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Luís Felipe A. dos Santos 20/10/2016 20:56
    Expedição para a Pedra D'Água - Cume da Ilha Grande - RJ

    Expedição para a Pedra D'Água - Cume da Ilha Grande - RJ

    Nos dias 05 a 09 de outubro de 2016, eu, Hugo e Danúbio, equipe ROCK GIANTS - TRILHAS e TRAVESSIAS, conquistamos a Pedra D'Água

    Expedição idealizada, organizada e concretizada pela equipe de montanhistas da

    ROCK GIANTS – TRILHAS E TRAVESSIAS

    Luís Felipe Almeida, Danúbio Muller e Hugo Moreira

    RELATO DA EXPEDIÇÃO PARA A PEDRA D’ÁGUA, PONTO CULMINANTE DA ILHA GRANDE – 1.031 METROS

    Por: Luís Felipe Almeida

    Edição: Juliana Martins de Castilho e Luiz Eduardo Carvalho Guimarães


    Dia 13 de setembro de 2016, durante um costumeiro café no posto AP Gás, na cidade de Volta Redonda (RJ), eu, Hugo e o novo integrante do Rock Giants, Danúbio Muller, conversávamos sobre as trilhas que já fizemos, quando Danúbio, de forma despretensiosa, lança a seguinte pergunta: “E a Pedra D’Água?”. A partir desse exato momento, começou-se a ser construída a maior expedição de nossas vidas, uma aventura de grandes motivações e inúmeras incertezas, um passo que seria dado com grande cautela, mas que encontraria um grande vazio de informações e limitações humanas.

    Desde muitos anos, o homem é levado por um profundo fascínio preenchido pela necessidade de atingir os pontos mais altos dos continentes, ilhas e, sobretudo, do planeta. O principal exemplo dessa indigência sobrenatural humana é, sem a menor dúvida, o Everest. Ao ser considerado o ponto mais alto da Terra, as pessoas simplesmente decidiram que precisavam escalá-lo. As motivações foram inúmeras, mas todas seguiam a similar ambição de atingir algo considerado instransponível, desconhecido e inexpugnável. O montanhismo, como é de sua natureza, sempre está em busca dos pontos mais altos, pois é onde atingimos o ápice da evolução dos nossos sentidos físicos e intelectuais, é de lá que sugamos todos os sentidos e o inestimável esforço da conquista faz valer um respiro da tão procurada felicidade.

    Apesar da Pedra D’Água empregar essa misteriosa força sobre as pessoas, o ponto culminante da Ilha Grande era visto simultaneamente com fascínio e temor por aqueles que almejassem caminhar sobre a sua silhueta de difícil identificação, vez que se encontra completamente protegida por um denso cobertor de imensas árvores e vegetações quase instransponíveis. Um verdadeiro altar da natureza, completamente intocada, até onde sabíamos.

    Com os seus 1.038 metros de altitude[1] (ou, segundo o INEA, 1.031 metros de altitude)[2] a Pedra D’Água desponta claramente como o ponto culminante de toda a Ilha. Como nunca se prestou a ser um atrativo comercialmente explorável, caiu ao esquecimento, chegando a ser constantemente rebaixada pela sua vizinha, a Pedra do Bico do Papagaio, a qual se encontra a uma altitude de 959 metros à nível do mar[3].

    Localizado no centro geográfico de toda a Ilha Grande, a Pedra D’Água funciona como um verdadeiro coração, bombeando nascentes de águas cristalinas a partir de seus puros átrios carregados de material biológico, permitindo uma vasta irrigação das veias e artérias que dão os contornos de vida ao ecossistema da ilha.

    Ao procurar informações sobre possíveis ascensões a Pedra, me deparei com precárias informações, uma, aliás, dizia respeito a um antigo habitante da ilha que havia chegado até o seu cume, mas não citava nome, idade ou qualquer outra característica sobre esse indivíduo. Cheguei a ler relatos de algumas tentativas frustradas de uns corajosos aventureiros que enfrentaram o leito de um dos rios da ilha, o qual tinha sua nascente na base da pedra. Nada e ninguém conseguia nos trazer quaisquer elementos que nos dessem algum ponto de partida para iniciar uma jornada até a Pedra, tornando o projeto algo ainda mais ameaçador e complexo.

    Dessa forma, me vi obrigado a planejar um percurso apoiado na carta topográfica da Ilha e no Google Earth, nascendo assim um possível caminho que se iniciava na base do Bico do Papagaio, e seguiria a crista dos morros que se conectavam até chegar ao nosso destino. Seria o caminho mais lógico, pois, em outros pontos da ilha, as curvas de nível da carta flagravam desníveis e aclives que chegavam a dar arrepios de tão inclinados que eram. Além disso, não teríamos tantos dias para completar a trilha, então teríamos que optar por um seguimento que nos trouxesse o menor gasto energético possível e que aumentasse as chances de localização em uma mata inteiramente fechada ao campo de visão. Não teríamos tempo e espaço para equívocos! Estávamos forçados a trabalhar com a maior precisão possível, e se qualquer detalhe se curvasse ao erro, teríamos que abortar a nossa missão e voltar para casa com a frustração pesando em nossas cargueiras.

    Apesar das grandes incertezas que nos alcançavam, dias após ter traçado o caminho, Danúbio me enviou um arquivo do Google Earth de seu amigo que também havia se comprometido a encontrar uma forma de chegar até a Pedra. Por grande coincidência ou inteira convergência de ideias, a rota que havia planejado era exatamente a mesma do amigo de Danúbio, aquecendo um lapso de esperança de que havia feito a escolha correta em relação ao caminho que deveríamos seguir.

    Outra grande preocupação foi encontrar algum ponto de água que pudesse nos abastecer próximo a Pedra. Assim, cruzei os dados da carta topográfico com o Google Earth e consegui encontrar uma possível nascente próximo a base da Pedra, seguindo o seu curso d’água de forma paralela a trilha que faríamos. Dessa forma, meio que no escuro e rezando para que aquele ponto fosse realmente uma nascente, fiz uma marcação do provável ponto de água no tracklog.

    Assim, com o caminho traçado, a saúde em dia, os equipamentos revisados e um pouco de insanidade na mente, planejamos nossa expedição para os dias 05 a 09 de outubro de 2016. Contudo, por força das obrigações dos cursos de Direito e Engenharia Mecânica de Hugo e Danúbio, respectivamente, diminuímos um dia de trilha, fixando a expedição nos dias 06, 07, 08 e 09 de outubro de 2016, sendo que teríamos que pegar a barca que saia de Angra dos Reis às 15:30, na quinta-feira (dia 05), e voltar impreterivelmente no domingo, dia 09, pois Danúbio tinha duas provas bem difíceis marcadas para segunda-feira (dia 10).

    E assim se passaram dias de angústia, ansiedade e desespero com o tão sonhado dia em que chegaríamos a Ilha. Não havia um dia sem o assunto entrar em pauta nas conversas diárias com nossos amigos, familiares e entre nós. Parecia que nada fazia mais sentido na cidade. Todos os nossos pensamentos foram residir na Ilha Grande. Nossa ligação com a Pedra já era real, sendo que nos momentos que desejávamos profundamente estar lá, o aqui já não encontrava meios de nós trazer de volta a realidade. Estávamos vivendo em um espaço que não cabiam as intensas vibrações criadas pela inexplicável sensação de conquistar algo novo.

    Ao chegar no dia 06, marcamos de sair às 11:00 de Volta Redonda, mas acabamos saindo um pouco depois de meio dia, pois rodamos a cidade atrás de silver tape e gás para o fogareiro. Chegando em Angra dos Reis, deixamos o carro na casa de uma amiga do Hugo, a qual nos deixou no local onde compramos a passagem (R$ 15,00) da barca que sairia às 15:30 em direção a Vila de Abraão, na Ilha Grande. Como ainda tínhamos uma hora até a saída da barca, fomos almoçar no centro de Angra, em um restaurante apelidado por nos de “Cassino Russo“, “Porão da Máfia Chinesa” ou ainda de “Abatedouro de Flango”.

    Depois de comermos a última refeição descente pelos próximos 4 dias, entramos na barca e fomos para Abraão. Durante toda a navegação, o tempo se manteve nublado e sem perspectiva de melhora, apesar de não haver nenhum sinal de chuva. Assim que a barca ancorou na Vila de Abraão, caiu uma chuva torrencial, e logo colocamos as capas nas cargueiras, anorak e corta vento (o Danúbio ficou de camisa mesmo, porque não levou nenhuma blusa ou nada impermeável, mas o garoto peitou a chuva rsrsrs) e corremos pelo cais até o primeiro local coberto que encontramos. Ficamos amontoados com várias pessoas, que também se escondiam da pesada chuva que caiu sem pena por cerca de 20 minutos. Assim que a chuva deu uma pequena trégua, partimos para a estrada de terra que segue até Dois Rios, onde bifurcamos para a trilha que segue até o Bico do Papagaio.

    Começamos a trilha para o Bico do Papagaio, aproximadamente, às 17:30, mas como a noite chega primeiro na mata, em menos de 10 minutos de trilha já estávamos com as lanternas em mãos (o Danúbio também não levou lanterna. Próximo erro, ele vai ter que passar no RH). A trilha, como já imaginávamos, estava completamente encharcada, com predomínio de barro, lama e pedras molhadas e escorregadias. Não foi difícil ver vários “quase” tombos, os quais foram agravados pelo aflitivo peso das cargueiras.

    Após uma hora e meia de trilha, a chuva voltou a cair com pressão, e mesmo que a vontade de sentar e chorar tenha passado pelas nossas cabeças, tínhamos que continuar e achar algum local abrigado para acampar. Dessa forma, seguindo um ritmo constante, conseguíamos chegar na base do Bico do Papagaio, ensopados e tremendo de frio, mas abrigados da água que insistia em inundar o ambiente a nossa volta. Dessa forma, devido a nossa infeliz situação e tendo em vista a chuva que não parecia cessar tão cedo, improvisamos nossas barracas nos estreitos espaços que encontramos na base do Papagaio, e fizemos nosso jantar sob o som da chuva e de alguns trovões bem distantes, e fomos dormir pois precisávamos acordar bem cedo no dia seguinte.

    Assim, nos primeiros raios de sol, acordamos e a chuva ainda permanecia insistente. Já imaginávamos a possibilidade de ter que abrir o caminho todo debaixo de chuva, o que seria uma terrível experiência e um desgaste bem acima do previsto. Contudo, enquanto tomávamos o café e arrumávamos as nossas cargueiras, a chuva foi parando aos poucos até cessar por completo. Agradecemos a todos os deuses por essa benção, principalmente a Odin (rsrsrs).

    Enquanto arrumávamos as coisas, resolvemos deixar algum peso desnecessário para trás para diminuirmos o desgaste físico, colocando muitos objetos pesados dentro de uma grande sacola que seria escondida próximo a bifurcação para o cume do Bico do Papagaio.

    Cargueiras arrumadas, facões, luva de raspa e GPS em mãos, cafeína tomada (Real Serious, You die motherfucker! Extreme concentrate!) e água de poça formada pela chuva coletada, saímos finalmente para a quebradeira.

    Seguimos ainda um pouco a trilha que vai margeando a base da Pedra do Bico do Papagaio, e, no início da subida final para o Papagaio, chegamos ao nosso ponto inicial e olhamos para a imagem que nos acompanharia durante dois longos dias: um matagal completamente fechado e sem nenhum indício ou sinal que ali tenha sido, algum dia, uma trilha.

    Sem pararmos para pensar ou refletir o que estávamos prestes a iniciar, caímos para dentro daquela selva hostil e impiedosa. Cerca de 10 metros após o início da trilha, deixamos a sacola com os objetos atrás de uma árvore, marcando o ponto exato no gps.

    No início, estávamos perdendo muito tempo e energia abrindo e limpando o caminho. A ficha só caiu quando disse para Hugo e Danúbio que havíamos percorrido apenas 300 metros em 1 hora. Assim, mudamos a nossa estratégia e fomos seguindo cortando mato, galho, cipó, bambu e folhas somente para que pudéssemos passar. Para que melhor administrássemos o desgaste com a abertura da trilha, arrumamos uma formação em que o primeiro iria com o facão maior na frente, o segundo com o menor e o terceiro não tiraria o olho do caminho marcado no gps.

    Primeira parte do caminho passamos uma crista de morro, depois descemos até um ponto mais baixo, onde encontramos um pequeno córrego de água, onde marcamos como um possível ponto de coleta de água para o retorno da trilha.

    Em seguida, subimos nosso primeiro morro, e, sempre que possível, seguíamos pela crista, o ponto mais alto de cada elevação, mas era inevitável que em alguns trechos fossemos obrigados a desviar para partes mais baixas, para transpormos a densa mata com mais facilidade.

    Encontramos diversos tipos de vegetações pela frente, mas quase sempre estávamos pisando em um chão feito de raízes cobertas por folhas e galhos sedimentados e acumulados entre os buracos formados pelas raízes. Andávamos sobre um falso chão, sem ter a mínima ideia se o próximo passo seria seguro. Assim, era comum o acúmulo de folhas ceder ao nosso peso e nossa perna passar dentro de buracos escuros formados entre os espaços das raízes e que costumam abrigar aranhas, cobras, escorpiões, entre outros animais.

    Seguíamos de forma constante, mas nosso progresso era bem lento. Chegamos a andar 500 metros em 2 horas de trilha, algo que fazíamos em 15 minutos em trilhas abertas. E quanto mais o tempo passava, a preocupação e as dúvidas nos cercavam a todo momento.

    Após algumas horas andando, chegamos até um dos topos de morro e encontramos um local plano que acusava um recente pernoite selvagem. Nele encontramos lixo espalhado pelo chão, panela, garfo, colher e cinzas de uma fogueira extinta a não muito tempo. Chegamos a imaginar que este teria sido um pernoite de pessoas que tentaram alcançar a Pedra D’Água e, como haviam esgotado as forças e a noite já se aproximava, tiveram que se abrigar por ali mesmo.

    Passado esse local, os aclives e declives continuavam a nos desafiar, assim como a mata, que se fechava cada vez mais e se tornava ainda mais complicada de transpor. Sem nenhuma dúvida, o ponto mais difícil foi a selva de ‘bambuzinhos’ que formavam uma teia cortante de folhas e galhos que insistiam em abraçar nossos corpos, agarrando braço, perna e cortando cada minúsculo pedaço de pele exposta a sua ação incisiva. Os principais alvos foram o pescoço, o rosto e as mãos, formando verdadeiras tatuagens através dos cortes desses ‘bambuzinhos’ que só não ocasionavam dor imediata, pois a adrenalina e a raiva não permitiam a sua manifestação naquele momento. Não bastasse a mutilação física, este corredor de lâminas naturais massacrou nosso psicológico, menosprezou nosso instigante desejo de sucesso e nos recordou que somos apenas humanos, um ser com milhares de limitações e imperfeições. Estávamos metaforicamente em uma negociação com o meio ambiente, e erámos definitivamente o lado mais fraco dessa relação, portanto, precisávamos manter a nossa posição firme para não sermos esmagados.

    Após a batalha dos ‘bambuzinhos’, as coisas melhoraram um pouco, mas o tempo que havíamos gastado para transpor essa fustigante vegetação, nos causou ainda mais dúvidas sobre o nosso êxito em chegar até o cume da Pedra naquele dia. Já estávamos nos prevenindo para um eventual pernoite de emergência no meio do caminho, marcando no GPS todos os pontos que achávamos possíveis de armar nossas barracas. Contudo, da mesma forma que o trecho dos pequenos bambus nos causou um incalculável desgaste, ele nos injetou uma força sobrenatural e depois desse ponto passamos a andar cada vez mais rápido e acelerar a nossa transposição nos matos fechados.

    Após um progresso exitoso, vimos que estávamos muito próximo ao ponto mais alto do morro que antecedia a Pedra D’Água, assim como o provável ponto de água que havia marcado pelo Google Earth. Precisávamos desesperadamente dessa água, pois caso ela não existisse, teríamos que fazer um extremo racionamento de água.

    Passado o ponto mais alto desse morro (995 metros de altitude), descemos por cerca de 5 minutos e ao chegarmos a uma parte mais plana, dobramos a direita e seguimos em direção ao ponto ‘Água?’ que eu havia marcado. Durante o caminho vimos mais um ponto bom de acampamento, mas eu e Hugo seguimos a todo vapor para o possível ponto de água, enquanto que o Danúbio vinha mais atrás contemplando a beleza do local. Após alguns poucos metros, passei por um emaranhado de folhas, galhos e cipós, e consegui avistar um reflexo que se parecia com água. Fiquei eufórico com a possibilidade de ter acertado o meu cálculo geográfico, e não acreditei quando tive certeza que realmente se tratava de uma nascente de água! Corri gritando ‘Não acredito! É água!’, e, diante de tamanha euforia, pisei com tudo no caminho onde a água passava, me afundando até a canela, o que acabou ensopando minha bota. Mas isso não significou nada, pois a alegria de ter encontrado água era imensa! Nesse exato momento tivemos a certeza que chegaríamos no cume da Pedra D’Água, afastando por completo as incertezas, dúvidas e preocupações que nos atormentavam durante várias semanas.

    Algum tempo depois de eu e Hugo chegarmos ao ponto de água, Danúbio veio gritando falando que havia visto um macaco Bugio do tamanho de uma criança de 11 anos (mais tarde, Danubio ligaria para o seu pai e diria que havia visto um Bugio do tamanho de uma criança de 12 anos, e nos perguntamos se o Bugio havia feito aniversário naquele dia... rsrssrs).

    Após coletarmos o máximo de água que conseguimos, voltamos para o ponto onde havíamos bifurcado para a água, e continuamos seguindo em direção ao tão sonhado destino final, o cume da Pedra D’Água.

    Após algum tempo, chegamos até a base da Pedra D’Água, e, como não poderia ser diferente, encontramos um bom riacho com considerável volume de água cristalina (possivelmente esse seria o principal afluente de um dos rios que deságuam na praia de Dois Rios, pois verifiquei no gps que ele seguia na direção dessa praia).

    Como já havíamos nos abastecido de água, logo pegamos uma subida bem íngreme que passava ao lado de uma grande parede de pedra, e continuamos subindo sem parar, passando por um grande bambuzal e depois por dentro dos infelizes ‘bambuzinhos’, que, nessa etapa, já não causavam tanta aflição.

    Após subirmos um grande aclive por vários minutos, sem parar, chegamos no ponto culminante da Ilha Grande, a Pedra D’Água. Só tivemos a certeza que estávamos no seu cume, por causa do gps que marcava 1.027 metros de altitude (o altímetro do meu gps está um pouco desregulado, causando uma margem de erro aproximada de até 10 metros para menos na altitude exata do local).

    Margeando a crista da Pedra, seguimos por trilhas deixadas pelos animais até encontrar um local razoável para acamparmos, e decidimos que deveríamos montar o mais rápido possível as barracas, já que a noite se aproximava e havia uma nuvem passando sobre o cume, causando frio e nos deixando cada vez mais molhados.

    Limpamos a ‘área de camping’ com o auxílio dos facões, e montamos as barracas em menos de 10 minutos.

    Com o acampamento montado, podemos relaxar e perceber que a ‘ficha’ havia caído. Estávamos no ponto mais alto da Ilha Grande! Havíamos realizado aquele projeto que se iniciou de forma despretensiosa com uma simples pergunta em um posto de gasolina. Nesse momento foi uma alegria absurda. Nos abraçamos e gritamos de emoção! Eu e Danubio chegamos a bater a cabeça um no outro, tamanha a felicidade pela conquista.

    Passada a euforia, preparamos um varal improvisado para tentar secar as roupas que usaríamos no dia seguinte e fizemos uma janta ‘maluca’. O Hugo comeu um capelete de carne, e eu e Danubio comemos um macarrão gran duro com mandioca, molho parmegiana, queijo parmesão e tempero chimi churri, tudo isso acompanhado com um ‘suco bolaids’ de mate com pêssego da montanha, especialidade do Hugo.

    Após algumas horas, a nuvem já havia passado por completa no cume e algumas estrelas apareceram no céu e conseguimos ver algumas luzes dos barcos nos mares em volta da Ilha. Contudo, a visibilidade era precária, pois o cume da Pedra é todo coberto de uma densa vegetação, com grandes árvores e galhos que fechavam o nosso campo de visão. Assim, a nossa visão se limitada a recortes da paisagem que despontavam nos espaços entre os galhos das árvores.

    A noite no cume da Pedra foi bem conturbada, pois o solo onde armamos a barraca era feito basicamente de raízes flexíveis, e nossa cabeça ficava mais alta que o nosso pé. Além disso, não conseguimos colocar a capa da barraca da forma correta. Caso chovesse, era certo molhar dentro da barraca. Eu e Danúbio escorregávamos a cada 10 minutos de sono. Chegamos a ter que jogar a barraca para trás em um momento e várias vezes acordei de noite para ‘escalar’ a barraca, pois estávamos caindo e a empurrando toda para frente. Enfim, não foi a melhor noite de nossas vidas em uma trilha, mas pelo menos conseguimos deitar em algum lugar razoavelmente seguro e plano.

    No dia seguinte, acordamos com o despertador do tablet do Danúbio tocando uma música de ninar, e quase voltamos a dormir, mas lembramos que ainda tínhamos mais uma jornada para chegar até a base do Bico do Papagaio e acordamos com os primeiros raios de sol já invadindo nossas barracas.

    Logo que consegui sair da barraca, já fui pegando o fogareiro para fazer um café bem forte e notei que iriamos ter uma ótima janela de tempo naquele dia.

    Após ter tomado o café da manhã, arrumado as coisas e tirado algumas fotos, eu e Danúbio decidimos, antes de iniciar a trilha de volta, explorar um pouco mais o cume da Pedra, para ver se encontrávamos algum paredão rochoso ou algum solo escarpado, enquanto o Hugo terminava os preparativos para nossa saída. Seguimos pela crista da Pedra, margeando um grande penhasco a nossa direita e enfrentando os ‘malditos’ bambuzinhos que continuavam nos atormentando. Após alguns metros do nosso acampamento, conseguimos obter uma pequena janela de visão para as praias do Demo, Sul e Leste, sendo inegável a sua identificação por conseguirmos detectar a Ilhota que divide essas duas últimas. Insistimos mais um pouco na exploração, mas ficamos obrigados a desistir da mesma, pois já passavam das 9 horas da manhã, e não tínhamos nenhum indício de pedra ou qualquer tipo de clareira que melhorasse a nossa visão.

    Voltando ao acampamento, pegamos as nossas coisas e iniciamos a trilha de volta. Seguindo a trilha marcada pelo GPS na vinda, tentamos manter sempre o caminho que já havíamos aberto, mantendo um ‘olho’ no dispositivo eletrônico de localização e outro nas pegadas e matos cortados que indicavam a nossa passagem.

    Conseguimos obter grande êxito em encontrar o caminho que havíamos passado, pois as pegadas e os golpes de facão nos galhos das árvores eram bem nítidos, mas, ainda assim, continuamos cortando cipós, galhos e os infelizes ‘bambuzinhos’ que pareciam ter se regenerado do dia para a noite. Incrível como essa praga continuou torturando as nossas vidas!

    Após uma hora de trilha, percebemos como era rápido o nosso progresso, e decidimos manter um ritmo constante e parar mais vezes para descansar e comer, algo que não havíamos feito no dia anterior e que comprometeu bastante a nossa energia e o nosso psicológico. Portanto, não cometendo o mesmo erro dessa vez, voamos na trilha!

    Ao chegarmos no acampamento improvisado no dia anterior, decidimos levar todo o lixo que foi jogado ao redor daquele local, bem como os talheres e a panela, que logo foi adotada pelo Danúbio.

    Continuando a nossa empreitada, seguimos mantendo o ritmo ideal. Em determinado ponto, notamos o quão perto estávamos do fim da trilha fechada ao avistarmos o paredão do Bico do Papagaio e a pedra que lhe dá o nome. Mais uma vez a alegria foi contagiante, e o sentimento de dever cumprido estava cada vez mais próximo.

    Andamos, cortamos e mantemos o passo, até que, finalmente, chegamos, por volta de 16:30, ao escasso ponto de água que nos abasteceria para o acampamento no cume do Bico do Papagaio.

    Com os reservatórios cheios, continuamos e logo encontramos a bolsa preta, deixada em uma árvore cerca de 20 metros da trilha do Bico do Papagaio, contendo o excesso de equipamento que não teria sido utilizado na ida até a Pedra D’Água, mas que agora seria primordial para mais um dia de acampamento.

    Assim, alguns metros, chegamos até a bifurcação para a trilha que seguia para o Bico do Papagaio, e, finalmente era o fim do perrengue do caminho de mata fechada! Olhamos para trás e vimos no que havíamos entrado e estranhamos como a trilha do Papagaio era limpa e aberta. Parecia a ‘Nova Dutra’ perto do que tínhamos passado.

    Apesar da repentina euforia, não demoramos e pegamos a trilha para o nosso próximo acampamento, o cume do Bico do Papagaio. Com os joelhos e as pernas completamente moídos, subimos ‘como se não houvesse o amanhã’. Os pensamentos que passavam pela cabeça eram apenas dois: largar as cargueiras e tirar a maldita bota!

    Rapidamente chegamos até o cume do Papagaio e, agora sim, deixamos toda a euforia, alegria e as bons sentimentos de dever cumprido tomarem conta. Gritamos, nos emocionamos e simplesmente rimos ao olhar para trás e ver todo o caminho que havíamos percorrido. A GENTE É MALUCO MESMO! – Falamos ao mesmo tempo.

    Paramos, refletimos e vimos como havíamos sido abençoados pelo maravilhoso espetáculo na natureza que se apresentava diante dos nossos olhos. Nuvens baixas encobriam a Vila do Abraão e serpenteavam entre as matas, o sol se punha na direção oposta ao mirante da Pedra do Bico do Papagaio, a restinga de Marambaia ganhava contorno sob o mar e as aves tomavam o céu espelhado com as cores do crepúsculo. Tudo isso somado ao ar puro soprado pelo mar, me fez sentir a verdadeira presença de Deus nos meus mais elevados sentimentos. Isso sim era viver!

    Após o sol cair atrás das montanhas, corremos para montar as barracas com o pouco de luz que ainda nos restava. Após duas noites sem conseguirmos montar a barraca corretamente, finalmente colocamos a capa de chuva da barraca e a fixamos de forma impecável através da utilização dos espeques. Com as barracas montadas, trocamos de roupa, tomei um bom ‘banho’ de flock baby (lenço umedecido), e o Hugo já começou a fritar umas batatas temperadas no azeite, temperadas com o melhor sabor da montanha, o chimichurri boladão. Fritamos ainda mandioca e usamos o tempero e o azeite depositado na frigideira para aquecermos o macarrão pré-pronto do Hugo e meio quilo de feijão que comi sozinho (sim, a noite foi temperada com gases tóxicos). Aliás, eu consegui vencer mais um trauma culinário e comi atum enlatado. Até que achei bom, mas não cheguei a ter o mesmo gosto que Hugo e Danúbio. Segundo o Hugo, ‘atum salva a vida na trilha’.

    Durante o nosso jantar, aconteceu algo bem complicado, principalmente para o Danúbio, devido à sua preocupante alergia a picadas de aracnídeos. Uma aranha veio participar do banquete e entrou no costado da mochila do Hugo, o qual estava bem próximo do local onde Danúbio estava comendo. Logo que avistei a aranha, falei para o Danúbio levantar e sair, e assim ele atendeu ao ver aquele serumaninho de 8 patas. Danúbio cismou que era uma aranha armadeira, mesmo eu e Hugo discordando dele (depois que chegamos em casa, Danúbio nos enviou a foto da aranha do google e disse que se tratava de uma aranha lobo, contendo um veneno infinitamente menor que a armadeira). Acontece que, um minuto depois, surge outra aranha, exatamente igual à que havia aparecido na mochila do Hugo. Percebemos que as aranhas estavam sendo atraídas pelo calor emitido pelo fogo do fogareiro, e, assim, desligamos o fogo e continuamos comendo em pé.

    Após toda essa comilança, o Hugo já foi desmaiar na barraca e Danúbio e eu ficamos um bom tempo ainda trocando ideia na pedra do Bico do Papagaio. Falamos sobre muitos assuntos, principalmente sobre a maldita alergia que Danúbio tem por picadas de aracnídeos. Durante todos os 4 dias daquela expedição, Danúbio sempre manteve a sua preocupação com esses pequenos animais. Mas não poderia ser diferente, uma vez que ele já chegou a sofrer uma picada de escorpião em uma trilha que havia feito em Goiás, seu Estado natal, experimentando uma sensação de quase morte devido a um grave choque anafilático.

    Após esgotarmos os assuntos, nos recolhemos para a barraca e dormimos no primeiro chão plano daquela expedição. A noite fez muito frio, mesmo com a ausência de ventos, a baixa temperatura me incomodava, já que não havia me preparado para enfrentar um frio daqueles na Ilha Grande no início da primavera. O jeito foi dormir de bermuda, segunda pele de manga comprida e somente o liner como saco de dormir. Resultado, dormi quase nada naquela noite, acordando de uma em uma hora.

    Às 5:30 o despertador do GPS tocou, e começamos a acordar para ver o nascer do sol. Hugo e Danúbio haviam tido uma razoável noite de sono, e logo saíram das barracas. Já eu relutei um pouco para sair da minha barraca, pois estava com o corpo ainda banhado em gelo, mas o pensamento no nascer do sol me fez levantar e encarar o tempo lá fora.

    Assim que peguei o pequeno caminho que conecta o acampamento ao mirante na Pedra do Papagaio, chegavam três pessoas que haviam feito a trilha noturna para pegar o nascer no alto da Pedra. Uma dessas pessoas era Caio David, um guia e morador de Ilha Grande, o qual estava guiando um casal de argentinos.

    Como era de se esperar, o nascer do sol foi espetacular, e ainda mais bonito que da primeira vez que havia acampado no cume do Papagaio, há 4 anos atrás. O sol estava enfeitando o céu com milhares de cores diferentes, que se alternavam conforme o sol despontava no horizonte. Os raios de sol iluminavam o oceano de nuvens que se misturam ao mar, formando uma harmoniosa união entre distintos elementos da natureza que se tornavam inseparáveis pela indissociável composição da paisagem.

    Após o sol nascer, aproveitamos para ver o estado dos grampos do rapel da Pedra do Papagaio, e revisar a logística para a trilha do dia 23 de outubro de 2016. Infelizmente não conseguimos fazer o rapel, pois precisávamos descer rápido para pegar a barca de 10 horas da manhã, então tomamos um café ‘cachorrento’ (gíria do Hugo rsrsrs), desmontamos acampamento e, ao verificar a minha mochila para ver se encontrava alguma aranha, surpresa! Uma mini tarântula estava dormindo na alça da minha mochila. Pegamos ela com cuidado, com o uso de galhos e deixamos ela num local mais afastado de nós.

    Com tudo pronto, pegamos a trilha em direção a Vila do Abraão. Apesar do cansaço absurdo que estávamos sentindo, tivemos que descer bem rápido a trilha, chegando até correr em uma grande parte da descida. Assim, com esse ritmo frenético, chegamos na bilheteria da barca, largamos as cargueiras no chão e Danúbio foi comprar as tão esperadas cervejas que estávamos sonhando desde o primeiro dia de trilha.

    Pedimos para Danúbio comprar budweisser, mas ele trouxe umas The Miller e uma Petra para ele experimentar. Abrimos as cervejas, brindamos e fizemos a comemoração final! Agora sim! ERRRRRRRRRGUE O BRAÇOOOOOOOOOO!!! A expedição estava oficialmente acabada e o objetivo cumprido com grande êxito!



    Enquanto esperávamos a barca, Hugo e eu tivemos uma espécie de déjà vu. Estávamos desejando tanto a chegada daquele momento, que parecia que já havíamos estado naquele local, bebendo aquela cerveja e esperando a barca para Angra envolvidos naquele mesmo pensamento. Algo como dizer que era inevitável a realização daquela expedição em nossas vidas. Estávamos fadados aquele momento, e nada poderia acontecer de outra forma. Estávamos vivendo a inevitabilidade de nossas histórias.

    Cerca de 30 minutos desde que havíamos chegado na Vila do Abraão, a barca atracou em seu cais e conseguimos, finalmente, entrar para voltarmos ao continente.

    Mais uma vez a Ilha Grande deixava uma marca indelével em minha vida. Eu simplesmente poderia dizer que essa foi mais uma trilha, mas estaria enganando a mim e a todos que se debruçassem sobre esse texto.

    Se essa expedição se tornar algo indiferente para as pessoas, isso eu não posso evitar, entretanto, não há como olvidar a incalculável evolução que alcançamos como montanhistas e, sobretudo, seres humanos.

    FIM...

    [1] BERNARDO, J., As trilhas da Ilha Grande. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005, pág. 3.

    [2] INEA. Instituto Estadual do Ambiente. Parque Estadual da Ilha Grande: plano de manejo (fase)/resumo executivo./Instituo Estadual do Ambiente. Rio de Janeiro: INEA, 2013, pág. 16.

    [3] BERNARDO, J., As trilhas da Ilha Grande. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005, pág. 3.



    9 Comentários

    Olá Bruna, muito obrigado!! Então, apesar de não ser uma pedra nada conhecida, a Pedra D'Água é o ponto culminante da Ilha Grande! Aliás, as pessoas erroneamente associam a famosa Pedra do Bico do Papagaio como sendo o ponto culminante da Ilha. E obrigado pelo elogio da foto!! Realmente, lembrança pra vida toda!

    Laércio Sousa Tobias 07/12/2016 12:22

    Caro Luís , boa tarde ! Sabe aqueles "corajosos montanhistas" que você cita lá em cima, quando em 3 tentativas frustradas, não conseguiram subir o "Paguá" ? sou um dos 3 que começaram o "movimento" em 2010 ! ;-) . O André foi o "cabeça" , seguido pelo Caio e depois eu . Estamos tentando subir aquela porra a anos . Organizamos grupos, gastamos uma grana feia . E nada rs. Ficamos muito felizes por terem conseguido e aliviados de certa forma. WEm breve gostaríamos de voltar lá ! Vocês ainda possuem o tracklog? Em tempo : no traçado original, não visávamos a cordilheira , justamente pela possível ausência de água ,o que gerou a possibilidade de outras rotas ! Olhe nosso "start" , ainda em 2010 : http://www.mochileiros.com/ilha-grande-pico-da-pedra-d-agua-t47586.html . Forte abraço meu velho !

    Laércio Sousa Tobias 07/12/2016 12:23

    Tenho um blog , dá uma olhadinha rápida lá ;-) : http://trilheirosilvestre.blogspot.com.br/

    Boa tarde, Laércio, tudo bem? Exato! Eu li o relato de vocês! Achei um ato muito corajoso e desbravador. Mas, exatamente por ter lido o seu relato, vi que seria impossível chegar no topo da Pedra margeando o rio. Então, fui a procura de novos caminhos que seriam mais "tranquilos". Possuo o track sim! Mas tive que tirá-lo daqui e do wikiloc.com após uma mensagem que recebi por email de um integrante do CEB (centro excursionista brasileiro), quem me aconselhou retirar o tracklog da internet, pois haviam agências mal intencionadas na Ilha, que estavam querendo comercializar a trilha até a Pedra D'água. E, com medo de que essa grande massa de preservação da Ilha se tornasse mais um palco de degradação em massa, acabei retirando o tracklog. Se quiser conversar comigo sobre a trilha, é só me chamar inbox no meu facebook (Luís Felipe Almeida), ou no whatsapp - (24) 992329540. Um grande abraço, Laércio!

    Silvio Serrano 21/05/2017 12:18

    Parabéns....belo relato ...aventuras assim marcam a vida da gente e ficam para sempre em nossas lembranças...

    Valeu Silvio Serrano! Com certeza essa daí marcou e muito as nossas vidas!

    Laércio Sousa Tobias 18/02/2019 00:05

    Luis , boa noite . O Ze Bernardo FALECEU , nao sei se sabe . Uma nova expedicao esta sendo montada para celebra-lo e terminarmos um sonho que ja passa de 10 anos : alcancar o P D'Agua. Proximo fds faremos um "tiro" de reconhecimento , pra ter uma nocao do que passaram. Quase todos que foram conosco , desistiram , restando apenas Andre , Mar io e eu ( da expedicao montada em 2013 ) . Assim que rolar algo mais consistente , avisarei. Abcs a todos.

    Laércio Sousa Tobias 18/02/2019 00:06

    Estou tomando como base seu relato e tracklog. Espero que seja de grandissima valia 😊

    Luís Felipe A. dos Santos

    Luís Felipe A. dos Santos

    Barra Mansa

    Rox
    84

    Apaixonado por montanhas e principalmente lugares inóspitos e de difícil acesso. Estar perto da natureza sempre foi e será o meu objetivo de vida. FUCKTHETRAIL!

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