei para equilibrar ali. Não teria muito tempo de firmeza nessa posição, então me lancei para a base da fenda que sobe verticalmente para o restante da via, e a peguei com a mão esquerda, aliviando a tensão. Esta fenda tem uns 3 metros e logo na base encaixei um friend, subi mais um pouco, outro friend bem colocado, e então o crux do lance: fazer a virada e sair por cima dela. Felizmente há um bloco meio abaulado, mas que se pegar da maneira certa vira um belo agarrão. Ensaia o movimento, um, dois e vai. Pé esquerdo alto, ganhei o blocão e acabei numa posição de equilíbrio delicado. Àquela altura não queria perder a posição, tanto pela queda no friend abaixo quanto na necessidade de refazer o delicado movimento, então encaixei dois microfriends em uma fissura decente, enquanto ficava trocando os pés de agarras, buscando uma posição menos extenuante e estressante. Dali para a parada faltava pouco, cerca de 2 metros, mas para ficar bem tranquilo mesmo encaixei um friend médio #1, à prova de bomba, e fiz o último lance mais delicado para chegar na parada. Pronto, a partir daí seria só passeio para mim. Tinha guiado minha última enfiada da via, e as que faltavam seriam guiadas pelo Fernando.

    Foto: Teto Space Station

    Foto: Fernando chegando na P5 (camalot #1 bomber pra tranquilizar)

    Agora só havia uma longa travessia para esquerda, de quase 60 metros, que era possível ser feito em uma ou duas paradas, e a última enfiada, do crux final (literalmente o último movimento dos 280m). O Fernando guiou a travessia emendando as duas paradas, pouco protegidas, mas de baixa dificuldade. Aproveitamos esses trechos mais fáceis e confortáveis, e a luz perfeita, para tirar mais fotos. Então, chegou a última enfiada, uns 20m que se inicia na travessia, e logo sobe uma parede bem vertical, ao lado de um diedro, que apresenta boas agarras no seu começo, mas se escasseiam até sobrar um pequeno número de regletes diminutos, onde se dá o lance final de sétimo grau.

    Foto: travessia da P5 para P7

    Foto: P5 para P7

    O problema é que este diedro estava bem encharcado. Eu imaginei que não daria para escalar por ali, e teríamos que seguir por um final alternativo, mais fácil. Mas o Fernando, que já tinha escalado esta via, disse que seria possível então foi guiando. Rapidamente subiu a primeira metade e chegou bem até a última proteção, mas teve dificuldade em passar o crux final, até por não poder usar nenhuma parte do diedro molhado. Tentou algumas vezes, e no fim usou da mesma artimanha que eu tinha usado no crux anterior: uma fita na última chapeleta, e pisa fundo. Vai-se a dignidade, mas chega-se ao topo. Logo acima estava a parada e eu fui na sequência. Também tive dificuldade no último lance, regletes finos, que chamamos de “facas”. Fui aos trancos e barrancos, dei uma roubada segurando na fita, uns pés delicados, e pronto. Via realizada, às 15h estávamos no cume do Baú, pouco mais de 4h30 de escalada.

    Foto: entrando no último trecho, bem protegido até o último crux

    Ainda aproveitamos o tempo incrível para tirar mais fotos, comer, descansar, e a descida pela escadinha contou com o clássico atraso por conta de turistas mais precavidos. Chegando no restaurante do Baú, uma cerveja pra comemorar, mais fotos e partimos para jantar um rodízio de pizza com os familiares. O dia seguinte ainda teria mais escalada tradicional, e tínhamos que acordar cedo para chegar na base porque sabíamos que tinham várias duplas já querendo escalar a mesma via...

    Ana Chata – via Peter Pan

    Acordamos mais cedo, saímos da casa às 7h, e às 8h paramos no estacionamento Chico Bento. Já havia mais de 20 carros e até uma van, estava cheio. Eu já tinha ido duas vezes lá, alguns anos atrás, e não tinha cruzado com nenhuma alma. Agora, desde a pandemia se não me engano, tem até guarda para cobrar o estacionamento e controlar a entrada pelo sistema de reserva. O sujeito disse que já tinham subido umas 15 pessoas, então quis apurar, e talvez chegar antes na base da via que pretendíamos, a Elektra. Esta via é bastante concorrida por alguns motivos: sua dificuldade não passa de um quinto grau bem protegido, ela possui uma linda enfiada inteiramente em móvel, que é muito tranquila para quem está começando nesse tipo de escalada, tem um ângulo extremamente fotogênico em sua última enfiada com linda vista para o Baú e, principalmente, consta no livro “50 Escaladas clássicas do Brasil” da Companhia da Escalada, ou seja, todos querem ticar essa via.

    Foto: fila na via Lixeiros

    Bom, cruzamos com algumas pessoas no caminho, ultrapassando-as, pegamos o atalho reto após a araucária, subimos a trilha íngreme e chegamos na base da Elektra. Já havia uma dupla na primeira enfiada, e um trio aguardando. Pensamos um pouco e resolvemos ver como estava a Peter Pan. Esta via tem uma graduação parecida com a Elektra (alguns, inclusive eu, acham a enfiada inicial mais apimentada que qualquer uma da Elektra), e é famosa por ter uma colmeia de abelhas por perto. Eu mesmo já fui na Ana Chata com a intenção de escalá-la em agosto de 2021, mas desisti pois o enxame estava voando furiosamente bem na primeira enfiada e escolhi outra via. Mas desta vez analisamos bem e não encontramos nenhuma atividade apiária. Ouvimos dizer que elas saem das colmeias mais para o fim do inverno. Resolvemos escalar em total silêncio, rapidamente e prestando atenção ao entorno.

    Foto: 1a enfiada, 1a proteção, não pode vacilar

    Nesta via foi a vez do Fernando iniciar a guiada. Até a primeira proteção realmente há uma exposição chata, e a graduação parece maior que o 3o grau indicado no guia. Guiei a segunda enfiada, que começa em uma travessia diagonal para esquerda, e logo aparece o crux de IV grau (mas achei até mais delicado que isso), com um pé esquerdo em uma aderência bem inclinada. Depois a via segue vertical em lindos lances de agarra, fenda e equilíbrio, sempre em proteção fixa, até fazer outra travessia, dessa vez para direita, chegando-se na segunda parada.

    Foto: No meio da segunda enfiada

    Continuamos nos comunicando por sinais, evitando o barulho. No terceiro trecho há o crux de toda a via, um IVsup bem protegido e divertido num diedro com agarras. Rapidamente passamos esse trecho com o Fernando guiando, e a enfiada seguinte, que inicia bem vertical mas logo se entra numa travessia de caminhada, passou num instante. Na quarta parada agora estávamos no trecho final onde a linha da Peter Pan se junta à via Lixeiros, outra clássica local.

    Foto: início da terceira enfiada

    Foto: crux

    A quinta enfiada começa num lance vertical com verdadeiros agarrões e buracos, mas não dá para vacilar, porque qualquer queda ali pode chegar no platô. Alternando novamente, o Fernando a guiou (foi a terceira vez que escalei essa parte, já que tinha feito a Lixeiros duas vezes, ambas guiando, e foi legal ir de segundo para curtir os movimentos).

    Foto: travessia para P4

    Foto: P4

    Quinta e última parada, e segui guiando o último trecho, que se passa toda pela crista lateral da Ana Chata. Mais algumas fotos para registro neste lindo dia, e chegamos ao cume praticamente 2 horas após iniciar a escalada. Descansamos, comemos aquele sanduíche de doritos com polenguinho, e descemos a trilha (sem necessidade de rapel) cruzando com bastante gente (e até cachorro no colo de uma senhora) que aproveitava o dia.

    Foto: última enfiada, crista da Ana Chata

    Foto: chegando à P6, última parada, cume

    Voltei para a casa que estava a família a tempo para o almoço, e o Fernando ficou em São Bento para dar um rolê de bike. Ainda teve a infelicidade de furar o pneu e voltar andando alguns quilômetros para seu carro, chegando tarde da noite em Americana.

    No fim das contas o fim de semana rendeu bem mais que o esperado. Duas vias que não tinha feito ainda, incluindo a Transbaú, a qual sempre tive vontade de fazer, mas sabia que precisaria estar com um certo nível de capacidade técnica e mental. Cadenando todos os movimentos, ou não, sai muito satisfeito de ter feito em um bom ritmo, considerando diversas passagens acima do quinto grau (que em escalada tradicional é bem diferente de esportiva) e a exposição. Para quem já não é tão jovem ou talentoso a evolução é lenta, mas as vezes aparece aos insistentes.

    Felipe Romano
    Felipe Romano

    Publicado en 04/05/2023 17:16

    Realizado desde 21/04/2023 al 22/04/2023

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    1 Comentarios
    Diana Sanches 05/05/2023 09:05

    Que lindas as imagens! 👏🏽👏🏽👏🏽

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    Felipe Romano

    Felipe Romano

    Americana/SP

    Rox
    165

    Escalador de fim de semana e montanhista amador

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