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Marco Valadares 10/11/2015 21:20
    Annapurna Circuit - Nepal

    Annapurna Circuit - Nepal

    Um furacão que passou pela Índia cobriu os Himalaias de neve... não terminamos o trekking. Foram 43 mortos. Ficamos 4 noites isolados.

    Alta Montanha Trekking Montanhismo

    O Annapurna Circuit é uma trilha tradicional no Nepal, considerada bem confortável pois há alojamentos em todas as paradas. Segundo algumas opiniões, a integração com a cultura local é mais interessante e as vistas mais bonitas que o trekking para o acampamento base do Everest.

    Contratei uma empresa local pela internet para um trekking em grupo com guia (ao chegar lá, acabei indo sozinho com o guia, meu amigo e anjo da guarda Ale Maguar, excelente pessoa e profissional).

    Em 26/set saí do RJ com destino a Dubai para comprar equipamentos, fui a Índia para conhecer o Taj Mahal e cheguei finalmente no Nepal, desembarcando em Kathmandu dia 2/out. Lugar ímpar, de forte religiosidade e cultura. Pessoas maravilhosas e um governo praticamente amador. Uma das maiores densidades populacionais do mundo e muita pobreza.

    Além dos objetivos de qualquer viagem de férias sozinho pelo mundo, o trekking me traria dois objetivos: O Tilicho Lake (um dos lagos mais altos do mundo, a 4.919mts) e a passagem mais alta, ou Throrung La Pass (5.416mts). Dentre os maiores desafios, as possíveis consequências da altitude.

    O mês de outubro não foi escolhido por acaso, mas além da disponibilidade para viajar, é um mês de temperaturas quentes e que não neva. Uma das duas temporadas de trekking no Nepal, que são dividadas pela monções, que trazem chuvas por metade do ano no oriente. Obviamente que os himalaias, em função da altitude têm neve todo o ano.

    De modo geral, o plano era :

    Parte 1) Sair de Kathmandu de carro, com destino a Bensishagar (820mts), subindo até o Kanghsar (3.734mts), com uma parada de um dia para aclimatação em Manang (3.540mts) - 7 dias de duração;

    Parte 2) Fazer um desvio na rota para o Tilicho Lake (4.919mts) e voltar para Khangsar (3.734mts) - 3 dias de duração;

    Parte 3) Ir de Khangsar (3.734 mts) para o Muktinath (3.800 mts), passando pelo Thorung La Pass (5.416 mts) - 3 dias

    Parte 4) Retorno de Muktinath até Katmandu, passando por Jomsom e Pokhara voando em bimotores com vista panorâmica dos Himalaias - 3 dias

    E a realidade foi:

    O início do Treeking é chato... bonito... mas chato... um treeking normal, porém beirando o rua, uma nova estrada está em construção, além de uma usina que está sendo construída por Chineses. Então, tem de tudo, máquina, trator, etc... Vale a pena pela cultura e pelo contato como povo de extrema generosidade e bondade do Nepal.

    O segundo dia é duro, com uma subida constante pelas pedras, que não acaba mais. O dia inteiro pisando em pedras soltas e subindo.. subindo... cansa, mas ainda estamos a menos de 3.000mts.

    Começa a ficar divertido quando você vê os himalaias pela primeira vez... após acordar na terceira noite, começamos a subir e ao virar uma curva dei de cara com aquela montanha enorme, de mais de 8.000mts... O Annapurna estava lá, finalmente. E você sobe... mais e mais.

    As fotos podem demonstrar um pouco do que é impossível descrever em palavras, mas só um pouco, eu garanto.

    Ao final da Parte 1, chegando em Manang eu estava perfeitamente aclimatado e me sentia muito bem. Ao acordar, decidi partir novamente, ao invés de fazer a aclimatação recomendada de mais 1 pernoite. Decisão acertada em função dos eventos subsequentes.

    Agora, parte 2, rumo ao Tilicho Lake, pernoitamos em um lodge isolado em Shree Karka (4.200mts), ponto de encontro de quem está indo e voltando do lago, porque a viagem até o lago leva 3 noites. Um local fantástico e isolado. No dia seguinte, partimos cedo para o Acampamento base do lago. Foi a única noite que precisei dividir o quarto com um espanhol, porquê o local não dispõe de muitos recursos e nem energia elétrica. Acordamos as 3 horas da manhã, tomamo um café e partimos para o lago com nossas lanternas. Uma boa caminhada no frio pois o trajeto é uma área de deslizamentos e quanto mais alto o sol, mais perigoso o caminho. Lugar fantástico! Primeiro objetivo alcançado. Um chá... algumas fotos... abraços... e de volta ao acampamento base.

    Ao retornarmos, almoçamos e decidi seguir a trilha de volta para o Lodge em Shree Karka. O guia achava melhor ficarmos ali pois havíamos caminhado bastante e acordado bem cedo. Seriam mais umas três horas de caminhada... mais uma decisão acertada. Chegamos no Lodge por volta das 17:00hs exaustos e nos reunimos com os outros guias, carregadores e turistas. Noite linda de lua nos himalaias, com uma nevezinha fraca em função do frio extremo na altitude. Éramos umas quinze pessoas no total, além dos 3 garotos que cuidavam do local.

    No dia seguinte... aí que tudo começou a ficar ainda mais divertido. Era dia de acordar e partir rumo ao segundo objetivo, a passagem mais alta do mundo, o Thorung La Pass. Por volta das seis da manhã, percebo uma movimentação estranha no local e me levanto para ver o que era (leopardo da neve? Pessoas passando mal?). Ao abir a porta do quarto, tudo branco! Neve... apenas neve!!! Mas era MUITA neve! Um trekker da sibéria sem camisa fazendo um boneco de neve... grupos reunidos sem saber o que fazer. Em cinco minutos percebi que não havia como sair dali e chamei o guia para conversarmos. Cerca de um metro de neve havia coberto os Himalaias em uma noite. Impossível seguir a trilha (que trilha?!?!?).

    Fizemos uma reunião e decidimos que ninguém deveria sair de lá por questões de segurança. Neste momento, em função de percurso e datas de vôos, uma noite não iria causar um grande dano na viagem, mas também não seria suficiente para sairmos de lá em segurança. Avaliamos os suprimentos de água e comida. A água acabaria até a noite e a comida duraria cerca de três dias com um certo racionamento. Obviamente que não faltava neve... então água não seria um grande problema.

    Também dividimos os grupos e decidimos trabalhar em três frentes: Construir um bloqueio na passagem em frente ao lodge (para saber se alguém conseguisse atravessar), um posto avançado de comunicação (em um único ponto onde havia sinal, muito raramente, um ponto de sinal de celular), e um mirante para pegarmos sol (pois a previsão seria ficarmos ali entre duas e quatro noites). Não havia comunicação, portanto não fazíamos a mínima ideia do que havia ocorrido. Nevou o dia inteiro. O único local com calefação (de estrume de Yak) era no "restaurante", onde passávamos o dia, olhando a neve cair e pensando no fim de nossas viagens de férias, remarcações necessárias de passagens, etc. Neste momento, em função da altitude eu já estava sem me comunicar com o Brasi a cinco dias e as pessoas já começavam a ficar preocupadas.

    Dia seguinte, e mais neve... já era quase um metro e meio de neve cobrindo todas as montanhas ao redor. Uma cena linda e aterrorizante ao mesmo tempo. Neste dia começamos a ver os helicópteros de resgate pois as condições estavam um pouco melhor para que voassem naquela altitude. Pegávamos sol... bebemos todo o estoque de bebidas alcóolicas... os grupos foram se formando... os ânimos foram se alterando com o tempo e a falta de comunicação...

    O ápice foi quando acabou o cigarro dos fumantes (é... muitos trekkers fumam, principalmente os europeus). O humor já não era o mesmo... sem perspectivas, tanto tempo planejando para nada... tudo fora de controle. Um sherpa que estava no grupo decidiu ir até um lodge que fica a cerca de meia hora de caminhada (sem neve) buscar suprimentos.

    Acho que foi o melhor diálogo da trilha. Bateram no meu quarto dizendo que ele iria sozinho buscar mantimentos e cigarro. Vesti um casaco e fui conversar com ele para dissuadí-lo da ideia em função de perigo. Já sem argumentos frente a sua convicção do quão útil seria ir até lá eu disse a ele:

    - Are you crazy, man??!?! Please don´t go!

    - I´m not crazy, man. I am a Sherpa!!! e sorriu...

    Só faltou pegar aquela faixa vermelha do Rambo para amarrar na cabeça... kkk. Rimos, tiramos uma foto juntos e fomos decidir a lista do que trazer. O grupo se dividiu: Uma parte queria comida e água... outra queria alcool e cigarros... kkkk.

    Neste momento, com pessoas de várias nacionalidade em meio a uma catástrofe, as discussões ficavam até divertidas. Havia tempo de sobra pra discutir sobre qualquer tema. O apelo por alcool e cigarros foi maior.. mas sobrou um espaço para arroz e lentilhas. Conferimos o equipamento e ele saiu sozinho após uma oração, seguido por nossos olhares atentos que o via praticamente desaparecer na neve a cada dez passos. Cerca de três horas depois avistamos ele voltando com duas sacolas marrons. Poderíamos ficar ali mais alguns dias!

    Foram mais duas noites, até que acordamos e nos deparamos com o bloqueio destruído por alguém que havia passado vindo do acampamento base. Esperança! A comida acabava na hora do almoço e todos decidimos tentar sair. Tudo isso ao som dos helicópteros que não paravam de seguir por dois caminhos, para retirar as pessoas do acampamento base do Tilicho Lake e rumo ao Thorung La Pass, onde não sabíamos ainda da morte de muitos turistas e Nepalis que tentaram descer a montanha ao ver que a neve estava aumentando.

    Então ficou decidido que eu iria na frente com o guia, abrindo caminho para o grupo que sairia cerca de uma hora após nossa partida do acampamento. Já sabíamos que seria impossível seguir viagem acima e a única saída, se possível, seria voltar por onde viemos (sem passar mais pelo Thorung La Pass, Jomsom e Pokhara). E começamos o retorno. Em meia hora, mesmo com equipamento "quase" apropriado, já estávamos com os pés congelados e molhados pela neve, pois afundávamos a cada passo (cheguei a afundar a perna esquerda inteira na neve e ficar preso).

    O caminho que levou uma hora e meia na ida, agora levava cerca de seis horas. Nos quatro dias que passamos isolados, estávamos todos desidratados em função de diarréia (eles não tem noção básica de higiene e havia apenas um banheiro, muito pior do que o da foto). Também ficamos com insolação por causa do sol, refletido na neve durante tantas horas. Foi... foi... foi um dia diferente em minha vida. A gente tinha uma barra de chocolate e faltava força até pra comer. Desidratados e cansados, chegamos ao portão da cidade.

    O que era pra ser a salvação era uma imagem difícil de ver... a cidade soterrada pelas avalanches. Passávamos por cima das casas, pelos terraços, até conseguir chegar a um lugar habitável junto com os Yakes. Conseguimos um local com um quarto seco. Estávamos MUITO acabados. Os mais idosos que estavam cuidando do local nos receberam enquanto os mais jovens trabalhavam tentando tirar a neve de todas as formas que se pode imaginar.

    Nos colocaram sentados ao sol, trouxeram alho cru para comermos e tiraram nossas botas. Eu fiz um vídeo mas eu mal tinha forças para sergurar o celular. Esperamos comida e água e fomos descansar para tentar seguir viagem no dia seguinte.

    Os próximos dias foram de muita esperança e luta para voltar a tempo de pegar o vôo de Kathmandú para o Rio de Janeiro. Pressa para dizer a todos que eu estava vivo e bem. A embaixada do Brasil em Kathmandu já havia sido acionada e estava buscando notícias minhas nos postos de controle. Foram dias de muitas emoções. Andamos a pé, a cavalo, de carro, de moto, etc... ao longo do caminho encontramos alguns conhecidos e era bom saber que todos estavam bem.

    Era comum seguirmos bem cedo, motivados, e nos deparamos com avalanches de neve cruzando quilômetros, sem possibilidade de contornar. Escalávamos cerca de cinco metros de blocos de neve misturados com rochas, terra, etc... De volta aos 3.500 metros, conseguimos sinal de celular e avisamos da nossa situação. Consguimos providenciar a logística que nos levaria de volta a Kathmandú.

    Ao retornar, depois de uma viagem de cinco horas de carro, cheguei num hotel (me colocaram num 4 estrelas) por volta das dez da noite. Recebi uma ligação da embaixada e outra do embaixador para confirmar que eu estava bem e informar que todos no Brasil já haviam sido comunicados do meu estado.

    Meu vôo era ao meio dia do dia seguinte. Tudo certo.

    Meus sentimentos por todos que ficaram por lá, ao buscar seus caminhos de aventura, ou por estar tentando ganhar a vida como guia ou carregador num país tão pobre.

    Meus eternos agradecimentos ao Ale, meu guia e amigo, e ao Achut, da agência Manakamana. Agradeço à Laurinha, pela indicação da viagem maravilhosa, e a minha família e amigos, que passaram maus momentos sem saber o que estava acontecendo. Parabéns a embaixada, pelo trabalho profissional e atencioso.

    Foi uma viagem inesquecível e incrível!

    Ao chegar que fiquei sabendo de todo o desastre que foi... passei informações de amigos para atualização da planilha de sobreviventes e guardei essa boa memória... Safe!

    Marco Valadares
    Marco Valadares

    Publicado em 10/11/2015 21:20

    Realizada de 05/10/2014 até 18/10/2014

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    5 Comentários
    Peter Tofte 13/11/2015 14:20

    Uau, por questão de horas vc não era pego no olho da tempestade, no Thorung La. Salvo engano 49 pessoas morreram lá, perdidos no meio da white storm! Este circuito está no meu caderninho, na lista de desejos.

    1
    Rodrigo Oliveira 25/11/2021 12:19

    No nosso! Excelente relato! O famoso "passou pelo pau do canto"!

    Marco Valadares 30/11/2015 21:16

    Peter, não deixe de ir! É um lugar fantástico. Ainda volto lá! Fiquei chateado de não ter "nem" visto o Everest... As vezes dá pra ver de Kathmandú mas o tempo não ajudou...

    Jose Antonio Seng 16/07/2021 20:18

    Relato fantástico, Marcos. Parabéns. Está na minha lista tb, Peter ! Annapurna e Manaslu.

    Sidnei Damasceno 27/02/2024 08:25

    Marco, juntando seu relato da palestra com esse texto muito bem dissertado pude ter ver o quão rica e desafiadora foi a sua experiência. Muitas histórias, muitos aprendizados e muita sorte também, afinal de contas, precisamos sempre um pouco dessa última.

    Marco Valadares

    Marco Valadares

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