Texto por Igor Costa e Verônica Reis. Foto por Daniel.
Transporte Rio de Janeiro x Marmelópolis (SP) x Início da Trilha
Nos dias 30 e 31 de julho de 2022, um grupo do Centro Excursionista do Rio de Janeiro (CERJ) - e um agregado - realizou a famosa travessia Marins x Itaguaré, na Serra da Mantiqueira. O grupo era composto por Daniel (o guia da aventura), Alexandre 'Xandão', Verônica Reis, Priscila, Isabela, Pedro e Igor Costa.
Saímos do Rio de Janeiro no dia 30 de madrugada (01:45), sendo conduzidos até a cidade de Marmelópolis (SP) pelo Sr. José Luis. Por volta das 06:00 da manhã estávamos já na cidade, onde aproveitamos para tomar um café da manhã reforçado na Padaria do Chico, que serve um excelente pão com ovo - este, aliás, deixou nosso guia fascinado. Dali a pouco, o resgate do Sr. Clóvis veio e nos levou até o acampamento base do Marins. O lugar estava lotado de trilheiros que já partiam rumo à subida. Sem mais demoras, vestimos nossas cargueiras, ajeitamos nossos bastões de caminhada e partimos para o primeiro dia da jornada às 08:30.
Cada um de nós levava cerca de 6 litros de água (alguns um pouco menos), com exceção do brabíssimo Xandão, que levava apenas 2 litros, o que nos deixou impressionados. Contudo, não tente você fazer uma coisa dessas, pois ele é um aventureiro experiente que está treinado para caminhar longos períodos com pouquíssima hidratação e, como comprovamos ao longo do caminho, a travessia não nos forneceu uma gota sequer de água potável nos dias pelos quais passamos por ela.
Dia 01
Do início à Base do Marins
A primeira parte da travessia nos levou por uma trilha bem coberta por área de mata atlântica. No início o caminho não é muito íngreme e a subida foi ligeira. Nesse momento visualizamos as primeiras plaquinhas do Corpo de Bombeiros numeradas (de Z1 a Z60, como descobriríamos ao final), indicando a zona em que estávamos caso precisássemos de resgate. Após um pequeno mirante em que o Pico do Marins se descortinou pela primeira vez à nossa vista, o trecho ganha inclinação e avançamos até o Morro do Careca, onde muitos trilheiros já faziam o primeiro descanso da subida. Nós não nos detivemos ali, mas avançamos logo para a subida de fato, em área descoberta de vegetação alta. O dia estava lindo, o sol brilhante e após uma primeira subida bem íngreme, chegamos aos primeiros costões rochosos - característica da travessia nesse primeiro dia de jornada.
Nesse ponto a travessia começou a ficar um pouco mais exigente. É preciso ter algum cuidado com as subidas e atenção para não escorregar nas pedras, mas nada muito técnico ou complicado. A navegação também não é muito complexa nesse trecho, visto que há muitas pessoas passando e alguns totens estrategicamente colocados indicando o caminho. Nos trechos finais, no entanto, há alguns pontos em que o trilheiro precisa de mais atenção, pois caminhará por beiradas de paredões rochosos e terá que fazer algumas escalaminhadas mais técnicas. O ponto alto desse momento é a famosa Subida da Fenda. Apesar de um pouco intimidadora, ela é facilmente transposta, sem sequer precisar descer a cargueira, basta ficar atento e fazer a pequena escalada com respeito pela montanha. Pedro e Isabela, que têm experiência em escalada, preferiram subir o trecho à direita da fenda. Verônica os acompanhou. Todos disseram que também não era uma subida complexa.
Costões rochosos são uma constante durante a travessia.
Após esse ponto, caminhamos mais um pouco e paramos para um primeiro lanchinho - eram 11:30 da manhã. Daí avançamos para a base do Pico do Marins, de onde partiríamos para o ataque ao cume. A vista da montanha erguendo-se em sua imponência é impressionante! Priscila, nesse momento, se sentiu um pouco indisposta e preferiu ficar na base, o que permitiu que deixássemos as mochilas e fizéssemos o ataque leves.
Ataque ao cume do Pico do Marins
O ataque ao cume do Pico dos Marins (alt. 2.421m) foi feito de maneira lijeira. Havia dezenas e dezenas de grupos subindo a montanha, de modo que existem até filas em alguns momentos. Vários caminhantes resolvem acampar ou no cume ou na base da montanha para ver o nascer e pôr do sol do lugar e, como há muitas pessoas, os espaços são disputadíssimos. Logo, quem chega primeiro tem prioridade.
A subida em si foi talvez o momento mais técnico do dia. Há um grande paredão rochoso que precisa ser vencido apenas na aderência da bota na pedra. Na maioria desses trechos de paredão, não existe apoio, não tem corda, não tem agarras na rocha para segurar com as mãos... Resta ao caminhante confiar na sua habilidade e na aderência do solado da bota. Alguns de nós, com nenhuma experiência de escalada - Verônica e Igor - achamos o trecho levemente desafiador e, em certos pontos, tivemos ajuda dos outros membros do grupo, que já têm experiência de rocha. Novamente, não é nada muito impossível de se fazer e muitas pessoas com pouquíssima esxperiêcncia subiam o techo. Basta disposição para encarar a montanha.
Ao chegarmos ao topo, dezenas de pessoas montavam suas barracas e tiravam fotos e se moviam de um lado para o outro. Arrumamos um cantinho para apreciarmos a vista. Um mar de nuvens baixas cobria a paisagem abaixo da montanha, dando um ar quase mágico à vista. À nossa esquerda erguia-se o Pico do Marinzinho (nosso próximo destino). Depois dele, bem pequenina, a Pedra Redonda (onde planejávamos acampar naquele dia) e, após ela, o nosso destino: o Pico do Itaguaré. Ficamos todos impressionados com a beleza dessa montanha, que nos lembrou as formações rochosas do Itatiaia, como o Pico das Agulhas Negras e as Prateleiras. Lá ao fundo, muito depois do Itaguaré, erguia-se a imponente Serra Fina, coroada pela majestosa Pedra da Mina.
Isabela e Pedro apreciam a bela vista do cume do Marins.
Após algumas fotos e breve descanso, assinamos o livro e tomamos rumos diferentes: Daniel, Isabela e Pedro decidiram fazer o ataque aos cumes menores que acompanham o Pico do Marins (Maria e Mariana); Verônica, Igor e Xandão decidimos voltar e ficar com nossa amiga Priscila aguardando o retorno do primeiro grupo. Aproveitaríamos para almoçar e descansar um pouco enquanto eles se aventuravam por lá.
Do Marins ao Marinzinho
Quando eles retornaram, por volta das 14:30, seguimos rumo ao Marinzinho. Já cansados, a subida do costão rochoso nos pareceu mais desgastante do que deveria. Após essa primeira subida, tivemos que descer até um pequeno vale, onde atravessamos um brejinho e, de novo, fizemos uma subida que envolvia alguma escalaminhada até finalmente alcançarmos o Pico do Marinzinho (alt. 2.432m). Lá nos esperava uma grata surpresa: uma moça toda de rosa tomava sol tranquila e solitariamente ali no topo. Seu nome era Karina e ela bateu um longo papo conosco, nos infomando que inúmeros grupos já haviam passado por ali naquele dia em direção à Pedra Redonda, onde pretendíamos acampar, e que provavelmente teríamos dificuldade de encontrar área de acampamento por lá. Ela acabou nos dizendo que ali próximo, muito próximo mesmo, tinha duas áreas de camping bem demarcadas. Essa era a saída do Sítio do Maeda -- Hideki Maeda (1940 - 2020) foi o montanhista que, em 1993, abriu e sinalizou a travessia Marins x Itaguaré.
Primeiro trecho de subida do Marinzinho.
Ponderamos entre nós o que deveríamos fazer e acabamos por decidir ficar por ali mesmo. Sobretudo porque Karina nos avisou que o trecho até a Pedra Redonda seria bastante puxado -- o que é verdade, como comprovamos no dia seguinte -- e porque estávamos já bastante cansados da jornada do dia. Além disso, não queríamos correr o risco de não encontrar acampamento nas proximidades da Pedra Redonda e termos que continuar até os acampamentos mais distantes, já próximos à base do Itaguaré. Aliás, descansar ali não nos prejudicaria no dia seguinte e seria menos temerário do que caminhar à noite por um trecho difícil.
Essa foi uma sábia decisão. Montamos acampamento por volta das 17:30 e, enquanto alguns resolvemos descansar, outros voltaram ao Marizinho para apreciar o pôr do sol, que nos premiou com uma linda paleta de cores, que foi aos poucos mudando do laranja para o lilás. À noite o céu noturno revelou-se estrelado com um fiozinho de lua crescente para coroar o firmamento. Era mais do que podíamos pedir à montanha. Antes de irmos dormir, Karina saiu de seu refúgio no topo de um monte próximo e veio bater papo conosco. Depois que ela foi embora, enfiamo-nos em nossas barracas e descansamos para a jornada do dia seguinte. Ventou um pouco e nosso termometrozinho de mercúrio -- quão confiável ele deve ser, não sabemos -- marcou cerca de 4ºC por volta das 04:00 da manhã.
Dia 02
Do Marinzinho à Pedra Redonda
No dia seguinte, acordamos cedo e partimos por volta das 07:30 da manhã. O nascer do sol foi menos espetacular do que o pôr e, enquanto ele subia no horizonte, avançamos rumo ao trecho que prometia ser o mais difícil do dia: a descida do Marinzinho, em uma parede que matém uma corda disponível aos trilheiros -- sempre bom lembrar que se deve verificar antes se a corda está boa e, caso não esteja, é importante usar a do próprio grupo. No nosso caso, usamos a que estava lá mesmo.
Marins à esquerda, Marinzinho à direita e à frente muitas ubidas e descidas.
No fundo, esse trecho não é nada difícil e basta um pouco de atenção e cuidado para chegar até lá embaixo. Depois basta caminhar até o fundo do vale e deixar o Marizinho para trás. Em seguida, vem um longo trecho de subidas e descidas pela crista da montanha, com uma vista espetacular dos vales no entorno. A região é rochosa e coberta por uma vegetação de arbustos retorcidos que nos agarram por todos os lados. A navegação não é muito complexa, pois a trilha está razoavelmente delineada e há muitos totens indicando o caminho, mas é uma caminhada cansativa embaixo do sol quente, com trepa-pedras constantes. É importante, portanto, ficar atento à hidratação, mas, também, não desperdiçar água.
Caminhando à beira do abismo com um sorriso no rosto.
Por volta das 10:30 da manhã alcançamos a Pedra Redonda e paramos para um lanche -- a second breakfeast, diria um hobit -- e umas fotinhas. Nesse ponto vimos que a decisão de permanecer no acampamento na Saída do Maeda fora sensata -- ter andado todo esse trecho no fim do dia, cansados e potencialmente à noite não seria uma boa ideia.
Dali partimos então para o Itaguaré, que se erguia imponente à nossa frente, cada vez maior e mais bonito à medida que nos aproximávamos.
Da Pedra Redonda à Base do Itaguaré
Após descermos a Pedra Redonda, confirmamos que nossa jornada do dia seria marcada por um longo e cansativo sobe e desce: de um cume a um vale a outro cume e assim por diante.
A famigerada Pedra Redonda, que não é lã tão redonda assim.
Logo após o primeiro trecho de descida há uma grande área de acampamento. Nesse ponto, ficamos surpresos com o cheiro de fezes que exalava de uma pequena trilha que saía desse acampamento e havia até um saco de lixo suspeito largado ao relento. Apesar da exigência de shitube na região, não vimos qualquer fiscalização a cobrar esse equipamento dos trilheiros. Uma pena.
O terreno nessa parte da travessia é menos rochoso e a vegetação é menos arbustiva, sendo mais comuns os campos de altitude com seus capins que, em alguns momentos, passam dos dois metros de altura. Em algumas descidas mais íngremes, adentramos até pequenos capões que crescem nos fundos dos vales -- mas não se engane: ainda estávamos no cimo da montanha e não há água disponível nesses trechos. Não há muito o que falar dessa região.
No fundo, Marins à esquerda, Marinzinho à direita e a Pedra Redonda (bem pequenininha) ao centro.
Mais ao final, já nas proximidades do Itaguaré, o solo volta a ser mais rochoso e há alguns trechos de escalaminhada. É nesse momento que estão as famosas passagens apertadas por entre algumas pedras, nas quais é necessário se agachar e, para alguns, até mesmo retirar as cargueiras para facilitar a travessia. Nada muito complexo ou cansativo, contudo.
Depois desse ponto, no qual há um longo trecho de trepa-pedras, já nas flanges do Itaguaré, paramos para um último lanche -- third breakfeast? -- e, por fim, caminhamos até a Base da Montanha, que chegou mais rápido do que o esperado. Igor, que estava cansado e querendo poupar energia -- e que já estava planejando um retorno à trilha em breve -- achou melhor não fazer o ataque ao cume e ficou com as mochilas na base, de modo que o restante do grupo pôde subir leve, levando apenas uma corda e alguma água.
A feliicidade de quem se aproxima do trechos finais após um longo dia de caminhada.
Ataque a cume do Itaguaré
O Itaguaré (alt. 2.308m) é certamente o pico mais bonito da região, e, para alegria de muitos -- e tristeza de outros --, a subida até o cume é relativamente tranquila. Até a página 2. Inicia-se com uma caminhada leve, passando por alguns lírios vermelhos -- carta carimbada da Serra da Mantiqueira -- e algumas partes de escalaminhada que demandam maior cuidado e esforço físico.
A página 2 começa na passagem conhecida como "pulo do gato" - trecho em que a espirituosa natureza conseguiu cravar uma pequena pedra numa larga fenda que separa duas partes do topo da montanha. O "pulo do gato" é famoso pelo medo que causa nos caminhantes -- e, de fato, um movimento em falso ali pode culminar na perda da vida -- mas, agindo com calma e cuidado, ele é possível de ser ultrapassado sem muita dificuldade, pois a pequena pedra fornece apoio o suficiente para o caminhante "montar" nela -- se desejar --, atravessando para o outro lado. Ainda assim, toda ajuda é bem-vinda, como foi o caso do nosso grupo, em que, novamente, os escaladores Xandão, Daniel e Pedro se dispuseram a dar uma mãozinha para o resto do pessoal.
Passado esse momento mais emocionante, a caminhada, já bem próxima ao cume, segue até um momento em que há uma espécie de bifurcação, oferecendo dois caminhos possíveis: um seguindo pela base rochosa principal até uma série de outras pedras que compõem o topo da montanha e já oferecem um visual incrível do entorno; e outro em que, ao passar num estreito espaço por debaixo de uma grande pedra, é possível continuar para ao cume oficial do Itaguaré, onde há o livro de assinaturas.
Verônica escolheu o primeiro caminho, pois o segundo apresentava mais um obstáculo. Apesar de o resto do grupo ter garantido a ela que o trecho era seguro de fazer com a ajuda deles, ela já tinha se dado por satisfeita e preferiu admirá-los mais de baixo. Assim, ela aguardou sob o sol enquanto a galera assinava o livro e tirava boas fotos.
A vista a partir do cume do Itaguaré.
Cabe destacar que o acesso ao cume do Itaguaré, ainda que não desgastante fisicamente, pode ser -- de fato -- o mais técnico e perigoso trecho de toda a travessia, contando com duas fendas extremamente altas e expostas a serem ultrapassadas. Logo, é importante que o trilheiro só suba se estiver confiante e contar com habilidade técnica e/ou ajuda adequada para realizar o ataque ao cume com segurança.
A descida veio com aquele gostinho de vitória e missão cumprida - mesmo havendo ainda um bom pedaço de chão pela frente até o resgate.
A descida
Após a descida do Itaguaré, o grupo se reuniu novamente na base e rapidamente deu início à sua despedida da montanha. Tínnhamos marcado 17:00 com nosso resgate, mas ainda tínhamos umas duas horas de caminhada até o estacionamento -- e já era por volta das 15:30. A descida foi feita com tranquilidade. O primeiro trecho passa por uma área de vegetação de campos de altitude em terreno bastante rochoso e íngreme, no qual é preciso atenção. Após esse trecho, a trilha entra em vegetação de mata atlântica. Apesar de a descida ser intensa e ser preciso ter cuidado com as derrapadas na poeira fina, avançamos com facilidade. Logo no início desse trecho de mata há um mirante -- a toca da onça -- onde encontramos dois guias com um grupo. Depois de um breve papo, partimos para a descida.
Nos despendindo da montanha na saída da Base do Itaguaré.
Acabou que a noite nos alcançou bem no finzinho da descida e, por volta das 18:15, chegamos ao estacionamento, onde o Sr. Clóvis, nosso resgate, nos esperava.
Recebidos com fogos de artifícios
Quando voltamos a Marmelópolis, descobrimos que havia uma festa na cidade. Assim que entramos, fogos de artifício cruzaram os céus, como que nos recebendo da nossa aventura. A festa já estava no final, mas ainda havia algumas barraquinhas e um rodeio. Paramos ali por alguns minutos para comermos algo e bebericar umas cervejas antes de entrarmos novamente no transporte do Sr. José Luis para retornarmos ao Rio de Janeiro, onde chegamos por volta de 01:00 da madrugada. Ali se encerrou nossa aventura na famosa Travessia Marins x Itaguaré.
