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A Escola Escalavrado
Sempre uma oportunidade de grandes momentos e com situações de aprendizado nesta montanha.
Montañismo HikingHá algum tempo, um amigo do trabalho, o Vinicius, vinha me perguntando sobre a possibilidade de fazermos uma caminhada. Melhor, uma “escalaminhada” no Escalavrado, um maciço granítico pertencente ao município de Guapimirim (RJ), no chamado complexo do Dedo de Deus e situado dentro dos limites do Parque Nacional da Serra dos Órgãos.
Após tantas remarcações, conseguimos acertar a data, dia 08 de julho de 2023, um sábado. A lista de interessados em participar havia aumentado. Um comentou com outro, que comentou com outro... a rede foi se ampliando e, no final, contando comigo, éramos nove. O casal Ariane e Caio, Boechat, Daniel, Eduardo, Pablo, Silvênio e Vinicius se candidataram. Exceto pela Ariane, todos trabalhamos na mesma empresa, ainda que alguns em instalações e gerências diferentes.
Eu era o único do grupo a ter ido ao Escalavrado - nove vezes. De certa forma, percebi que eles me encararam como se eu fosse um guia. Daniel chegou a falar para que eu não o deixasse morrer na montanha! Longe de ser guia, preparei a máxima quantidade possível de equipamentos de segurança que eu possuía, além de levar minha corda. Era melhor prevenir do que remediar. Dei-lhes algumas orientações prévias, as mais importantes, levar água para oito horas de atividade e usar tênis ou bota com a melhor aderência possível.
Segui direto do trabalho para Teresópolis na véspera, onde me hospedei em uma pousada próxima da entrada do Parque Nacional. Exceto por Silvênio, que mora na cidade, os demais chegariam no dia seguinte. Pablo, que vinha de Juiz de Fora, saiu às quatro da manhã e passou por dentro de Teresópolis para dar uma carona para mim e Silvênio até o ponto de encontro no início da estrada que liga Teresópolis ao Rio de Janeiro, aonde chegamos às sete da manhã. O local conta com um estacionamento escondido para montanhistas. A lanchonete estava fechada e muitos não haviam tomado café da manhã, como eu. É impressionante, um local na beira da estrada, também muito frequentado por montanhistas, e fechado.
Comecei bem meu “guiamento”! Eu havia comentado com o grupo que poderíamos tomar café da manhã no local. Sobrou para o Caio, que foi até a cidade com o carro dele e trouxe toda a fornada da padaria e queijo para nós famintos. Isto provocou um atraso de uns quarenta minutos.
Todos inteiros para iniciar a jornada.
Enfim, era oito da manhã quando iniciamos a descida de cerca de 2 km pela estrada BR-116 até a base do Escalavrado (e a lanchonete se mantinha fechada quando saímos). No caminho, alguns integrantes da concessionária que administra a rodovia ainda nos interpelaram sobre nosso trajeto. Por falta de contrato de administração do Parque Nacional, a concessionária estava dando apoio ao controle de acesso de montanhistas ao complexo do Dedo de Deus na época da realização desta atividade. Eu os informei sobre nosso roteiro e eles conferiram nossos nomes previamente informados no Termo de Conhecimento de Riscos e Normas e enviado por email ao Parque Nacional para a devida autorização de acesso.
O Escalavrado, cujo ponto culminante possui pouco mais de 1.400 metros de altitude, visto da BR-116.
No início da trilha, procurei passar algumas regras básicas ao grupo. Se algum lance oferecesse dificuldades além de quatro passagens críticas que eu considerava, que me avisassem para eu tentar protegê-lo com corda e que não estávamos em uma corrida para ver quem chegava primeiro.
Será que o pessoal estava entendendo o que eu (de camisa azul e manga curta, dedos da mão direita abertos) estava falando?
Logo na rampa inicial, uma parte do grupo fez um lance pela direita na rocha exposta, quando deveria ser pela esquerda na canaleta. Confesso que foi um bom alerta para eu ficar atento e orientá-los na leitura das passagens na rocha. Após corrigirmos a rota, seguimos em bom ritmo.
O tênis de corredor de Silvênio começou a soltar a sola logo no início da subida. Pensei na provável dificuldade que ele teria com os trechos acima. Aqui realmente conta a diferença de ser guia. Acredito que um profissional, se não pudesse contornar a situação com algum auxílio, iria recomendar a descida. Eu não tinha este poder de decisão. O que eu poderia fazer era aconselhar. Mas o Pablo sacou uma fita “silver tape” da mochila e deu uma sobrevida ao calçado!
O primeiro lance mais exigente foi vencido com louvor pelo grupo. Um bloco rochoso de aproximadamente 1,2 metros de altura, sendo que uma árvore oferecia um bom ponto de apoio para abertura das pernas em forma de tesoura.
Mais alguns metros acima, chegamos ao primeiro ponto em que eu já previa passar a corda para fazer uma espécie de corrimão na passagem em diagonal. Também não houve maiores problemas neste trecho e percebi que algumas pessoas seguraram na corda somente pela proteção psicológica.
A primeira passagem com corda tinha boas agarras.
Retornamos à caminhada e logo chegamos ao primeiro trecho na crista da montanha, em que a paisagem abriu para as primeiras fotos panorâmicas do dia, com a visão da estrada e do Dedo de Deus e seu entorno. O vento foi o principal fator de preocupação naquele momento, pois estava razoavelmente forte e possivelmente estaria mais forte nos trechos expostos acima. Caio levava seu drone e uma câmera fotográfica 360° e era o responsável pela documentação visual do grupo. Mas ele mesmo chegou a duvidar se seria possível realizar o voo naquelas condições.
Quem não quer uma foto dessas?!?!
O próximo trecho que exigiria corda foi transformado com a passagem das pessoas. Houve um contorno para se evitar o maior grau de dificuldade, que mais se assemelharia aos movimentos de escalada em rocha e que daria um grau 2, que Eduardo tanto contestou quando lhe expliquei a graduação. Ele achava que era muito maior! (talvez naquela passagem se aproximasse de um terceiro grau).
Optamos por seguir neste contorno. Lembro uma vez que, em 2001, precisei fazer o caminho inverso ao que usamos na presente situação, mas completamente fechado pela vegetação naquela ocasião. Chovia e eu estava sem corda. Tentar passar pelo trecho de rocha significaria grandes problemas. Problemas eternos, eu diria!
Seguimos subindo por trechos assoreados. Sempre que retorno ao Escalavrado, parece que alguma parte da trilha que segue no limite com a rocha se altera pelo intenso fluxo de montanhistas associado à encosta íngreme, o que provoca o escorregamento da fina camada de solo acima da rocha.
Chegamos ao primeiro dos dois lances expostos na crista em que estamos no limite do “abismo de um lado, precipício de outro”, como costumo dizer. Não há grampo no início da travessia para deixar uma pessoa ancorada a fim de prover segurança ao primeiro que avança. No máximo, alguns arbustos. Preferi não confiar. Amarrei a corda na cintura e iniciei a travessia no estilo mais primitivo, no sentido antropológico da palavra. Ou seja, nos tempos em que nossos antepassados não andavam eretos. E deste jeito fui me arrastando. Procurava manter o tronco bem próximo da rocha para diminuir a resistência ao vento. Às vezes, me mantinha parado, observando ingenuamente se as rajadas de vento obedeciam a um período de repetição bem determinado. Procurava buscar cada cristal saliente no granito para me manter seguro. Paulatinamente, fui avançando. O pessoal me filmando e fazendo brincadeiras. E eu, tão concentrado, não tinha nem vontade de mandar eles para aquele lugar e, em muitos momentos, nem percebi o que falavam. Só fui entender direito quando vi as filmagens. Para dificultar as coisas, no fim da travessia há uma porção de terreno arenoso que está assoreada. Com a chuva e passadas das pessoas, há seu carreamento rocha abaixo, o que a deixa menos porosa. Ou seja, os finos grãos de terra estão diminuindo o atrito da rocha, deixando-a mais lisa. No momento desta passagem, desejei que o vento não se revoltasse contra mim.
O grupo reunido para a primeira das duas travessias expostas. Notar a mancha na rocha que a deixa com menos atrito.
Com alívio, cheguei até o grampo, que marca o fim da travessia. Fixei a corda e chamei os demais. Todos passaram sem maiores dificuldades ou surpresas. Melhor assim.
Vinicius foi o último a atravessar e, em seguida, puxei a corda. Não veio. Sua ponta estava entalada em uma saliência na rocha quase no início da travessia. Tive que voltar tudo. Ao menos, a corda dava mais segurança. Desfeito o entalamento, avancei. Entretanto, parecia que o vento havia me escolhido para demonstrar sua fúria. Próximo ao trecho de terra, eu mantinha uma posição com tronco baixo, mas não tão próximo à rocha devido à corda. A natureza percebeu meu momento de distração para então me golpear com dois socos eólicos em sentidos opostos e defasados por décimos de segundo. Nunca... nunca senti sensação tão estranha da força da natureza. Ao que parece, o vento quis me arrancar da montanha, para um lado ou para o outro. Minha reação instintiva foi agarrar na corda com toda a minha força e me jogar na rocha para que meu peso não facilitasse o trabalho do vento. Neste movimento inconsciente, taquei meu joelho na rocha, o que deixou a cicatriz para eu me lembrar que o Escalavrado (e a natureza de modo geral) é o mestre e eu, o aprendiz, o mais fraco. A adrenalina só me deixou perceber o ferimento minutos mais tarde. Fico imaginando se estivesse sem a corda... acredito que eu estaria com o tronco mais baixo como na primeira passagem. Teria sido suficiente? O pessoal, que mantinha uma conversa acima, silenciou ao ver minha reação. Alguns afirmaram que me viram momentaneamente perder contato com a rocha.
Avançamos até o próximo trecho semelhante ao anterior. Ainda me recobrando do susto, ficamos olhando para cima. A expressão de uma pessoa em uma foto costuma dizer muita coisa. E acredito que uma especificamente tirada pelo Caio, em que olhávamos para o alto, diz muita coisa. O vento uivava, açoitava a vegetação próxima que antecedia mais uma travessia infame. Um movimento equivocado, um golpe mais forte do vento, poderia causar mais uma descarga de adrenalina desnecessária, indesejável.
O que Pablo (à esquerda) e eu (ao centro) estávamos olhando assustados? Não aparentava ser boa coisa. Boechat olhava para mim e parecia querer dizer: “e aí, vai fazer o que agora?” E uma sugestiva resposta seria: “rezar”!
Esta passagem contava com pontos de ancoragem intermediários. Desejando não passar novamente pelo susto anterior, pedi a Vinícius que colocasse a cadeirinha e eu o ancorei a um arbusto. Expliquei-lhe a forma de me dar segurança e avancei. Felizmente, a passagem foi feita sem maiores surpresas.
Um grupo vinha logo atrás e gritei para Vinicius, que também terminaria a travessia do nosso grupo, oferecer ao outro se queriam que ele trouxesse a ponta da corda deles com um mosquetão. O guia do grupo aceitou. Quando Vinicius chegou, me entregou um mosquetão de gatilho simples (quando deveria ser gatilho com rosca). Ancorei a corda deles usando também um mosquetão de gatilho simples que eu tinha para formar uma dupla invertida com o deles. Assim determina a boa regra. Gritei ao guia que eu apanharia o meu mosquetão com eles no cume.
Boechat realizando a travessia da segunda crista exposta.
Agora faltava pouco. Mais algumas rampas superadas e a aparição do Dedo de Nossa Senhora com seu cume quase na mesma altitude da nossa era o mais perfeito indicador da proximidade do cume. Fiz a última recomendação ao grupo sobre uma curta passagem um tanto exposta disfarçada na vegetação e avançamos para o tão esperado momento.
Houve cumprimentos mútuos, ligações telefônicas para comprovar aos que ficaram em casa duvidando se alguns conseguiriam e, claro, fotos, muitas fotos e vídeos. O vento, milagrosamente, diminuiu consideravelmente com a mudança para a tarde, o que permitiu ao Caio pilotar seu drone e documentar nossa posição naquele ínfimo ponto diante da grandeza da montanha.
O Dedo de Nossa Senhora ao centro, indicando que faltava pouco. À direita é possível ver um dedo do Dedo de Deus, ao centro e em plano intermediário, o Garrafão, e ao fundo parte da Travessia Petrópolis-Teresópolis e os Portais de Hércules.
O único destaque negativo foi o estado precário em que o livro de cume se encontrava. Além de molhado por estar em uma caixa plástica, cuja tampa não suportou o peso das pedras e rachou, estava cheio. Felizmente, a Ariane tinha algumas folhas de papel e fizemos nossas mensagens e as anexamos no livro. O ideal é o livro estar na consagrada marmita metálica.
Visão do drone da face do Escalavrado voltada para Guapimirim.
Ficamos cerca de quarenta minutos no cume. Ainda havia uma longa descida. Procurei deixar todos com o mínimo equipamento necessário para rapel. Foi no Escalavrado que li outra lição no livro de cume certa vez: “para subir todo santo ajuda; para descer, o diabo empurra”. Então, era melhor garantir.
Um pequeno ponto brilhante no cume era a melhor referência para nos identificar na visão do drone. Era a camisa do Pablo!
Iniciamos a descida e o grupo se espalhou demais na montanha com a confiança na diminuição do vento. Daniel, Eduardo e Silvênio pediram para que eu montasse a corda para rapel em alguns pontos. E os demais avançaram na descida, quando então poderiam ter deixado o material para rapel comigo a fim de garantir o back-up para os que assim escolheram rapelar.
Caio na descida.
Com paciência e sem pressa, passamos pelos obstáculos. Todos demonstraram grande desenvoltura. Às 16:30 chegamos na estrada e subimos até o estacionamento. Terminamos com o dia anoitecendo. Ali sim, pudemos celebrar a realização completa do objetivo em segurança e com muitas estórias para contar.
Deixo aqui meu agradecimento a todos os participantes pelos momentos de risadas. E que venham as próximas.
Da esquerda para a direita (independente do plano): Silvênio, Eduardo, eu, Vinicius, Pablo, Boechat, Ariane, Daniel e Caio. Todos inteiros, exceto o tênis do Silvênio!
Obs.: Não recomendo a ninguém fazer o Escalavrado com previsão de chuva e sem corda, simultaneamente.
uau, que relato irado!!
Muito bom amigaço. Fez lembrar das nossas primeiras investidas nessa montanha!! E informal ou não, seus amigos ganharam um grande guia. Parabéns. 👏🏻👏🏻👏🏻
Belo relato como sempre. Sigo sempre fã das suas aventuras. Abraço!