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Ricardo Feres 14/12/2021 20:38
    Remando em volta da Ilhabela em um dia

    Remando em volta da Ilhabela em um dia

    Tentativa de remar, sozinho e sem barco de apoio, em volta da Ilhabela usando um caiaque oceânico.

    Canoagem Longa Distância

    O local

    Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, é uma das maiores ilhas oceânicas do Brasil, com 436 km² e 165 km de costa. Também é uma das mais bonitas, mas esse artigo não vai mostrar suas belezas, já que a remada que fiz com um caiaque oceânico no dia 13 de dezembro de 2018 não teve a intenção de aproveitar as paisagens, dessa vez fui pro mar querendo descobrir se seria capaz de circunavegar a ilha de São Sebastião, nome oficial da Ilhabela, remando em apenas um dia e sem barco de apoio, de modo autossuficiente.

    Os motivos

    Agora você deve estar pensando “Por que fazer isso, em vez de ir parando nas praias pra curtir o local?”. Sem dúvida seria mais divertido fazer em 3 ou 4 dias, como na minha primeira circunavegação da Ilhabela (leia no meu site o relato), mas agora minha intenção era de conhecer melhor meus limites como remador, tanto fisicamente como psicologicamente. E é por causa do fator psicológico que decidi ir sozinho, pois se tivesse um barco de apoio eu remaria sabendo que poderia seguir até o limite da exaustão, bastando entrar no barco de apoio se precisasse de ajuda. Estando sozinho é preciso dosar a energia gasta pois se houver um problema, como exaustão física e/ou mental, eu mesmo teria que resolvê-lo, assim como também teria que resolver algum problema relacionado ao mar.

    Essa ideia surgiu no segundo dia da minha primeira volta da Ilhabela, quando remei 50 km e terminei sentindo um cansaço apenas moderado, o que me deixou curioso pra conhecer meu limite. Depois a ideia tomou força por também servir de treino pra uma remada bem mais longa e exigente que pretendo fazer, mas se eu não passasse nesse teste, já poderia descartar o plano mais ambicioso que tenho em mente.

    O planejamento

    Como eu moro em São Sebastião, município em frente à Ilhabela, resolvi sair remando do continente. Apesar da distância ficar um pouco maior, a logística é mais simples, sem precisar atravessar de balsa durante a madrugada ou ter que dormir na ilha até a hora de partir. Optei por sair da Praia Preta do Centro, no trecho mais estreito do Canal de São Sebastião.

    Se eu pudesse escolher, faria a circunavegação no sentido anti-horário, já que assim o trecho com menos pontos de abrigo eu cruzaria na primeira metade da remada, com mais garantia de mar calmo e com o corpo descansado. Mas, se logo ao sair eu percebesse que o vento e a corrente estivessem me levando pro norte, já havia decidido que faria no sentido horário, pra não ficar me desgastando mais do que o necessário.

    Escolhi fazer isso no verão pois, apesar do calor ser um fator de desgaste e de haver mais chances de ter que enfrentar uma tempestade com raios, os dias são mais longos e eu teria que remar menos tempo no escuro. Apesar de levar um estrobo preso ao caiaque e uma lanterna de cabeça, quanto menos tempo no escuro, melhor, por causa do risco de um acidente com um barco a motor. Se você pensa que tem muito motorista de carro que é imprudente, é porque não viu como se comportam boa parte dos “pilotos” de lanchas.

    Meu caiaque oceânico possui dois compartimentos estanques, um na proa (frente) e outro na popa (traseira), mas para acessá-los eu preciso sair do caiaque. Como eu não pretendia parar em nenhuma praia, toda comida, água e equipamentos eu tive que arrumar de modo que pudesse acessar sem sair do cockpit. Estoque de água e maltodextrina (carboidrato de absorção lenta) ficaram atrás do assento e duas caramanholas presas sobre o cockpit pra ter fácil acesso. A comida ficou guardada em uma sacola estanque já na sequência que seria consumida, pra não perder tempo procurando o que quero. Por fim, equipamentos como GPS, rastreador via satélite, celular, câmera, colete, faca e outros, tudo ao alcance das mãos e no mesmo local usado nos treinos, pra poder pegá-los mesmo de olhos fechados.

    Ah, também levei uma barraca e um pouco de comida extra no compartimento estanque, pro caso de ter algum problema e precisar dormir pelo caminho.

    Os treinos

    Comecei a treinar em agosto de 2018, mas de modo bastante inconstante. Foram 33 dias de treino durante 4,5 meses, ou seja, média de um treino a cada 4 dias. Como esse é um desafio de resistência, me preocupei mais em fazer treinos longos do que em fazer treinos de força. Eu sabia que a maior chance de desistir seria por causa do grande tempo do caiaque, sentado sempre na mesma posição. Apesar do cockpit do meu caiaque (um Eclipse Artic) ser espaçoso e permitir que eu mexa as pernas um pouco, o máximo de tempo que já havia ficado dentro dele ininterruptamente havia sido de 9 horas, bem menos que as 17 horas que eu estava planejando.

    Percebi que estava pronto quando fiz um treino de 52 km em 9 horas e terminei me sentindo bem. Sabia que teria que remar 35 km a mais no dia do desafio e que as condições de mar poderiam estar piores, mas se eu continuasse a aumentar os treinos, poderia acabar me lesionando. Agora só me restava esperar a previsão ideal de tempo e mar…

    A execução

    Acordei às 03:30 do dia 11 de dezembro de 2018, coloquei os pães de queijo no forno, tomei meu café-da-manhã e fui checar as condições de mar. Pra meu desgosto, a ressaca (do mar, não minha) ainda não havia passado. Odeio ter que adiar algo mas achei por bem esperar mais um dia pra ver se o mar estaria melhor. No dia seguinte ainda não estava como eu queria, então deixei pro dia 13, quando a previsão dizia que o mar estaria calmo e os ventos favoráveis durante todo o trajeto. Sim, apesar de ser um roteiro circular, a previsão mostrava que o rumo do vento mudaria ao longo do dia, fazendo com que ele sempre estivesse a meu favor. Ah, os meteorologistas, esses grandes brincalhões!

    Trecho 1

    Enfim, acordei novamente às 03:30, comi, arrumei o que faltava no caiaque e comecei a remar às 04:38 na direção sul. A correnteza estava contra e era forte, como quase sempre dentro do canal. Mas, pra compensar um pouco isso, o vento estava favorável, e como no fim do dia, quando eu entrasse no canal, a previsão dizia que o vento estaria favorável novamente, decidi ir pro sul e fazer a circunavegação no sentido anti-horário.

    Apontei o caiaque na direção do farol da Ponta da Sela e saí remando em meio à escuridão de uma noite sem lua, aproveitando o silêncio quebrado apenas pelo barulho do caiaque cortando as ondas e de peixes que pulavam assutados. Depois de uns 20 minutos, meus olhos já estavam acostumados à escuridão e reparei que havia bastante bioluminescência, fenômeno causado por alguns tipos de algas quando estão sob stress, como o contato com o caiaque e o remo. Grosseiramente falando, é como ver vagalumes na água, lindo demais! Pra completar, estava na época da chuva de meteoros Geminídeas e tive a sorte de ver 3 estrelas cadentes antes do céu começar a clarear, uns 45 minutos depois da minha partida. Sem dúvida esse pequeno trecho foi um dos mais bonitos que tive em minhas remadas!

    Cheguei na Ponta da Sela às 06:08, depois de remar por uma hora e 31 minutos e deixar 9,1 km pra trás. Velocidade média de 6 km/h, abaixo do que imaginei fazer mas nada que preocupasse.

    Trecho 2

    Já com luz do dia, chegou a hora de ver como estavam as ondas em mar aberto. E pra minha grata surpresa, fora do canal o mar estava mais calmo que dentro, o mar estava um espelho e havia um vento lateral muito fraco, que não ajudava mas também não atrapalhava.

    Agora quem me divertia eram os atobás, fragatas e tartarugas, que fugiam apenas quando eu já estava do lado delas, já que com o silêncio do caiaque elas não percebiam minha aproximação. Também vi alguns cardumes de peixes bem grandes caçando junto à superfície. Não tenho certeza pois só pude ver a nadadeira caudal quando ela saía da água, mas pelo formato e tamanho, deveriam ser atuns.

    A remada estava rendendo tão bem que não parei nem pra comer. Era levar o pão de queijo pra boca e remar enquanto mastigava, minha coordenação pode não ser das melhores, mas isso eu consigo.

    Esse trecho teve 26,4 km que eu percorri em 4 horas e 21 minutos, o que dá uma velocidade média de 6,1 km/h. Já a média apenas do tempo em movimento foi de 6,8 km/h, que é o meu normal quando correnteza nem vento estão ajudando ou atrapalhando. O total até aqui foi de 35,5 km, 5 horas e 52 minutos e média de 6,1 km/h.

    Trecho 3

    Pouco tempo depois que virei a Ponta do Boi, começou a ventar. E não era qualquer vento… O mar começou a subir e os carneiros (onda que estoura no meio do mar) eram frequentes. No começo o vento estava a meu favor, o que me fez remar a 10 ou 11 km/h por uns 20 minutos, mas logo o vento mudou de novo de direção e ficou de través, fazendo algumas ondas passarem por cima do caiaque. Pra quem não está acostumado com caiaques oceânicos, vale dizer que existe um equipamento, chamado saia, que fica preso à cintura do remador e à borda do cockpit, evitando assim a entrada de água quando uma onda passa por cima do barco. Mas voltando à remada, esse vento e ondas não ajudavam nem atrapalhavam meu rendimento, mas me impediam de parar de remar pra pegar comida, água e até mesmo pra aliviar minha bexiga, que já parecia um baiacu.

    Pensei que dentro do Saco da Pirabura o mar estaria mais calmo mas que nada… Continuei em frente repetindo o mantra “não estou com sede e não preciso fazer xixi”, quem sabe assim eu convenceria meu corpo. Pra meu alívio, junto da Ponta da Piraçununga o mar estava bem calmo e puder parar pra resolver meus problemas com os líquidos e comer mais um pouco.

    Assim que saí do abrigo do rochedo, voltei a me lembrar de quando era criança e brincava no touro mecânico. Assumo que isso me deixou um pouco nervoso pois ultimamente não estava treinando o rolamento, que é a técnica usada para desvirar o caiaque sem sair de dentro dele. A falta de treinos não foi por preguiça, mas por causa de uma distensão no bíceps 45 dias antes. Se o caiaque virasse, será que eu conseguiria desvirá-lo? Ou teria que sair dele, retirar toda a água e voltar pra dentro? Ainda bem que o rolamento não está 100% mas o equilíbrio está em dia e não capotei.

    Enquanto eu remava em frente à Baía de Castelhanos, dezenas de peixes voadores bebês fugiam do meu caiaque, mas os que voavam contra o vento eram jogados contra mim ou o caiaque, coitados. Já os que levantavam voo a favor do vento eram arremessados uns 20 metros pra frente, devem até ter pensado que já sabem voar como adultos.

    Fui remando sem nenhuma pausa até chegar na ilha da Serraria, quando achei uma pequena baía bem abrigada e pude novamente encher as garrafas de água, esvaziar a bexiga, comer e… Golfinhos! Sim, eu gritei pra mim mesmo ao ver um grupo deles passar a uns 200 metros de mim. Parei o lanche no meio e saí remando, mas eles também estavam indo pro norte e não consegui alcançá-los. Mesmo de longe é sempre bom ver golfinhos, já que na minha lista de animais mais legais, eles só perdem pros boxers.

    Esse trecho durou 3 horas e 27 minutos, sendo que por 27 minutos eu estive parado. Remei 23 km, a velocidade média geral foi de 5,8 km/h e a média em movimento foi de 6,5 km/h. No total até aqui, remei 58,5 km em 10 horas e 50 minutos, média de 6,0 km/h.

    Trecho 4

    Agora eu tinha apenas 14 km me separando do canal de São Sebastião. Mais uma vez a previsão errou, em vez de ter um leve vento a favor, eu tinha um leve vento contra, mas como não estava forte, meu ritmo não caiu muito. Além disso, eu sabia que se chegasse até aqui, não teria problemas pra finalizar a volta em um dia, o que fez minha moral ir lá pro alto.

    Foi tudo bem até chegar na Praia da Fome e começar a encontrar os barcos de “farofa” (escunas barulhentas com pessoas barulhentas, podem me julgar) e os pilotos de lancha que insistem em passar em alta velocidade a 5 metros do caiaque, não sei se por sacanagem ou imbecilidade mesmo. E o pior é que como era fim do dia, eles estavam indo na mesma direção que eu, então sempre que eu ouvia um barco atrás de mim, ficava me virando pra descobrir se ele estava me vendo. Quem já me perguntou se tenho medo de ir pro mar ou pras montanhas sozinho, sabe que minha resposta é sempre “eu tenho medo é de gente”.

    Depois de 2 horas e 48 minutos pra cruzar 14 km, cheguei na Ponta das Canas, no norte do Canal de São Sebastião, com média total de 5 km/h e média em movimento de 5,2 km/h. Até aqui, total de 72,3 km percorridos em 12 horas e 35 minutos, já com 20 km a mais que minha maior remada até então.

    Trecho 5

    Falta pouco, estou chegando! Foi o que pensei quando entrei no canal, eu só não contava que a tal previsão de vento leve a favor errou feio mais uma vez. O vento estava forte e era contra, o que somado à correnteza contrária, fez minha velocidade ficar entre 2,5 e 3,5 km/h, mesmo me esforçando muito mais que em todo o tempo anterior. Você, meteorologista, por favor não leve pro lado pessoal, mas que nessa hora eu te xinguei muito, eu assumo. Enfim, só me restava remar forte e não parar nem pra beber água, pois quando parei de remar apenas 20 segundos, o caiaque já estava a 4 km/h no sentido contrário. O mar ficou assim por uma hora e meia, sendo que em outros dias eu cheguei a remar esse trecho inteiro, da Ponta das Canas até a Praia Preta, em uma hora e meia.

    Quando o vento amansou ainda me faltavam 7 km, e tendo apenas a corrente contra, subi a velocidade pra 5 km/h e, novamente, fiquei sem parar pra comer pois não sabia se o vento voltaria. Ele não voltou e eu pude curtir um lindo pôr-do-sol por trás dos morros de São Sebastião, passar por baixo do terminal petrolífero, ver o centro da cidade se iluminando e chegar na Praia Preta às 20:22.

    Esse trecho teve 12,9 km percorridos em 3 horas e 8 minutos, com média de 4,1 km/h. No total, minha volta na Ilhabela durou 15 horas e 44 minutos, com distância de 85,7 km. Velocidade média geral de 5,4 km/h e média em movimento de 5,8 km/h. O números me deixaram satisfeito e já pensando no próximo desafio, mas com certeza o que mais me lembrarei foram das estrelas cadentes, bioluminescência, atuns, peixes voadores, golfinhos e as muitas horas na companhia de um dos pontos mais bonitos do litoral brasileiro, visto a partir de uma embarcação que não polui, não faz barulho e ainda por cima, emagrece. Recomendo!

    Ricardo Feres
    Ricardo Feres

    Publicado em 14/12/2021 20:38

    Realizada em 13/12/2018

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    323

    12 Comentários
    Edson Maia 15/12/2021 08:21

    85 km em apenas um dia?! Irado demais... Parabéns pelo feito! 

    1
    Ricardo Feres 23/12/2021 07:13

    Obrigado!

    Muito legal o teu relato! Parabéns! Remar é uma delícia, mas 85 km... só para os feras👏🏼👏🏼👏🏼

    1
    Ricardo Feres 23/12/2021 07:13

    É só questão de treino, muito obrigado!

    Thales Fernandes 17/12/2021 19:18

    Meus parabéns, Ricardo! Essa não é pra qualquer um... Eu pretendo começar a treinar agora em Janeiro para fazer 41km na travessia Antonina - Ilha do Mel. Dicas?

    1
    Ricardo Feres 27/12/2021 22:00

    Obrigado, Thales. Legal que vai começar a treinar mas, sobre dicas, fica difícil dar alguma sem saber se está começando do zero, se tem alguma experiência, qual seu caiaque etc.

    David Sousa 01/01/2022 15:42

    parabens top

    1
    Ricardo Feres 05/01/2022 05:38

    Valeu!

    ⛰Trilhando Trekking 04/01/2022 22:10

    Massa demais!!

    1
    Ricardo Feres 05/01/2022 05:38

    Obrigado!

    Rogério Lupiao 10/08/2023 20:05

    muito legal essa aventura....vou colocar na minha lista de sonhos a realizar.   parabéns

    1
    Ricardo Feres 12/08/2023 21:54

    Obrigado Rogério, bota na lista porque vale a pena.

    1
    Ricardo Feres

    Ricardo Feres

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    Fotógrafo de natureza e autor do livro As Mais Belas Trilhas da Patagônia

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