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SHIT TUBE: UM ASSUNTO DE BOSTA

    Texto de Guilherme Cavallari sobre a necessidade do uso de shit tube ou similares em atividades de aventura no Brasil

    Quem faz trekking no Brasil com certeza já viveu a desagradável experiência de encontrar fezes humanas expostas no caminho. Cocô em áreas de acampamento, caca no meio da trilha, merda até ao lado de fontes d’água e outras barbaridades! Pra piorar, quase sempre as fezes vêm acompanhadas do correspondente papel higiênico carimbado, provando que a obra não foi acidental, foi programada!

    Uma bosta! Literalmente.

    Por conta disso, a questão de como lidar com fezes humanas em áreas naturais remotas, como trilhas e parques, tem ganhado cada vez mais importância entre os praticantes de esportes de contato com a natureza. Infelizmente, o inegável aumento de visitantes nas trilhas, ocorrido nas últimas décadas, não trouxe o aumento proporcional na educação e na consciência ambiental. Nenhuma surpresa, já que não foram realizadas grandes campanhas nesse sentido, pouquíssimas pessoas ou entidades deram um passo a frente e assumiram responsabilidade sobre o tema. Não dá pra reclamar, né? Como esperar mudanças se seguimos fazendo tudo igual?

    Indivíduos e grupos de aventureiros mais comprometidos adotaram, como medida particular de ação, o uso de shit tubes — canos de PVC com tampas, usados para coletar e transportar as próprias fezes, e similares. Daí o nome que, em tradução literal seria “tubo de bosta”. Em inglês parece chique. O objetivo é coletar os desejos orgânicos sólidos e trazê-los de volta ao ambiente urbano, sem deixar uma partícula fecal no meio natural. Até rimou.

    Isso é eficiente? É recomendável? Soluciona o problema do impacto ambiental causado pelas fezes humanas na natureza? Deveria fazer parte da ética aventureira? As respostas poderiam ser todas resumidas numa única palavra: depende.

    Nos Estados Unidos e na Europa, onde a cultura de aventura é muito maior e mais antiga do que no Brasil, essa questão vem sendo estudada e debatida amplamente. O parque nacional mais visitado dos EUA — o Great Smoky Mountain National Park — recebe mais de 12 milhões de pessoas por ano. O Parque Nacional do Itatiaia, o mais antigo do Brasil e tradicional destino de trekking, recebeu, em 2018, o recorde de mais de 17.800 visitantes. Nos EUA, alguns parques nacionais entregam atualmente aos visitantes, grátis, um saco plástico com vedação para uso como banheiro nas necessidades sólidas, para o “número 2”. Dentro do saco tem ainda um pó mágico, desenvolvido pela NASA, que acelera a decomposição das fezes, eliminando inclusive o odor. Uma medida que não era necessária até o passado recente, quando o número de pessoas nos parques era bem menor, mas ainda na casa dos vários milhões. Esses dados comparativos servem para ilustrar que a questão das fezes humanas em áreas de proteção ambiental está diretamente relacionada à quantidade de visitantes, não à questão das fezes em si. Ou seja, fezes humanas não são material radioativo que deve ser evitado a todo e qualquer custo. Assim, falando reto, a necessidade de uso de shit tube e correlatos depende do tamanho da cagada coletiva e não simplesmente a realidade da cagada.

    Nos EUA, de clima temperado, o solo congela em boa parte do país nos meses de inverno, resultando em que fezes enterradas demorem cerca de 12 meses para biodegradar. No Brasil, de clima tropical ou subtropical, esse tempo pode ser diminuído em apenas 3 meses em algumas regiões, ou muito menos. Ainda nos EUA, as montanhas são mais altas, a latitude é maior, criando zonas alpinas onde altitude, latitude e clima impedem o crescimento de qualquer vegetação. Com muito menos biodiversidade, inclusive bacteriana, capaz de dissolver as fezes, todo o processo fica bem mais lento. No Brasil, onde todos nossos picos mais altos estão abaixo de 3 mil metros de altitude e possuem algum tipo de vegetação, mesmo que rasteira, qualquer aporte de matéria orgânica no solo é bem-vindo por se transformar em adubo. Resumindo: a necessidade de uso do shit tube também está relacionada ao clima, relevo, fauna e flora. Aqui no Brasil tudo isso está a nosso favor.

    No famoso parque nacional Torres del Paine, na Patagônia argentina, destino visitado por aventureiros de mundo todo, existem banheiros (latrinas secas) em todas as áreas de acampamento. Acampar fora dessas áreas é expressamente proibido. Essa restrição do impacto ambiental e sua concentração é bastante eficiente e muito econômica. Em parques na Nova Zelândia, por exemplo, a mesma medida é adotada com a mudança regular do local dessas latrinas para não acumular muito impacto ambiental. Tanto Torres del Paine quando a maior dos parques neozelandeses estão em áreas de bosques, onde a vegetação e a fauna invertebrada dá conta de fazer as fezes humanas desaparecerem sem prejuízos às áreas naturais. Não faltam exemplos de sucesso nesse sentido em diversos países do mundo.

    A defesa do uso geral e irrestrito do shit tube como medida universal obrigatória passa muitas vezes por uma visão equivocada do perigo das fezes humanas. Existem muitas doenças transmissíveis pelos excrementos, sem dúvida, algumas letais inclusive, mas isso só acontece se esses excrementos estiverem contaminados, se as pessoas estiverem doentes. Para tratar a questão de forma científica e não alarmista, devemos nos perguntar: Qual o percentual de seres humanos com doenças transmissíveis via fezes? Como acontece essa transmissão? Qual o percentual estatístico de transmissão numa área de camping ou numa trilha? Quanto tempo os vetores dessas patologias resistem no ambiente natural? Depende. Tudo depende. Esses fatores variam muito em função, por exemplo, do saneamento básico disponível à população. Áreas melhor munidas de sistema de tratamento de água e esgoto, como as regiões Sul e Sudeste do Brasil, têm índices muito menores de doenças típicas de falta de saneamento mais comuns, por exemplo, nas regiões Norte e Nordeste do país. Os praticantes de esporte de aventura no Brasil, aqueles que frequentam trilhas e acampamento, são quase todos da classe média urbana, que dispõe de boas condições sanitárias em comparação com habitantes das zonas rurais e de menor renda. Como sabemos, saneamento básico no Brasil é mais um item, como tantos, de desigualdade social. Já a transmissão de doenças através de fezes em aventura se dá normalmente pelo consumo de água disponível no meio natural. As regras, no entanto, são claras: 1) Não se deve defecar próximo a fontes ou corpos d'água. 2) Toda água deve ser tratada antes de ser consumida na natureza. Ou seja, basta ferver, filtrar ou tratar quimicamente a água antes do consumo e os riscos de contaminação em campo praticamente desaparecem. Basta enterrar as fezes de forma apropriada longe de corpos d'água e esses riscos desaparecem.

    Na tentativa de impor o uso do shit tube não faltam argumentos conspiratórios, sem embasamento científico, que vão desde o risco da contaminação de bacias hidrográficas e lençóis freáticos até o risco de fezes serem desenterradas pela fauna local. Cenários dignos de filme-tragédia. Situações de excessão. As fezes enterradas ou mesmo deixadas a céu aberto sofrem ação do tempo, do clima e dos agentes decompositores. Elas não duram muito tempo. Imediatamente começam a secar, serem absorvidas e desintegradas. Para haver contaminação de corpos d'água o volume de fezes deve ser proporcional ao volume do corpo d'água, ou seja, pra contaminar um riacho de água corrente é preciso muita matéria orgânica.

    Pensem no exemplo prático do coador de café. São necessárias três colheres de sopa de pó de café num coador de pano pra fazer um litro de café forte. Imaginem que meio quilo de fezes humanas são capazes de contaminar, com a quantidade mínima de coliformes fecais, bactérias e vírus (havendo vírus no sistema de quem fez a cagada, obviamente), um corpo d'água muito pequeno por quatro a oito semanas. Ou seja, defecando diretamente na água. Fazendo a mesma quantidade de cocô a um metro de distância do mesmo corpo d'água, a contaminação perde, digamos, 20% de sua potência. Se aumentarmos a distância, a diluição do material fecal diminuirá até chegar a zero. O conteúdo orgânico será disperso, diluído, desintegrado antes de chegar ao corpo d'água. Seria como adicionar coadores de café à mesma quantidade de pó. O café vai ficar cada vez mais fraco até não ser mais passível de mudar cor e sabor da água. Simples assim.

    Pra usar um exemplo de trilha, a crista da Serra Fina não consegue contaminar as bacias hidrográficas nas bases da montanha com o volume de fezes das centenas de pessoas que acampam em sua crista num feriado prolongado. Impossível. A área da crista até a bacia hidrográfica é grande demais. Ainda estou esperando encontrar um estudo científico que defina a proporção de fezes humanas necessária pra contaminar um determinado corpo d'água. O bom senso me diz que respeitar a regra de defecar e enterrar as fezes a pelo menos 70 metros (200 pés) da água basta. Esse espaço e mais que suficiente para decompor tudo.

    Pensando então nesses conjuntos de argumentos comparativos, faz sentido afirmar que, no Brasil, é melhor enterrar as fezes do que transportá-las de volta pra casa. Obviamente, desde que respeitados os devidos protocolos funerários da caca. A opção de trazer as fezes na mochila é mais complicada, implica em riscos de acidentes (imagine se o shit tube abrir e lambuzar a mochila), riscos de autocontaminação (pelo manuseio da bosta em locais muitas vezes com escassez de água pra higiene), além do trabalho pouco discutido de despejar tudo depois e limpar o tubo. Some à lista o custo (embora mínimo) do próprio shit tube ou correlato.

    Em áreas naturais extremamente preservadas ou intocadas (cada vez mais raras e praticamente inexistentes em algumas regiões do Brasil), o protocolo de mínimo impacto ambiental determina que tudo o que não for endêmico à região visitada deve ser trazido de volta. Tudo, inclusive as fezes. A urina pode ser deixada pra trás, desde que respeitados alguns cuidados (como não urinar em plantas, em especial as raras, não urinar em corpos d’água de pequeno volume, dar preferência por urinar em superfícies que facilitem a absorção ou a evaporação, etc). Nessas situações (não é o caso das trilhas clássicas brasileiras), o shit tube não é apenas recomendado, mas obrigatório.

    Mas outras questões em relação ao uso indiscriminado do shit tube me incomodam até mais que a falta de lógica ambiental ou estatística. Como visto, no Brasil, enterrar as próprias fezes na natureza, desde que de forma correta, é sem dúvida mais eficiente do ponto de vista biológico na imensa maioria dos casos. Enterrar o próprio cocô na natureza diminui inclusive o impacto desses dejetos nos centros urbanos, nem sempre eficientes no seu tratamento (quase metade das residências brasileiras, mais de 48%, não possuíam esgoto tratado em 2018). Fico incomodado ao saber que a maioria dos usuários de shit tube faz cocô num jornal com um pouco de cal, embrulha o presente orgânico, envolve o pacote num saco plástico e deposita no tubo. Dependendo do tamanho do invólucro, dá pra fazer três ou quatro cagadas. Essas bombas biológicas, no entanto, são depois jogadas no lixo comum, numa atitude completamente anti-ecológica! Os pacotinhos vão parar em aterros sanitários e vão demorar séculos para desaparecer, podendo contaminar o aterro sanitário, os trabalhadores do lugar, o equipamento, o solo, lençóis freáticos e afins. Enterrar, além de muito mais natural, nesse caso é também inegavelmente menos impactante contra o meio ambiente. No final, só existe um planeta e apenas um meio ambiente.

    Quem, no entanto, escolheu o shit tube como método pessoal de minimizar seu impacto ambiental e se sente confortável com isso, não tem porque descontinuar o processo, basta fazer tudo certo até o fim. Considero o gesto e o compromisso louváveis. Acho fantástico. Uma atitude quase monástica e sem dúvida muito altruísta. Um ato revolucionário. Dou o maior apoio! Mas, do ponto de vista da mensagem política enquanto campanha coletiva, penso que se queremos difundir as atividades de aventura, popularizar os esportes de contato com a natureza, disseminar a cultura outdoor, o discurso da obrigatoriedade de uso do shit tube não ajuda. Como fica, por exemplo, o processo de introdução de novos aventureiros diante da opção entre enterrar as próprias fezes ou usar shit tube? O que é mais acolhedor, mais barato, mais simples e mais fácil? O que é mais eficiente como programa de inclusão de pessoas urbanas ao meio natural?

    E aqui vale o parênteses: quanto mais gente empolgada em apreciar a natureza de forma ativa, mais engajamento haverá na luta pela preservação ambiental e, também, maior será o impacto e maiores os problemas. Nunca existe almoço grátis.

    Nossa realidade nacional, de imensa desigualdade social, exige soluções mais inclusivas. Não é difícil explicar a um novato na aventura que fezes expostas na trilha causam, no mínimo, má impressão. Tampouco é difícil ensinar alguém a cavar um buraco para o número 2. Nem precisa de pazinha, qualquer graveto faz o trabalho (só precisa enterrar o graveto junto com a bosta depois). Tentar explicar as vantagens por trás do conceito de carregar as próprias fezes de volta pra casa é bem mais delicado, pra não dizer mais difícil. É, inclusive, controverso. Usar corretamente e transportar com segurança um shit tube merece filminho didático no Youtube, cavar buraco não. Acho fácil imaginar um novato de trilha desistindo da atividade ao pensar em todo o malabarismo escatológico envolvido para apenas cagar no mato. Isso adicionado aos problemas que todo iniciante enfrenta pra carregar a mochila, montar barraca e fazer o rango no acampamento. Nesse cenário, considero a proposta de introduzir o uso do shit tube como medida geral e irrestrita um tanto irreal, além de um pouco elitista. Típico do cenário nacional. Algo como discutir a necessidade de gasolina especial pra carros de luxo, ou argumentar pela liberação do limite de velocidade em algumas rodovias, quando o país anda de busão.

    Daí vem a pergunta capciosa: sou contra o uso de shit tube? Depende.

    Por necessidade, em ambientes como cavernas, praias, geleiras, escaladas em rocha de mais de um dia de duração (chamadas de Big Wall), biomas desprovidos de vegetação ou intocados pela mão do homem, sou 100% a favor do shit tube ou semelhantes. É nossa obrigação. Isso já faz parte da ética na aventura. Como política pública geral em parques brasileiros? Se fizer sentido, como explicado, do ponto de vista biológico, preservacionista e social, se houver embasamento científico alicerçado por pesquisas, sou a favor. Caso contrário, se for apenas a cópia superficial de uma medida adotada no estrangeiro e mal interpretada no Brasil, sem a devida adaptação à realidade nacional, sou contra. Considero a medida exagerada e improdutiva.

    Quando comecei na aventura, quase cinco décadas atrás, eu nem sempre fazia um buraco para ir ao banheiro. O volume de pessoas nas trilhas era tão pequeno que até alguém passar no local novamente o tempo e as moscas já teriam sumido com tudo. Afinal, não é assim que os bichos fazem? Agora é diferente. Muito mais gente, muito mais impacto. O Brasil, felizmente, também evoluiu em sua consciência ambiental. Atualmente os incêndios na Amazônia ferem também nosso sendo de ética planetária, além da óbvia agressão ao meio ambiente. O mesmo vale para a caça como hobby, que pra mim é simples assassinato. Hoje não saio pra aventura sem levar uma pazinha (tenho uma coleção, algumas ultra high-tech inclusive). Mas, sinceramente, ainda não vejo a necessidade de usar um shit tube. Consigo, por exemplo, esperar pra fazer cocô longe do acampamento, consigo me afastar da trilha e de corpos d'água pra defecar, consigo até não ir ao banheiro até sair da trilha se for preciso. No final, tudo se resume a atitude pessoal responsável e não necessariamente a imposições sociais.

    .......

    Obs.: Esse e outros textos de opinião, todos de autoria de Guilherme Cavallari, foram publicados originalmente no site da Kalapalo Editora

    Guilherme Cavallari

    Guilherme Cavallari

    Gonçalves - MG

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    Fundou e dirige a KALAPALO EDITORA desde 2001, produz e distribui conteúdo sobre aventura, com ênfase em mountain bike e trekking. Vive em Gonçalves (MG), no REFÚGIO KALAPALO.

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