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Alpha Crucis 2023 MDA

Alpha Crucis 2023 MDA

Travessia clássica, talvez a mais dificil travessia de montanhas do Brasil. Desafiadora. Relato resumido. Versão integral em revisão.

Trekking Montanhismo Hiking

Iniciativa do sertanista Élcio Douglas, inaugurada em 2012 à custa de muito suor e, certamente expressivo
tributo de sangue às “impérvias e espinescentes” matas. Faz juz a alcunha de “inumana e desumana”, sendo
provavelmente, a travessia estabelecida no Brasil mais casca-grossa que se “pode” fazer. Cruza os alcantis
de três serras, em 7 municípios e apresenta dificuldades de todos os tipos, para todos os gostos.
Em linhas gerais, a AC é o somatório da Serra do Ibitiraquirê (Guaricana - Marco 22), com a Serra da
Farinha Seca (Mãe Catira - Balança) e com a Serra do Marumbi (Pico Marumbi- Morro do Canal). Qualquer
uma dessas travessias, em si, já traz seus desafios, e fazê-las em sequência, de forma contínua e em até 11
dias, agrega ao cansaço físico a complexidade de lidar com o clima do Paraná por mais dias. É um grande
complicador. Deparar-se com frentes frias durante essa trilha é algo que merece especial atenção, pois
dificulta ou impossibilita o avanço. Vaus de rios se tornam torrentes insuperáveis e cumes de montanhas,
para-raios naturais. A vegetação nos cumes é retorcida pela força dos ventos e, nos bosques dos vales, a
queda de árvores e galhos, um perigo real e constante. Unidas, formam a maior aventura de montanhas que
pode ser feita em terras tupiniquins. Tamanha dificuldade desse Oscar de aventura raiz que o rol não
alcança uma vintena de intimoratos montanhista, em sua versão “clássica/original”, todos paranaenses:
Élcio Douglas Ferreira (2012); Jurandir Constantino (2012); Cleverson Bueno de Souza (2017); Leandro
Carvalho Cechinel (2017); Lucas Augusto Feltrin (2017); Israel Silva PR (2018); Paulo Taqueda (2018);
Fernanda Lopes da Silva (2018); Onildo Paulino (2018); Pércio Fernando dos Santos (2018), SANDRO
ROGÉRIO GODOY (2018); Anderson Luiz Paz PR (2018) e Jorge Henrique Cesário Nentwing (2018).
Deixo curta homenagem ao Sandro que, ao socorrer a namorada de uma queda, acabou vitimado por uma
picada de cobra no Panamá. Esteja em Paz, trilhando as maiores montanhas, além dessas nuvens mundanas.
Soube pelos registros nos livros do grupo do Everton, Ildo e Paulo, uma garotada com abordagem mais
moderna que fez a travessia em sentido inverso, e em estilo alpino. É possível que o excelente
condicionamento físico do grupo, o bom conhecimento do trajeto e uma janela climática favorável faça crer
que é “tranquilo”, que eles apenas “foram”, quase sem planejamento e preparo. Leitor, se teve essa
impressão, sugiro que reveja os vídeos. Há ali importantes alertas para a complexidade e riscos do projeto.
Uma versão mais “condensada” (e certamente tão desafiadora quanto) foi criada em 2019, pelo mesmo
montanhista, buscando otimizar a travessia de todo o conjunto. Ao tradicional AC somou-se o “E” de
“express” explicitando as diversas otimizações de percurso que restringem o caminhar em estradas ao
imprescindível de cruzá-las. Anda-se em 99,98 % do tempo por trilhas e caminhos históricos, em grande
parte, veredas que a reduzida frequência de passagem resiste à retomada pela mata. Não exagero
observando que é luta, à la Sisifo, pela preservação da história da constituição do próprio Paraná. Apenas
sete montanhistas a concluiram: Élcio Douglas Ferreira - PR (2019); Israel Silva – PR (2019); Andre Grauer
Franzon – PR (2019); Thiago Korb Pelegrini – RS (2019), Luciana Moro – RS (2019), Helena Nakahara –
SP (2023) e Henrique Baldo – SP (2023).
Ainda nos primórdios de 2019, ao escutar a proposta do Douglas, alternava assombro, temor e encanto. A
enormidade do desafio exigia planejamento profundo, em minúcias, mesmo. Seriam necessárias diversas
preliminares para reconhecimento. Os impactos da pandemia mundial de COVID-19 nos forçaram a
postergar o projeto, com a parte de incursões a campo prejudicada pelos sucessivos bloqueios de estradas
e acessos.
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Estudamos as séries climáticas da região, concluindo que não devíamos
contar com 10 dias secos consecutivos. Os inelutáveis compromissos
profissionais foram alinhavados coletivamente em uma “janela” de 15 dias
em julho, dentro dos quais ajustáriamos nossos 11 dias previstos de provação.
Estimamos que teríamos no mínimo 30% de tempo ruim, e nos preparamos
para caminharmos 50% do tempo sob chuva. Importante esclarecer que há
chuvas que prejudicam o avanço e outras que o impedem. Na travessia,
reservamos especial atenção às previsões de tempo e a evolução das massas de ar, visando nos manter
dentro dos limites de segurança. Foi o principal mote dos tratos com a “civilização” e objeto de revisão
diária, cotejando o tempo experimentado com o previsto e, ajustando nosso planejado em decorrrência.
Baseamos a quantidade de nutrientes no testado em trilhas anteriores,
reservando refeições quentes para o jantar. Manteríamos conosco um
pacote de macarrão instantâneo e dois pacotes de sopa, bem como os
equipamentos de cozinha de fácil acesso, no topo das mochilas, quando
a caminhassemos sob chuva. Usaríamos camadas sucessivas de proteção
para reduzir o risco de hipotermia e manteríamos cuidados mútuos sobre
o consumo dos lanches de trilha e de água, visando evitar eventual
hipoglicemia ou desidrataçã acidental. O uso de protetor solar, também
foi tratado como de elevada importância, pelo número de dias antes de retomarmos à civilização. É muito
fácil descuidar de qualquer desses fatores, e a conta da incúria pode tardar um pouco, mas chega. E é
onerosa, acredite. Os lanches de trilha privilegiavam alimentos de rápida absorção, boa palatibilidade e
fácil partilha. Para os jantares a dieta variava entre massa e arroz/feijão com alguma fonte de proteína.
Consumimos linguiças, peito de frango, sardinhas, atum, carne desidratada. Os cafés da manhã contavam
com tapioca ou lanches com pão tipo Rap10. Tivemos mingau, cuscuz doce e salgado, sopas. Etapa vencida,
um acalanto especial de prêmio: chocolates, doce de figo, doces sírios, goiabada e bananada cremosas.
Elaboramos um mapa específico para a travessia,
impresso em 6 páginas A4 e plastificado, permitindo
que pudessemos, a qualquer momento cotejar o
avanço real em relação ao previsto e aos quilômetros
restantes. Durante o planejamento, ficou combinado
que cada um avaliaria suas condições para os ataques
e que não haveria deslocamentos significativos em
solitário. Dessa forma teríamos segurança nas
duplas, trios e quartetos ou dos acampamentos.
Na questão dos primeiros socorros, machucados e afins consideramos a qualificação do grupo, a extensão
da empreitada e o quantitativo de pessoas. A rede de apoio para remoção emergencial demandaria horas ou
ao limite, dias para um suporte hospitalar, então focamos nas ocorrências mais prováveis. Sou brigadista
há anos e com qualificação em PS em áreas remotas, com alguma noção dos riscos a que estarimos expostos.
Ainda que não fosse assunto alegre de tratar, era necessário. Alergias e medicações de uso pessoal ou de
emprego mais frequente foram detalhadas para que cada um tivesse, pelo menos o histórico pregresso
coberto. Esse cuidado seria crucial para que todos regressássemos com segurança e quase “incolumes”.
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Encaixamos em 2022 a Farinha Seca e a Alfa Ômega, entre outras trilhas diversas no Paraná e em SP. Em
2023 apertamos a rotina, buscando travessias mais pesadas sempre que possível; fizemos uma nova versão
da Serra Fina Full em maio e em junho, uma travessia inédita ligando a vila dos Marins com o Itaguaré em
48 h, passando pelo Focinho de Cão, Maria, Mariana, Marins, Marinzinho. Finalizamos os preparativos
com uma travessia “completa” do Ibitiraquirê, em 5 dias. Aproveitei uma “Travessia das Fazendas” dos
Arcanjos para arrastar a Amanda Mascaro, a Daniela Paz e o Walter Franco na nobre e suada tarefa de
repor o livro de cume do Taquaripoca. Somamos a esse os cumes Camapuã, Camapuã, Tucum, Cerro Verde
e Itapiroca. Nessa travessia, por descuido, sofri uma queda que resultou no ralado do joelho que eu
acompanharia preocupado ao longo de toda a travessia (e depois também).
Com considerável dificuldade, encaixamos também as instalações dos 4 pontos de suprimentos que
previmos: A1, Siririca, Marco 22 e Usina Marumbi. Moro em Santos, o Douglas em São Paulo, então
providenciávamos as coisas em separado, nos reunindo literalmente, nas vésperas das missões.
Especial atenção foi dada para a composição da equipe. Caminhar bem, por longas horas e sob condições
adversas são requisitos necessários, mas não suficientes. Uma travessia dessa magnitude com alguém dificil
no trato faria dos 11 dias previstos um castigo insuperável. Bom humor, empatia e resiliência eram
igualmente basilares. Esclareço que não basta a pessoa ser “boa gente” na civilização, no bar… quanto mais
próxima da condição vivenciada em trilha pesada e “ruim” mais acurada resulta a avaliação. Que também
não se entenda que os companheiros de trilha precisam ter completa afinidade entre si, algo virtualmente
improvável, e sim, um visceral alinhamento de princípios. Dessa forma, convidamos a Amanda, o Rafa, o
Juninho, o Will, o Gui e o Erick. O Gui afiançou um amigo de outras pernadas, o Macedo, e, em deferência
a tudo que ele já sofrera conosco, acatamos a sugestão, que se mostraria precisa. A agenda de aulas e
compromissos familiares inviabilizaram a participação da Amanda, nosso primeiro desfalque. Fechamos o
grupo em 6 integrantes: Douglas, Gui, Macedo, Rafa, eu e o Will. Na 25º hora, uma emergência profissional
levou ao cancelamento das férias do Will e nos privou de um dos componentes mais fortes.
Dia 1 Nos reunimos na Fazenda Rio das Pedras às 21h30, ultimamos os ajustes nas cargueiras,
acomodando os equipamentos suplementares (ponchos de emergêmcia, toalhas grandes, capas de chuva) e
buscando a redução de peso possível, conversamos com o pessoal que nos
apoiava ali, fizemos a clássica foto inicial e entramos na trilha às 22h30.
Iniciamos a travessia andando em passo leve e animado, cada um provando
dos primeiros metros sob a cargueira, grande companheira da próxima dezena
de dias e, buscando evitar um erro de navegação que nos tomasse tempo
adicional, chegamos ao cruzo com a subida para o Guaricana. Ao longo do
ataque, o Gui ficou mareado, talvez por algo que comera no jantar.
Reduzimos a velocidade da subida, com curtas paradas para que recuperasse o mínimo de condição para
prosseguirmos. Nessa toada, de forma mais tranquila, alcançamos o cume do Guaricana às 1h25. Fizemos
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algumas fotos, os devidos registros no livro de cume,
informando o nome de todos do grupo, nossa origem,
idade e destinos, tanto direto quanto de
acampamento. O registro no livro de cume, o mais
completo e assertivo possível, contribui
enormemente em eventuais processos de buscas e
resgates. Quanto mais ermo e dificultoso o caminho, maior a importância que reveste esse cuidado.
Retornamos até as cargueiras e tocamos em direção ao Ferreiro (5h10) onde uma curta pausa para registro
revelou o vazio da caixa metálica e deixamos apenas um adesivo. Com o frio da madrugada a nos incentivar,
rapidamente seguimos em direção ao Ferraria, alcançado às 08h00 já sob o agradável sol matinal. Às 8h40
iniciamos a descida da Face Leste, em direção ao acampamento ao lado da ponte Indiana Jones, com a
intenção de montarmos acampamento ainda pela manhã, de forma a termos a tarde toda para o ataque ao
Jacutinga. A descida da Face Leste é, no mínimo, intensa, longa e em
alguns trechos, vertiginosa e foi concluida às 12h34. Acampamos às
13h, e por cautela, informei que não faria o ataque ao Jacutinga,
poupando forças para o par Saci – Sacizinho na madrugada seguinte,
antes de subirmos até o colo A1-PP. Às 15h, o trio Douglas, Gui e
Macedo partiu para o segundo ataque da travessia, com retorno previsto
para às 23h. Combinamos de estarmos prontos para recebê-los com uma
refeição quente. Reforcei que levassem os ponchos de emergência, passei o comunicador via satélite para
o Douglas, considerando eventual necessidade e me recolhi. Em minutos estava dormindo. Caíram algumas
pancadas de chuva, mais ou menos intensas. Abrigado na barraca, apenas percebi a ocorrência. A chamada
via rádio, prevista para após as 21h30 não ocorreu e continuei dormindo até pouco após as 1h30. Chamei
o Douglas, na esperança de que tivessem optado por não me acordar, e já estivessem descansando. Não
obtive resposta. Chamei no rádio e nada. Levantei-me, calcei o tênis e verifiquei as barracas, nada. Ainda
não haviam retornado. Avaliei as possibilidades, e às 2h, acordei o Rafael. Estudamos o mapa e os tracks
gravados, avaliando como auxiliar ou resgatar o trio. Às 2h30 havíamos decidido que desmontaríamos uma
barraca e seguiríamos pela picada do Cristóvão até a entrada para trilha, onde tentaríamos novo contato via
rádio. Levaríamos os materiais de primeiros socorros e de cozinha para caso de hipotermia e exaustão.
Iniciamos os preparativos para a expedição de busca e resgate, tendo combinado a partida para às 3h.
Felizmente, o pessoal chegou ao acampamento às 2h40. Foi um grande alívio. Rapidamente, preparei sopa
quente para os três, enquanto eles se arranjavam. Antes de voltar a dormir, verifiquei a previsão de tempo
pelo comunicador via satélite, informando que passarámos a ter precipitação acumulada de 30 mm , à partir
das 14h. Enquanto terminava a arrumação da barraca para dormir, o Douglas me questionou se entendia
viável prosseguirmos em dupla, pois escutara de um paranaense que estaria pensando em desistir. Lhe
respondi para dormir, que quando o grupo acordasse discutiríamos o que fazer.
Tentarei, dentro do possível retratar o ocorrido com o “trio do Jacutinga”. Partiram à passo rápido, pouco
sensibilizados pelas 14 horas de caminhada. Gui e Macedo puxando a trupe pelo suave declive do
remanescente da estrada de serviço aberta na década de 1950/60 para a construção dos túneis de adução
das águas para a usina. Deixaram a estradinha, cruzaram o Saci, com a inclinação aumentando conforme
buscavam o ombro da montanha, alcançado na cota aproximada de 750 m. A chuva os alcançou primeiro,
às 17 h, e os acompanharia, intermitente por todo o restante da pernada. Em certo momento, ocorreu a
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primeira pérola dessa pernada: o Douglas, sensibilizado pela extensão da caminhada total até ali, perguntou
“falta muito?” ao, que o Gui, com inegável sadismo respondeu “apague a lanterna. É lá” apontando para o
cimo da montanha que se projetava contra o céu noturno. Estavam, nessa hora, a cerca de meia altura da
ida, e certamente, a visão da enormidade ainda a galgar deve ter despertado respeito, e talvez, até um
pequeno temor. Das palavras do Douglas: “um passo por vez, um leão por dia”, aquele cume era o Alfa
daquele bando, a fitar impávido, o trio que lhe subia a encosta.
Como não há subida que não seja vencida pelo produto dos infinitos passos da inarredável persistência,
cumearam o Jacutinga às 19h37. Para descansarem os ossos, restava o retorno. Agora os caminhos e rastros
não se mostravam tão lógicos quanto no momento da ascensão e logo, após um lance desescalado com o
auxílio de fita, num pequeno trecho de florestinha, o caminho pareceu sumir. Eram aproximadamente,
21h30. O trabalho de equipe na busca do rastro certo, que usualmente prontamente sanaria esse erro, ali
não foi eficaz. Diversas sugestões feitas e felizmente, descartadas: “um queria rasgar o mato no peito”,
outro propunha “bivacar por ali mesmo” ou ainda “retornar ao cume”
, na esperança de que, na nova descida,
livrarem aquele “erro” que não encontravam. Passaram bastante tempo ali, na busca da passagem que
insistia em desafiá-los, até que, num desses lances onde a sorte recompensa a persistência, encontraram o
caminho certo e tocaram montanha abaixo. Haviam ficado mais de hora nessa busca, até finalmente
perceberam que estavam “sempre” com um deles na frente da passagem buscada, porém de costas. Esse
“um” acabava por obstruir a visão dos outros, numa cegueira coletiva das mais peculiares. Na descida, após
o reencontro da trilha, o Douglas, num lance que costeava o rio, chegou a cruzá-lo antes do devido, e ao
notar o erro, com a voz vencida pelo trovejar das águas, lembrou-se de sinalizar com a lanterna. O Macedo
prontamente percebeu os sinais e voltou uma trintena de metros para indicar a correção de rota. Novamente
reunidos, seguiram até cruzar o rio Saci no mesmo ponto da ida e pouco depois pisaram novamente no
remanescente da velha estrada de serviço. Ali, se arrastaram, dormitando enquanto andavam, cada um na
sua “via crucis” particular.
Dia 2 Castigados pela caminhada da véspera, o pessoal tardou a levantar. Acordei o Douglas às 8h e
umas 8h30 o Macedo e o Gui. Devido a precipitação prevista, decidi não atacar o Saci e Sacizinho,
primando pela segurança de passar pelos cruzos de rio mais delicados antes que ocorresse aumento do nível
d’água. Permanecermos mais um dia acampados ali foi descartado, por colocar em grande risco a conclusão.
Com o desgaste da véspera só começamos a nos mover muito tarde,
11h40. O caminho na parte baixa do Vale do Rio Cotia segue por
trechos remanescentes da estrada de serviço que foi aberta para a
escavação e concretagem do túnel adutor da usina Parigot de Souza.
Para mim, que adoro a parte de arqueologia industrial, foi um
verdadeiro parque de diversões: cortes nas encostas, trechos de
estrada, concretagens e ferragens que a mata aos poucos cobre estão
espalhados por todo o trajeto. Grandes massas de concreto ciclópico aparecem aqui e ali, assim como bases
em concreto armado para equipamentos de processamento dos fragmentos de rocha do túnel. Em alguns
trechos, palmilhamos solo de cascalhos e detritos removidos no processo de perfuração do túnel.
Rapidamente, às 12h40, atingimos a Janela da Cotia. Optamos por sequer conhecer a entrada para
ganharmos preciosos minutos. Seguindo o rastro batido, um descuido nos fez perder um desvio à direita,
rio acima e o Rafa cruzou o rio pela estrutura de uma antiga ponte de serviço, basicamente 4 perfis “I” de
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aço, apoiados sobre um substancial enrocamento no leito. Do outro lado, após avaliar cuidadosamente,
informou que a trilha não seguia ali e me pediu que verificasse se não havíamos
perdido uma bifurcação/desvio. Voltei até a última fita observada e, agora mais
atento à uma provavel saída à direita não tardei a encontrá-la. Caminhei uma
trintena de metros até nova fita, marca inconteste da passagem naquela direção.
Voltei ao Rafa estava e o informei da boa nova: caminho encontrado! Que
retornasse para o lado certo do rio, para podermos prosseguir. Se na ida, mal
notara a instabilidade da estrutura, na volta foi diferente.
Novamente no caminho adequado ao nosso intuito, continuamos a subir o vale
ora pela margem ora por dentro do próprio rio até encontrarmos uma cachoeira
(14h) que impedia o prosseguir por dentro do rio e que superamos pela esquerda por uma raiz e corda. Às
14h30, sob cinzentas nuvens ameaçadoras, com o ar parecendo “pesado” e com a fauna totalmente silente,
na expectativa da tempestade prometida, alcançamos a base do grande deslizamento na margem esquerda
do rio, aquele mesmo que havíamos observado durante a descida da face leste do Ferraria, na véspera.
Depois de cruzar a área dos destroços, à semelhança de uma morena de glaciar, composta de troncos, rochas
e lama, a trilha seguia pelo leito do rio por mais uns 200 metros antes de passar a subir pela encosta direita,
quase que à prumo. Às 15h30, estávamos com a parte de maior exposição aos riscos de chuvas e eventuais
cabeças d’agua superada. Na maior parte do tempo, o Rafael seguia à frente, pesquisando os rastros e
interpretando qual o caminho que nos levaria montanha acima. Eu fazia a conferência dos rastros e o
Douglas seguia de fecha, tentando se recuperar do desgaste na véspera, enquanto caminhava. O ganho de
altitude era lento, com a necessidade de eventuais descidas para alcançar
algum ângulo melhor na encosta. Mudanças abruptas na direção e da
trilha, cruzos com pequenos riachos pediam criteriosa conferência da
direção correta, pois tanto a trilha podia prosseguir na margem oposta,
por vezes em uma cota mais elevada, quanto poderia ser necessário
percorrer uma vintena ou mais de metros por dentro da calha do curso
d’agua. Muito importante a disciplina do grupo quanto ao eventual
deslocamento de rochas, permanecendo sempre atentos. Em pelo menos
três eventos rochas deslocadas diretamente (mais fácil de perceber) ou
indiretamente, ao forçar uma raiz ou um galho (difícil de avaliar),
passaram perto de acertar mais seriamente um de nós. Como lição, de forma geral, antes de “forçar a mão”
numa escalada improvável e exposta, convém estressar soluções de menor exposição. Sempre que ignorei
essa regra, me vi em situações inadequadas e de exposição desnecessária. Lembrete crucial: não é porque
você consegue fazer algo que deva fazê-lo. Num desses lances, subi uns 10 m de uma cascata, agarrando
em lírios e nas reentrâncias da rocha, antes de ter certeza que a passagem correta não era por ali, para cima
parecia impraticável e a descida parecia algo beirando o suicídio. Nessa hora, a ajuda do Douglas para
desescalar com segurança foi primordial. Mais à frente, já quase no final da subida, quando o Rafael
alcançou uma parede vertical e informou que pelo trackloc a trilha parecia ser por ali, não tive pejo em
refugar e buscar o ponto de sair da calha daquele riacho que havíamos perdido. Descemos pouco mais de
50 metros antes de encontrar, à direita, a arvore e a corda para superar aquele trecho. Era o último lance de
corda, bastante exposto, a partir dali seria uma escalaminhada pela ribanceira de 50º usando as raízes,
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pedras, solo, arvores, o que fosse possível como apoio. Estudamos um pouco como acessar a passagem
vertical, escalei primeiro esse lance, de cargueira, mas concluí que seria por demais custoso e arriscado aos
demais fazê-lo, então subi alguns metros até um pequeno
patamar, deixei a minha cargueira e desci para içar as
cargueiras do Douglas (pesadinha) e do Rafael (pesada, pois
carregava 3 litros d’água).
Na hora eu desconhecia esse excesso de previdência do
Rafael, o que contribuiu para que ele amargasse o transporte
de um peso extra desnecessário. Mantive pouco menos de litro
d’água, no bolso da alça peitoral da cargueira, de fácil acesso
e com consumo frequente. O Douglas carregava algo próximo
de 600 ml. Após içar as mochilas e travá-las para que não
rolassem ribanceira abaixo, vesti novamente a minha e toquei
até o colo (20h30). Nesse trecho, ultrapassarei a linha das
nuvens e me vi livre da densa névoa que a tudo encharcava
algumas de dezenas de metros abaixo. Despi a cargueira e
voltei para informar a boa nova.
Pouco depois, estávamos os três na trilha, subindo sem pressa em direção ao A1, para acamparmos. Apesar
de perto, o cansaço do dia se refletia nas pernas de cada um e aquele resto de caminhada do dia parecia
mais longo que o esperado. Peguei doces e castanhas e insisti para que o Rafael comesse, pois notara que
tropeçava com mais frequência que o normal. O Douglas, parcialmente recuperado da longa caminhada da
véspera, puxava o comboio do fatigado trio, comigo fazendo as vezes de fecha-trilha. Na subida, consegui
contato com a Amanda e pude esclarecer que não houvera erro de navegação, a descida da face leste fora
intencional, ainda que inédita numa AC. Não imaginamos que poderíamos causar preocupação nas pessoas
que nos acompanhavam e que deveríamos ter informado melhor o planejado. Por ambas as falhas, peço
desculpas em nome do grupo. Chegamos na área de acampamento, vazia, e escolhemos um bom local,
plano e que coubesse as cinco barracas. Cada um definiu onde acreditava que teria mais conforto e após
instalados, deixamos o Rafa finalizando o acampamento e seguimos para recuperar os potes de suprimentos.
Dividimos as tarefas, comigo voltando com os potes e o Douglas indo coletar água para o jantar e os ataques
do dia seguinte.
Quando o pessoal do ataque do Saci e Sacizinho chegou (23h), já estávamos com
acampamento montado, com a cozinha ao lado das barracas. Deixaram o Indiana
Jones às 11h20, atacando o Sacizinho e Saci, cumeando esse último às 13h.
Retornaram, desmontaram o acampamento, arranjaram as cargueiras e iniciaram
a subida, às 15h defasados em 3h20. Enquanto eles tratavam se instalar,
colocamos 3 fogareiros em paralelo. O primeiro jantar “normal” da travessia teve
linguiça fatiada frita, tapiocas, macarrão com sardinha e molho de tomate. Nessa
noite comandei os fogareiros, em parceria com o Rafael. Para adoçar, tivemos
uma caixa de bis e outros doces. Pouco após a 1h da madrugada, todos já
dormiam, embalados pelo leonino ronco do Gui. Esse piá anda muito, é gente boa
mas ronca que é um absurdo... não fosse o cansaço da pernada, acredito que
ninguem dormiria.
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Dia 3 O amanhecer foi cinzento e frio. As nuvens não convidavam a sair, mesmo assim, preparamos
um capuccino, algumas tapiocas e, pouco depois das 8h, eu, o Douglas e o Rafa partimos em direção ao
PP. A vegetação orvalhada molhou tudo em que tocava e eu, com o tronco protegido
pela jaqueta de chuva por algum tempo fiquei a apreciar o geladinho nas pernas. Em
algum momento, o ferimento no joelho passou a incomodar. Segui em frente,
tentando me distrair da dor que agora estava ciente... em pouco tempo, o roçar da
calça molhada exigiu que fizesse algo a respeito. No A2 resolvi tratar de alguma
forma. Ao abaixar a calça e expor o ferimento, fui obrigado a reconhecer que estava
feio, bastante edemaciado e inchado. Fiz um curativo com toalhas descartáveis e papel
higiênico. Pretendia atacar o União, o Ibitirati e o Camelos. No cume do PP, às 10h, retirei a calça e o
curativo para deixar secar o ferimento. Pedi que o Douglas verificasse se a enormidade de lixo abandonado
no cume que observamos na passagem anterior permanecia. Pretendia utilizar algum plástico mais resitente
para confeccionar uma proteção mais eficaz para o meu ferimento. Lixo de uns, tesouro de outros. Feliz e
infelizmente, fora retirado. Um sol tímido brilhou por alguns momentos e o Douglas e o Rafael partiram
para o Tupipiá. Eu fiquei na espera. Logo, o sol desapareceu, escondido pelas densas nuvens e começou a
garoar. Sem perspectiva de melhora no tempo, preocupado com o ferimento, conclui que esperar ali seria
imprudente e decidi retornar ao acampamento e tratar do joelho.
Registrei no livro de cume a decisão tomada, aproveitando que a garoa ainda permanecia fraca. Com a
chegada do Gui e Macedo, reportei a eles o que faria, bem como o ataque ao Tupipiá iniciado. Melhorei o
curativo com o material que dispunha, tentando evitar que o roçar da calça ferisse ainda mais a carne, me
despedi e comecei a descida, com extremo cuidado, pois o fazia sozinho, com um tempo ruim e as pessoas
mais próximas para eventual socorro tardariam pelo menos 4 horas a retornarem. Me policiei para não me
distrair com toda a beleza da montanha e manter os pensamentos focados no desafio da próxima passada,
sem dar margem para erros. Ao passar pelas ruinas do abrigo A2, a infeliz surpresa de observar mais lixo
na montanha, à exemplo do que haviamos observado no cume, na incursão anterior. Uma lona preta, presa
sob uma pedra num pequeno bosque de caratuvas escondia da vista o que irresponsáveis souberam subir
até ali, mas não se dignaram a levar embora. Triste e infelizmente mais frequente do que gosto de me
lembrar. A consciência dos frequentadores parece responder à inversa ao aumento da frequência. Pregam
harmonia com a natureza mas a degradação causada torna o controle no acesso cada vez menos abjeto.
No retorno, fiz contato com a Amanda e o Élcio Douglas. Ambos manifestaram preocupação e
aconselharam, tanto do machucado quanto na estratégia para a conclusão exitosa da pernada. A despeito
do acalanto das palavras, evito estender o contato por causa da chuva e das rajadas de vento.
Alcancei as barracas num momento de estio, aproveitando para coletar 3 litros de água nas lonas. Me
abriguei, removi a roupa molhada e me sequei, antes de vestir o trajo de dormir. Preparei um miojo para
mim, quente e saboroso. Preparei um segundo, agora usando como tempero uma sopa instantânea.
O brado de “frannnnnngoooo” do Douglas sinalizou que estavam próximos e frente a chuva fria que caia,
preparei uma sopa quente para recebê-los. Passou gente ao lado e ofereçi um gole da sopa, pegaram tudo
para abastecer o cantil, me entristecendo pelo egoismo. Procurei relevar e comecei a preparar outra porção
de miojo para o Douglas que insistiu em ficar fora da barraca, para analisarmos os avanços e ajustes
necessários. Não logrei êxito em convencê-lo a fazê-lo abrigado na barraca dele, e me rendi à sua teimosia.
A pazinha quebrada e a passagem de pessoas que pareciam saber do nosso intento na AC foram pontos
discutidos. Mais prudente ou mais cansado, o Rafael caiu para dentro da barraca, para se aquecer e permitir
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aos joelhos se recuperarem dos esforços no ataque ao Tupipiá. Propus permanecermos no A1 uma segunda
noite, poupando a todos do desmontar/remontar o acampamento na chuva fria, pois a previsão para o dia
seguinte era de tempo firme, ensolarado. Informei de que a previsão era que as duas próximas noites fossem
as de menor temperatura de toda a travessia (Adilson Cypriano), bem como da previsão de entrada de frente
fria no sábado, com a chuva mais intensa a partir das 14 h (Amanda Mascaro). Reportei também o conselho
que o Elcio Douglas passara quanto a condensar a travessia, os cuidados que a Amanda prescrevera para
meu ferimento no joelho e a preocupação que o pessoal que nos acompanhava tivera quando nos
perceberam descendo a Face Leste, pelo ineditismo e ousadia de fazê-lo numa AC. A pernada do dia
seguinte ficaria mais extensa, mas ocorreria sob tempo melhor. Douglas e Rafael entenderam que seria
conveniente e, coletivamente, vaticinamos a mudança. O Gui e o Macedo retornaram e o Douglas passou
o prato fumegante de miojo para eles. Mesmo a comida quente e saborosa não foi capaz de lhes insuflar
tanta alegria quanto a modificação nos planos; haviam sido bem sovados pela chuva fria, ainda mais do que
pelo subir e descer das montanhas. A perspectiva de subir Caratuva, atacar o Taipabuçu, retornar ao
Caratuva e pegar as mochilas para subir o Itapiroca, deixar as cargueiras, atacar o Taquaripoca, recuperar
as cargueiras e, finalmente subir o Cerro Verde e montar acampamento para descansar algumas
(pouquíssimas) horas era algo que assombrava seus pensamentos. Não é exagero dizer que exultaram ao
serem informados de que permaneceríamos mais uma noite ali.
Aproveitei para cuidar melhor do meu joelho enquanto preparava a janta para mim, para o Gui e Macedo
que, revitalizados pela decisão de mantermos o acampamento ali, haviam partido para atacar o Caratuva e
o Taipabuçu. Preparei também todas as tapiocas para o café do dia seguinte, o que me tomou bastante
tempo. Ao longe, escutamos a passagem de um avião à hélice, com o motor à passo. Logo saberíamos que
havia uma aeronave desaparecida e passamos a tentar coletar informações úteis para as equipes de busca e
salvamento. Fizemos uma estimativa, baseada no som que ouvimos de que a aeronave se deslocava na
direção Taipabuçu para o Caratuva e reportamos isso ao Elcio Douglas, que por sua vez informou ao
comando de busca. Colocamos nosso rádio e celular à disposição para contato com a equipe do
SINDACTA, caso pudéssemos ajudar de alguma forma. A visibilidade durante o momento em que
escutamos o ruido do motor estava oscilando bastante com breves aberturas para as montanhas, seguidas
de total perda de visibilidade pelo dossel de nuvens. O Gui e o Macedo retornaram do ataque pouco após
as 21 horas e passei a eles o macarrão com molho, frango e ervilha que preparei.
Ao longo da pernada, nos momentos de acampampamento ou quando trilhavamos juntos (em descida, pois
não tenho fôlego para conversar montanha acima), eles me reportaram que sofreram muito com o frio,
molhados pela chuva e que as passagens pelos cumes eram restritas ao mínimo tempo para o registro, antes
de se evadirem, escorraçados pelas rajadas de vento, para o próximo cume. Entendo bem eles, pois vivenciei
condições parecidas em outras travessias em também nessa, nos ultimos dois dias. Chegarem ao
acampamento e encontrarem comida quente à espera foi, no sentimento deles e nas palavras minhas, um
acalanto quase inimaginável. As horas de sono, mesmo que bem abrigados nas barracas e confortáveis
dentro dos sacos de dormir, não bastavam para a recuperação completa do desgaste fisico e fisiologico.
Insidiosamente, a exposição minara a soberba resistência dos dois. A suposta queda de disciplina no
levantar era na verdade, o externar involuntário desses desgastes não recuperados. A conta desses desgastes
chegaria, ainda na noite seguinte.
Dia 4 O dia amanheceu sem chuva e aos poucos o sol despontou dourando os cumes acima de nós. A
silhueta do conjunto Ibiteruçu se destacou lindamente contra o céu. Aproveitamos para apreciar a beleza,
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enquanto desmontamos o acampamento e vamos arrumando as cargueiras. Macedo preparou sucessivas
porções de capuccino para acompanhar as tapiocas assadas na véspera. Eu fritei duas delas na manteiga,
para variar um pouco o café da manhã.
O Rafael decidiu que interromperia sua tentativa nesse dia, pois os joelhos doiam de forma crescente e
temia por se lesionar mais seriamente. Disponibilizou todo o equipamento de que dispunha para
reforçassemos nossos suprimentos. Insistiu para que o fizéssemos. Eu fiquei com o rolo de esparadrapo,
silver tape, gaze e protetor solar. Douglas aceitou a camiseta de trilha, que o acompanharia por toda a
travessia a partir dali. Também carrega mais peso na cargueira, pois alguns equipamentos, como os rádios
são desmobilizados, uma vez que até ali não se mostraram funcionais para a comunicação entre os grupos.
Relutei em fazê-lo, mas conclui que tentar catequizar meus companheiros, durante a caminhada seria ainda
pior. Entendi que era melhor não termos dúvidas de que não teremos boa comunicação que tomar decisões
contando com um cenário irreal, não confiável. A efetividade da comunicação por rádio fora testada na ida
ao Jacutinga e também no ataque ao Taipabuçu e Caratuva, sem resultado que justificasse o transporte desse
adicional de peso.
Na passagem pelo cruzo para ataque ao Taquaripoca, deixamos algumas folhagens presas nas cargueiras
deles, sinalizando nossa passada. Seguimos para o Cerro Verde, na esperança de conseguirmos fotos deles
no cume, com o conjunto Ibiteruçu ao fundo. Subimos rapidamente, fizemos registro no livro de cume,
algumas fotos e inicamos a descida do Cerro Verde, para recuperarmos as cargueiras. Nos encontramos
com o grupo que atacara o Taquaripoca e que seguiria para subir o Tucum, Camapuã, Pedra Branca,
Camacuã. O Rafael confirmou que faria a saída pela fazenda da Bolinha. Talvez acampasse no Tucum ou
no Camapuã antes de descer, ainda não havia decidido. Desejamos a maior sorte do mundo aos 3 e,
quebrando à esquerda, nos dirigimos para a sequência de cumes que cruzaríamos antes do Siririca: Lua,
Luar, Ovos de Dinossauro, Sirizinho e Siri. A partir do desse ultimo, a subida do Siririca fica mais rápida,
pois se acessa a encosta em uma altitude bem mais elevada que na trilha “por baixo”, quando se vem pelo
vale ou se desce até a “ultima chance” para voltar a subir. Essa foi uma das otimizações feitas quando da
ACE inaugural, lá no “distante” 2019.
Chegamos ao Siririca e, como não havíamos nenhuma tido
nenhuma indicação sonora ou mesmo de lanterna nas últimas
horas, concluímos que nossos amigos chegariam, na melhor das
hipóteses no começo da madrugada. Para não forçar a descida pela
rampa na madrugada e com eles extenuados, alternamos o
acampamento daquela noite, originalmente no cruzo Agudo Lontra
alto. Essa possibilidade já havia sido mapeada, quando coletamos
água para subida final. Subimos pesados, para permitir janta e pernoite, se assim decidíssemos.
Acampamento montado, tratamos de preparar nosso jantar e nos abrigarmos do gélido sereno que aos
poucos tudo molhava. Andar na mata, naquelas condições é um desafio initerrupto ao montanhista. Mesmo
cansado, não se pode parar para retomar o folêgo, sem que se começe a tremer incontrolavelmente. Pelo
que apurei com a dupla, a subida até o Cerro Verde, com sol e na companhia do Rafael, foi prazeirosa,
alegre mesmo. Na subida pelo Tucum, ainda voavam montanha acima, o Camapuã foi vencido em poucos
minutos. Na descida para o Pedra Branca ainda não aquilantavam o desgaste fisico que se avizinhava... na
volta, a fatura começou a ser cobrada, em prestações crescentes e que apenas se reduziriam com a travessia
findada, como se fosse um sistema SACRE, com o juros sendo amortizado pela sensação de êxito, de
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superação de si mesmo. O ataque ao Camacuã, foi pra conta do compromisso em subir “todas as
montanhas”... voltaram com menos celeridade e mais cansados que supunham. Superado o Tucum, que
parecia ter ganho uns metros adicionais de altitude, ao chegarem para recolher as roupas e barracas que
deixaram secando ao sol, encontraram tudo encharcado pelo orvalho / sereno do final de tarde e inicio de
noite. Guardaram as tralhas o melhor que puderam e seguiram em nosso encalço, ainda com a intenção de
nos alcançar no Siririca, onde supunham que os esperaríamos (e realmente, o fizemos). Na subida aos Ovos,
o cansaço somado passou a cacifar contra os dois. Paranaenses? Sem dúvida. Monstros no
condicionamento? Confere. Humanos? Ops, também. A tenacidade do aço também se rende às
intempéries... como esperar mais da carne humana? Abalados, puídos, rotos e moídos, tiveram o bom senso
de alternar o acampamento para o cume dos Ovos de Dinossauro, tendo tentado contato conosco por
mensagens e telefonemas.
Aqui, cedo a pena ao Rafael, em seu derradeiro dia nessa pernada. Rapaz brioso como é, suponho que logo
voltará àquelas plagas, buscando superar o desafio que, nessa oportunidade, lhe ganhava.
“Quarto e último dia: o peso da barraca molhada aumentou bem o da cargueira, estou pouco cansado
fisicamente, mas meu emocional está bem abalado. não lido com facilidade com insucessos, reconheço.
Feliz ou infelizmente, a vida nos traz oportunidades de nos desenvolvermos a cada dia. Avisei os
companheiros da minha desistência, faria a saída no sentido fazenda PP, mas ainda encontrei as últimas
forças pra subir o Itapiroca, atacar o Taquaripoca, retomar a cargueira para subir o Tucum e o Camapuã
e chegar na Fazenda da Bolinha às 19 horas da terça-feira, com diversas dores.
Na viagem de retorno, a caminho de Taboão da Serra, refleti sobre os últimos dias. O desistir resultara de
um combinado de vários fatores: condicionamento fisico ainda não totalmente recuperado, emocional
abalado, equipamento obsoleto e desgastado, peso da mochila, enfim, independente da conclusão, foi a
travessia mais casca grossa que tive a honra de percorrer em 4 dias. Com o distanciamento da análise à
posteriori, preciso reconhecer que tomei diversas decisões corretas, ainda que possa te-las questionado
em algum momento. Delas, quero destacar duas:
1 tentar a Alfa Crucis em 2023;
2 desistir dela, no quarto dia, tendo feito tudo o que fiz.
Agora é o momento de aprender com os erros, revisar e melhorar planejamento para uma próxima
investida, talvez uma ACE.”
Dia 5 Acordamos com o clarear do dia, mas nossos amigos ainda não haviam nos alcançado, provando
ter sido correta a decisão de pernoitar ali. Como havíamos esperado até as 2h30, coloquei o painel solar
para recarregar um banco de baterias, dei uma rápida volta apreciando o nascer do dia e busquei um bivaque
para dormir mais uns bons minutos. Ocupamos o tempo de espera entre ajustes nas mochilas e nas roupas,
comendo e cochilando. Por diversas vezes, o mistério da ausência de sinal dos nossos amigos foi discutido,
as hipóteses que encontrávamos detalhadas ao nível do rumo de ação subsequente mais adequado à equipe
como um todo. A ausência de sinal de celular tornava mais complexa a decisão. Acabamos por concluir
que o mais adequado era seguirmos em frente, uma vez que na descida do Siririca, eu obteria sinal telefônico
e que, caso estivesse tudo “ok”, eles nos alcançariam ao longo do dia.
Aceitei o fogareiro reserva do Douglas e acresci às minhas tralhas uma carga de gás, já que poderíamos, ao
que tudo indicava, ter de terminar a travessia em dupla. Nesse cenário, as margens de segurança mereciam
ser majoradas e assim o fizemos, recheando nossas mochilas com alimentos e recursos que anteriormente
seriam divididos entre os quatro.
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Partimos do Siririca, às 11h40, tendo deixado recado para os nossos amigos com a decisão tomada, o trajeto
que seguiríamos e o ponto de encontro em que os aguardaríamos. Próximo ao livro de cume e bem visíveis,
ficaram pendurados, testemunhas mudas da nossa fé na grande capacidade deles de contornar as
dificuldades e prosseguir, os lanches de trilha e os suprimentos adicionais para eles. Iniciamos a descida
preocupados, tentando entender o que poderia ter ocorrido para tão grande atraso. Apenas os ataques extras
não justificavam, ainda mais considerando a grande desenvoltura com a qual haviam caminhado nos
primeiros dias. Algo anômalo havia ocorrido, que certamente os obrigara a pernoitar separado, e mais ainda,
a não nos alcançar até aquela hora. A possibilidade de uma emergência com eles ou em que tivessem se
envolvido para prestar o necessário socorro rondava nosso pensamento.
Tomando os cuidados devidos, utilizando as cordas novas nos
lances em que estão instaladas e com uma preocupante
escorregadela do Douglas na laje/cachoeira que há no meio da
descida, onde por sorte e previdência pude alcançá-lo e, entre
aliviado e angustiado, ajudá-lo a retornar à segurança. Na descida,
fizemos diversas paradas para buscar sinal de celular e fazer contato
com a “civilização” e obter notícias dos nossos amigos. Soubemos
que o Rafael já estava em casa e que não havia informação deles no grupo. Informamos do desencontro
momentâneo e pedimos que ficasse de alerta e nos inf de qualquer novidade. Apertamos o passo, buscando
recuperar o tempo de espera no cume do Siririca e a partida mais tardia que o previsto. Encontramos sinal
de telefonia (Vivo) na encosta do Siririca e no cume do Agudo Lontra, alcançado às 13h55. O tubo de cume
dessa montanha está com a tampa quebrada e o livro bastante encharcado, impedindo o registro. Voltamos
sobre nossos passos até as cargueiras e tocamos em frente pela Interagudos, uma otimização da rota inicial
Siririca – Marco 22, que evita o percorrer do rio Forquilha até as proximidades da Garganta 235.
Alcançamos o cume do Agudo da Cotia, às 15h08, registramos a passagem no livro de cume deixado em
novembro/2020 pela Luciana Kielt e pelo Natan F. na passagem deles. Me é muito alegrador, encontrar o
registro de nomes de amigos e irmãos de montanhismo, ainda que não os conheça pessoalmente. Quanto
mais ermo e distante o cume, mais legal ver o registro de passagem dos amigos... torço que esses livros
permaneçam por décadas bem cuidados. Seguindo o novo protocolo adotado, registrei com fotografias
todas as páginas do livro, antes de retornamos ele às proteções plásticas sucessivas e seguirmos em frente,
agora em direção ao Agudo da Cuíca, cujo cume alcançamos às 16h36. Mais um livro em bom estado de
preservação (feito o registro fotográfico de todas as páginas), esse de 05/06/2015, com a dupla Elcio
Douglas Ferreira e Raffael Galápagos nos dando conta da conclusão da abertura da Interagudos. É a isso
que me refiro quando digo que são registros cruciais da história do montanhismo e me é grande honra
contribuir, com a preservação dessa memória. Por muitas vezes, escuto de crítica: é trabalho de formiga, é
ação pequena, não vale a pena... mas penso que é nesses pontos isolados, alcançados por pouquíssimos
montanhistas que escoa o mais verde sangue montanhês. É aqui, onde não há visibilidade na ação que
realmente se mede o caráter. Andar quilômetros sem ver nada de lixo, testemunhar o cuidado de uns loucos
com outros doidos sequer conhecidos, saber que há os que resistem ao modismo e que trilham por si, pela
imensa alegria de se desafiar e superar a cada pernada.
Feitos os registros, retomamos a caminhada e alcançamos o Agudo da Marmosa, alcançado às 17h40 e cujo
livro de cume se encontra deteriorado pela água. Está de tal forma encharcado que apenas com muita
dedicação talvez se consiga alguma recuperação dos registros que guarda em suas folhas maculadas.
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Com o escurecer progressivo do final de tarde, deixamos as lanternas de pronto emprego e retomamos a
caminhada. Passando pelo Tangarim, já sob a escuridão da noite, tivemos a imensamente grata surpresa de
ver o brilho das lanternas dos retardatários. O clássico brado de “Frannnnnngoooo” que o Douglas propaga
a cada trilha mais insana logo foi ouvido e, ainda melhor, respondido. Estávamos em quarteto novamente,
ainda que algumas horas separassem as prováveis únicas duplas daquela imensidão de mata preservada. P
Aliviado por sabê-los bem, a pressão do Douglas chegou a cair um bocado e tratamos de fazer uma parada
mais longa no último ponto d’água antes da Garganta 235 e nosso acampamento no Corocoxós. Coletamos
o máximo de água possível, pois desconhecíamos quando seria o próximo ponto de água. Para ganhar
algumas horas, faríamos a rota “por cima” para o Marco 22, cumeando de cargueira o Arapongas para
depois perder altitude até o Dique de Diabásio. Vimos um pequeno animal no curso d’água... não
demonstrou medo de nós, se afastando lentamente. Talvez uma pequena espécie de lontra. Infelizmente não
nos ocorreu fotografá-lo.
Alcançamos a Garganta 235 às 20h13, constatando que a toalha desidratada que deixamos na passagem
anterior havia funcionado e o livro estava bem menos úmido. Fiz o registro de todas as páginas, marquei
nossa passagem com nomes, origem, destino e sacrificamos uma noGva tolha para absorver mais umidade
do livro. Em seguida, tocamos para o cume do Corocoxós, onde conseguiríamos espaço amplo para que
todos acampassem reunidos, o que permitiria entendermos o que ocorrera e combinarmos a estratégia para
os dias seguintes, frente à previsão de entrada de frente fria, com chuvas intensas para a tarde do sábado.
Esse era o crux previsto para concluirmos a travessia de forma exitosa. Chegamos ao cume às 21h08,
escolhemos uma boa localização para as barracas de forma a ficarem próximas, montamos acampamento e
preparamos o jantar. Nossos amigos nos alcançaram pouco depois das 22h40 e reportaram a epopéia que
havia sido o dia anterior, após partirem para o ataque aos cumes do Tucum, Camapuã, Pedra Branca e
Camacuã.
Nos contaram que após terem sido surrados pelo Ibitiraquirê pelo terceiro dia consecutivo acamparam por
necessidade nos Ovos, já noite avançada, pouco antes da meia noite. Previram partir na madrugada seguinte,
mas ambos estavam muito desgastados pela dura prova a que haviam se submetido, caminhando muitas
horas molhados até a medula, nos ataques dos dias anteriores. Essa foi uma das noites mais frias, com
registro de 6ºC no cume do Siririca, observado dentro da barraca. O Gui acordou com a garganta bastante
inflamada, e partiram para o nosso encontro apenas às 9h. Chegaram ao Siririca às 12h47 e, no livro,
souberam da nossa partida e do ponto de encontro proposto para a próxima noite. Optaram por desistir do
ataque ao Baixo Siri, para compensar parte do atraso, fizeram uma rápida refeição e tocaram montanha
abaixo. Na descida conseguiam nos ver, mas mesmo “apertando o passo”, os corpos não respondiam
plenamente, por mais que se esforçassem, não conseguiam reduzir a distância que nos separava. Sem
sucesso, tentaram contato sonoro/visual para aliviar nossa preocupação.
Dia 6 Calçei o tenis e fui apreciar o dia que nascia. Novamente reunidos, a atmosfera era bem mais leve,
quase festiva. Ainda que a ausência do Rafa se fizesse muito sentida, sabíamos, desde a véspera que ele
estava em segurança, em casa. O alívio recente era de voltarmos a compor um quarteto, com a ranzizisse
de cada um (minha, talvez, com primazia) sendo suportada pelos outros três, o que tornava bem mais leve
o fardo, rsrs. Fizemos um café da manhã coletivo, enquanto arrumávamos as tralhas para a pernada do dia.
Havíamos acertado de seguirmos para o Marco 22, cumeando apenas o Arapongas na passagem, no intuito
de ganharmos o máximo de tempo para a travessia dos rios ao final da FS, nosso grande “crux” pela previsão
climática de entrada de uma frente fria de maior intensidade a partir das 14 h de domingo. Ainda estava
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distante, tínhamos dois dias completos de sol, mas essa possibilidade nos assombrava, pois poderia colocar
a conclusão da travessia em risco. Com minha mochila arrumada, dediquei uns minutos a costurar os óculos
de proteção do Douglas com a chave de fenda do canivete aquecida no fogareiro e uma fita hellerman.
Uma vez que não havia livro no Corocoxós, partimos para o Arapongas, uma subida longa com a vegetação
obstruindo parcialmente a passagem. Na maior parte do tempo, os bambuzinhos enroscavam nas cargueiras
ou nas pernas, prejudicando o avanço e testando a “infinita”
paciência de nos desenvercilharmos deles. No cume do
Arapongas, às 11h26, fizemos uma parada mais longa,
comemorando nosso último cume nessa serra. Não que tivéssemos
a ingênua impressão de que bastaria descer até a base da trilha
para o Mãe Catira, já na Serra da Farinha Seca, mas era um ponto
importante em nosso planejamento, e alcançá-lo com o grupo da
travessia quase que completo, trazia um sabor especial.
A garganta do Gui que, sob a eterna quinta série que habita em nós, brincávamos ter “ido pro pau” na noite
do acampamento em separado, nos Ovos, piorara sensivelmente. Eu seguia preocupado com a evolução
desde o ponto de água, na subida, quando ele pediu para tomar água da minha garrafa, ao invés de se
hidratar com o canudinho na nascente que eu encontrara. Notei uma cautela inusual a vencer a sua clássica
autonomia, que somado ao quase mutismo do Gui, atribuí a uma piora expressiva na sua condição. Ele já
estava tratando com anti-inflamatório desde a véspera e como ainda não cessara a piora, supus que poderia
ser algo que merecesse o antibiótico que levávamos para eventual emprego. Perguntei a ele se iria querer
fazer uso do medicamento, uma vez que a decisão de usar os suprimentos desse tipo havia sido acordada
que seria do sintomático. Com a afirmativa dele, busquei o antibiótico e pedi que lesse a bula antes de
ingerir para que confirmasse que de fato, era o medicamento para o qual já dispunha de recomendação
médica. A cautela individual de verificar previamente com os respectivos médicos o que tomar em casos
que já tivesse histórico foi recompensada. Mais tarde, quando sua condição de falar melhorou um bocado,
nos contou que algum tempo antes, passara dias internado numa Unidade de Tratamento Intensivo por uma
infecção na garganta. Coisa grave mesmo. Nos informou que caso não percebesse melhora ao longo do dia,
abandonaria a travessia quando chegássemos ao Marco 22, na estrada da Graciosa. Registrei no livro de
cume nossa passagem, fizemos algumas fotos do grupo e do simpático guardião daquele cume que é
testemunha dos poucos montanhistas que se arriscam nessa banda mais agreste do Ibitiraquirê.
Em seguida, uma rápida busca nos apontou a entrada para a trilha que desceria pela crista do Arapongas e
nos daria acesso direto ao Dique de Diabásio, e que tem seu início menos batido que a trilha que liga o
cume do Arapongas ao Corocoxós e à própria Garganta 235. Percorrido pouco mais que uma trintena de
metros, a primeira fita nos sinaliza o acerto do caminho trilhado e continuamos a avançar até que uma saída
pouco batida à direita, em ângulo reto quase, nos escapa e o rastro “morre” após uma pequena fenda. Uma
rápida busca nos coloca no caminho correto, passando por bromeliáceas bastante espinescentes. Em
verdade uma espécie de caraguatá que vimos pouco, de forma geral, e que ali, encontrou o ambiente ideal
para se desenvolver. Suponho que a carestia de nutrientes do ambiente rupestre é compensada pela
reduzidíssima competição pela luz solar. Continuamos a descer alternando trechos de pequenos bosques
com trechos de campos até alcançarmos um pequeno riacho, cujas águas correm para a direita onde nos
detemos, preparamos um suco e fizemos um pequeno lanche. Após o riacho, seguimos a trilha por dentro
do bosque até alcançar a saída para os campos à direita, agora mais aberta e direta que seguimos descendo
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em direção ao talvegue do vale que marcaria, geologicamente, o divisor entre as serras. Na descida, quando
a mata se mostrou mais aberta e a garganta do Gui havia melhorado substancialmente, resolvemos fazer
uma refeição quente para que ele começasse a se recuperar do desgaste
adicional que a dificuldade de se alimentar havia causado. O retorno do apetite
foi alvissareiro e após algum tempo descendo quando já estávamos próximos
de encontrar a trilha que liga a garganta 235 com o Dique Diabásio, seu
estomago voltou a funcionar a contento. Ou quase. Um pouco mais
recuperado, voltou a contribuir no buscar dos rastros e, em pouco tempo, alcançamos o Dique Diabásio
às15h28 e passamos a caminhar por dentro do leito do rio, até deixá-lo pela esquerda para descermos o
Salto Mãe Catira, alcançado às 15h51. Chegando ao ponto de suprimentos do Marco 22, pegamos os baldes
e fomos tratar de preparar o jantar e escolher o que levar de mantimentos. Avaliamos acampar ali, à beira
da estrada, mas a conveniência de fazê-lo ao pé da FS e de recebermos importante atualização quanto ao
clima se sobrepuseram sobre a solução “fácil” de montar acampamento ali.
Aproveitamos a fartura de suprimentos fazer um lauto jantar,
comendo como se não houvesse amanhã. Gui e Douglas
comandaram os fogareiros com maestria. Organizei os jantares para
a FS e revisei os lanches de trilha excedentes, separando o que já
havia aprendido mais agradar a cada um. Capas de chuva e adesivos
de aquecimento também foram separados para que decidissem quanto de peso, conforto e segurança
levariam na sequência. Um carrapato encontrado resultou no tratamento de todas as vestes com Lysoform,
como medida de prevenção. Levaríamos o mínimo de peso, para ganharmos celeridade. Caso a previsão se
mantivesse, buscaríamos acampar já na região do Balança, deixando apenas a sua descida para o domingo,
antes da chuva. Eletrônicos descarregados ou que não seriam tão úteis nos 4 dias restantes foram guardados
para serem recuperado posteriormente. Como meus equipamentos já estavam bem otimizados, deixei
apenas o painel solar e os bancos de bateria. Andaríamos hora e meia até o nosso acampamento daquela
noite, sem subidas expressivas, então dei-me o luxo de levar um pacote de milho verde, para comer antes
de dormir. Pouco após a entrada para a Casa Grabers, seguindo pela estrada, conseguimos contato
telefônico com o Cypriano e atualizamos a previsão de tempo, com considerável alívio, pois a informação
recebida dava conta que a frente fria perdera considerável força e, possivelmente, a chuva não nos atingiria
a. Se ocorresse, seria com pouca intensidade. Na sequência, consegui falar com a Amanda para lhe desejar
um ótimo aniversário e informar do progresso na travessia. O Macedo também conseguiu contato com a
Dani, corroborando a melhora na previsão do tempo. Chegamos ao ponto de acampamento previsto, ao pé
da trilha para o Mãe Catira e os cachorros fizeram alegre alarido. Buscamos uma área plana longe do rancho,
já próxima ao riacho, onde rapidamente armamos as barracas e cada um tratou de cuidar de si. Higiene
vespertina feita, preparei uma porção de milho verde com manteiga e sal que teve o condão de me tirar dali,
ainda que uns poucos instantes. Como a área que escolhemos era afastada, os cães rapidamente se
“esqueceram” de nós. O Gui roteou o sinal de internet dele e dei mais uma verificada no andamento das
coisas antes de adormecer.
Dia 7 Dia ensolarado, tomei banho, arrumei a cargueira e conferi aliviado, que os cachorros dispunham
de um grande cocho de ração e cama abrigada para cada um. Iniciamos a FS às 09h subindo em direção ao
primeiro cruzo, alcançado às 10h40, deixamos as cargueiras pouco acima e seguimos até o marco geodésico
do Mãe Catira, atingido às 11h13. Seguimos direto para o Morro do Sete, às 12h03 os registros no livro de
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cume, lanchamos, apreciamos a vista desimpedida e retomamos a caminhada, recuperando as cargueiras na
passagem pelo Mãe Catira, para alcançar o Pequeno Polegar às 12h37. Repeti o protocolo de registrar todas
as páginas já preenchidas do livro, colocado pelo CPM. No livro, tivemos a grata surpresa do registro da
passagem do trio André Frazon, Elcio Douglas e Israel Silva em 2019, inaugurando a primeira ACE e da
dupla Helena Nakahara e Henrique Baldo na travessia mais recente, em 5/2023. Nesses 6 anos, apenas 3
grupos deram conta dessa travessia. Descemos a encosta do Polegar, cruzamos o vale e subimos o
CASFREI para em seguida descê-lo e alcançar o rio Taquari pelo qual subimos longamente até podermos
acessar a subida em direção ao cume do Esporão do Vita. Desse ponto, a descida nos leva ao vale do Rio
da Fuga, para subirmos o Tanguiri, o Farinha Seca e finalmente chegarmos ao vale ao pé do Morro dos
Macacos.
Avançamos mais um pouco e paramos para jantar, já na base do
Morro dos Macacos, às 22h. Ao retornamos a caminhada, o trabalho
em equipe de busca e verificação dos rastros se repetiu, em função
dos caminhos de rato que o trilhar menos cuidadoso acaba por abrir.
Quando a subida se fez mais intensa, o Gui e o Macedo se
distanciaram um pouco, enquanto eu e o Douglas subimos à passo,
poupando energia e evitando eventuais paradas intermediárias no
frio noturno. Alcançando o cume, tratamos de buscar bons lugares para o pernoite, não encontrando área
grande e plana que coubesse todos próximos, de forma que cada um escolheu o trecho ao lado da trilha que
parecia menos ruim. Escolhi um local meio q revirado, mas que no qual minha barraca caberia. O Douglas
amassou mato à esquerda, o Macedo fez o mesmo à direita. Já o Gui, talvez pelo cansaço, talvez pelo frio
que sentia, permaneceu meio que letárgico, afirmando que não havia espaço para ele. Com minha barraca
já armada, fui até ele e o ajudei a amassar o mato de uma área ruim, mas viável para acampamento. Vencida
a letargia, ele deu sequência ao arranjar do acampamento.
Dia 8 Dia em que, literalmente, comecei na m$#$. O “revirado” que havia observado na área ao lado
da trilha, era um banheiro malfeito, onde o trilheiro anterior não tomara o cuidado de bem enterrar sua obra.
Sobrou limpar piso de proteção da barraca com lenço umedecido antes de guardá-lo no saco plástico de
transporte. Das muitas m**** a que se expõe num rolê dessa magnitude, essa foi das menores, e aceitei
sem me aborrecer. Após as risadas de praxe do grupo, o Gui que havia acampado numa posição ruim e que,
por isso, acabara por não usar o isolante inflável, não mais reclamou da sorte
que lhe coubera. Acampamento desmontado, cargueiras arranjadas partimos
pela direita em direção à descida do vale, seguindo o rastro de passagens
anteriores. Passamos por uma área mais ampla de acampamento que nos
escapara às vistas, na véspera. Nossa meta era cruzar os rios, antes da chuva. A
frente fria, pelas previsões do final do dia 6, chegaria com menor energia e o
novo horário previsto para chuva era 16h, sinalizava melhor condição para
alcançarmos o acampamento nas proximidades da Usina Marumbi. Mesmo
assim, por precaução, mantivemos o planejado de progredirmos com a
celeridade possível, em pouco tempo alcançando o cume do Mojuel, com direito
à uma foto do Gui com o marcador do cume. Seguimos na caminhada,
alcançando o para o Morro da Balança às 11h13. Deixamos as cargueiras no
cruzo e com lanches, água e celulares tocamos até o cume, alcançado às 11h25.
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Ficamos algum tempo apreciando a conquista e a vista dali até que, como se para vaticinar a previsão da
Amanda, lá no começo da travessia, às 11h35 caíram esparsos e enormes pingos de chuva. Foram mais que
suficientes para converter a leveza da conversa em apreensão geral. Chegar tão perto para naufragar, quase
literalmente, no derradeiro cruzo. Sem perder tempo, iniciamos a descida do Balança às 11h50, em passo
apertado.
Na descida, não pude evitar voltar os pensamentos ao BLACK que, literalmente deu a vida no hercúleo e
inumano processo de abertura dessa travessia. Uma queda, na encosta à prumo da face sul o tornou
Guardião desse trecho da serra. Os detalhes do ocorrido permanecerão como mistério eterno dessa
montanha que, por coincidência ou destino, tem visada para a Esfinge que nomeia a montanha à esquerda
do Ponta do Tigre..., porém mesmo a ela foi negado o observar de seus momentos finais... piedosamente, o
véu diáfano da vegetação e a neblina vespertina resguardaram os últimos minutos da derradeira jornada.
No trilho batido e otimizado pelas sucessivas passagens de montanhistas, não tivemos maiores dificuldades,
cruzamos o rio Ipiranga às 14h28 alcançando o cruzo do rio São João, já ao lado da Usina, às 15h16.
Fizemos uma parada mais longa, com cerca de meia hora para descanso e banho aproveitando o pouco sol
que havia. Pouco antes das 16h, o sombrear das montanhas por sobre o vale em que estávamos derrubou a
temperatura e fugimos para buscar os potes de suprimentos e montarmos nosso penúltimo pernoite.
No preparo do jantar, colocamos 3 fogareiros para fritar linguiças, preparar o macarrão com molho, a porção
de arroz com feijão e legumes que desapareceram em minutos. Enquanto cozinhavam, separei os kits de
jantar e lanches de trilha para cada um. Também separei uma capa de chuva descartável por cabeça. Acresci
às minhas tralhas duas capas de chuva extras e um segundo poncho térmico. Também coloquei um adesivo
de aquecimento individual, mantendo um extra comigo, no bolso externo da mochila, de fácil acesso. Com
a piora do tempo, decidimos por fazer a Alpha-Ômega em dois dias. A pretensão de alcançarmos o cume
do Espinhento ficaria para outra oportunidade, nos limitaríamos a fazer o trajeto básico na travessia de
encerramento, acrescendo apenas os cumes do Abrolhos, Esfinge, Torre dos Sinos. O Rochedinho seria
objeto de decisão por oportunidade. Pouco após as 18 h uma chuva fraca, mas insistente nos alcançou.
Tratamos de nos abrigar para a noite que se avizinhava. Secos e aquecidos, logo adormecemos.
Dia 9 Em função da forte chuva, a partida foi postergada em 2h. Macedo já estava terminando de se
aprontar, com as vestes de trilheiro (encharcadas) vestidas. Acabou por ficar de bivaque, sob o toldo da
barraca, enquanto esperava o momento de partir. Acordei atrasado, pouco antes do horário originalmente
combinado, com o chamado do Douglas. Levei uns momentos para me situar e, depois que entendi que não
partiríamos no horário previsto, fiz um zeloso curativo para meu joelho. Em seguida, cuidei de proteger
muito bem a tralha de dormir, usando inclusive o pote rígido que passara a carregar a partir do Siririca,
dentro do saco de dormir coloquei umas três toalhinhas absorvedoras. A roupa de dormir recebeu cuidado
similar, com três camadas de plástico para proteger e toalhinhas para absorver qualquer umidade de
condensação que se formasse. Não queria mesmo correr qualquer risco de não ter abrigo eficaz para o frio
noturno. Deixei a segunda pele extra para o tronco de fácil acesso, no topo da mochila, junto com as
canecas. Distribui os lanches de trilha e os medicamentos de pronto emprego entre os bolsos da barrigueira.
Revisei o que levaria de lanche de trilha para o último dia, cuidando de dispor de fartura energética e
variedade de sabor. Conferi a quantidade de sopas e os dois liofilizados que levaria para o jantar (e que não
me agradariam ao paladar). Tudo arrumado, não protelei mais o vestir das roupas de trilha e sair para
desmontar e guardar a barraca, logo abaixo dos itens de “pronto emprego”. Não me preocupei com secar
ou fazer uma grande arrumação. Arrumada a cargueira, vestidas as várias camadas de proteção para chuva
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(blusa de caminhada, poncho térmico, capa e jaqueta de chuva), puxei a sequência de gorros para a cabeça
e tratei de ajudar nos últimos preparativos do Douglas e do Gui. Os materiais que deixaríamos foram
protegidos por camadas plásticas e escondidos na mata ao lado, para breve recuperação. Pouco após as
03h00 partimos em direção ao Marumbi, cautelosos nas pedras limosas. Eu comecei a caminhada mareado
e um pouco zonzo, provável início de hipoglicemia. Propus uma parada, sendo convencido a aguentar mais
uns minutos até o primeiro curso d’agua, onde providenciamos um suco, comemos algumas guloseimas.
Aos poucos, o desconforto pareceu diminuir, mas não cessou. Decidi não atacar o Abrolhos, bivacando na
espera enquanto me recuperava. minimizando o risco nos lances expostos de ferratas, à noite e meio zonzo.
Retomamos a caminhada, passando pela estação Marumbi com as lanternas apagadas e em silêncio. Após
percorrermos uma centena de metros, o Gui e o Macedo deixaram as cargueiras e, com as mochilas de
ataque já preparadas, trataram do ataque ao Rochedinho. Eu e o Douglas continuamos subindo em direção
ao cruzo para o Abrolhos. Ao chegarmos, retirei a roupa molhada do tronco e vesti a blusa seca e o poncho
de emergência. Depois de um tempo aguardando que nossos amigos nos alcançassem, o Douglas tratou de
adiantar o ataque ao Abrolhos, com a intenção de aquecer o corpo, combinando de retomarmos o caminhar
assim que possível, evitando paradas mais longas, pois com o frio do dia que nasceu chuvoso, era flerte
certo com a hipotermia. Eu cochilei um pouco, sob o abrigo da laje rochosa, porém acordando diversas
vezes pelo frio ou por me desencaixar do nicho que havia ocupado. Para minha alegria, passados alguns
minutos, a dupla de ataque ao Rochedinho (5h10 no cume) chegou. Trocadas algumas palavras, pirulitaram
montanha acima, para cumear o Abrolhos (8h12). O Douglas logo retornou, informando que eles também
estavam descendo. Tirei a segunda pele seca, vesti a roupa molhada e me preparei para partir, em direção
ao apartamento nº11 no Vale das Lágrimas, onde faríamos o café da manhã. A sensação que dividíamos,
além do frio enregelante era de alívio. Todos havíamos superado, sem intercorrências o ponto de maior
exposição aos controles estatais, agora dependia apenas da nossa capacidade de interagir adequadamente
com a natureza na Alpha-Ômega... a mata fechada e espinescente, o clima chuvoso e frio ...
O café da manhã foi farto e alegrador com Rap10 recheados de patê de atum e queijo ralado, acompanhados
de generosas porções de capuccino. Tínhamos ainda 8 bis, dois para cada um e um pacote de bolachas
salgadas por cabeça. Um erro de comunicação levou o Douglas a entender que eram 8 bis por cabeça...
como resultado, ficamos sem esse mimo...
Deixamos as cargueiras sob a proteção das pedras e galgamos os poucos metros de lances técnicos para
cumear o Esfinge, às 10h55. De lá, com a visão para a serra da Farinha Seca toldada pela fina garoa fiquei
aqueles poucos minutos refletindo sobre o destino do OSÉAS GONÇALVES ARAÚJO, o BLACK.
Lembrei-me do livro com o qual meu filho me presenteara no aniversário, onde um pequeno poema pareceu
apropriado – de Olavo Bilac, príncipe dos poetas para um dos grandes Poetas da Montanha:
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Não erámos heróis, não lhe trouxemos nenhuma resposta definitiva do porquê subir montanhas, nem dos
problemas existenciais que acompanham a humanidade há milênios. Naquele cume isolado, sob a fina e
gélida garoa, éramos apenas montanhistas encharcados até os ossos a resistir ao avançar dos anos e ao
conforto ilusório dos prazeres citadinos como tardes em sofás e banhos quentes em banheiras.
Retornamos às cargueiras e seguimos para o Ponta do Tigre, onde passamos muito brevemente às 11h27.
Depois começamos a subir o Gigante e, à meia altura, às 11h56, novamente deixamos as cargueiras ao lado
da trilha e desescalamos sua face norte em direção ao colo entre este e a Torre dos Sinos, cujo cimo
alcançamos às 12h21. Fizemos uma breve parada na rocha que se destaca e onde, pequenos pinos de ferro
se projetam, testemunhos silenciosos de alguma estrutura ali instalada, no passado. Talvez uma caixa de
cume, não sei. O frio nos expulsou do cume e retornamos sobre nossos passos, subindo a encosta do Gigante
em direção à trilha da Passagem Noroeste, onde às 12h49 vestimos novamente as cargueiras, concluindo a
subida do Gigante (13h17) e em seguida alcançando o Olimpo às 14h. Anotei nossa passagem no livro e
mais uma vez fiz o registro fotográfico das páginas de ambos os livros que ficam guardados nesse cume.
Toda vez que passo ali, tento entender ter dois livros. Certamente, há mais coisas entre o céu e a terra que
sonha nossa vã filosofia. Algum motivo há, certamente válido aos que tomaram a iniciativa de fazê-lo.
O Macedo preparou um miojo com queijo, muito bom. Na situação em que nos encontrávamos, é muito
provável que pedra quente também se apresentasse bem palatável. Dividimos também um tablete de
chocolate, ofertado pelo Douglas. Os minutos passaram rápidos enquanto comíamos e esfriávamos os
corpos paulatinamente, e às 14h43, começamos a descer o Olimpo em direção ao Boa Vista. A chuva e a
neblina tornavam menos tranquilo o identificar do caminho correto, de forma que desci à frente, buscando
os rastros, com o Douglas me seguindo nesse trecho. Logo alcançamos as primeiras passagens técnicas,
inesquecíveis e que confirmaram estarmos na trilha correta. Alguns pontos cujo superar se mostravam mais
complicado na travessia anterior foram dotados de cordas, tornando o ultrapassar desses pontos bem menos
exaustivo, principalmente para um montanhista solitário.
Pouco tempo depois, já com o quarteto reunido, continuei à frente da trupe, buscando identificar a trilha
correta e por vezes testando-nos desvios ou erradas para assegurar que permanecíamos no caminho certo.
Alcancei uma passagem vertical entre pedras que demandaria a subida “em chaminé” ou escada humana.
Voltei uns dois metros pela trilha pois lembrava de termos visto uma alternativa na passada anterior. O
acesso à nossa direita, apesar de factível em solitário, apresentava um trecho de rocha muito escorregadia,
com grande exposição. Tomando todos os cuidados e usando um pequeno arbusto como apoio, consegui
superar essa passagem. Despi a cargueira e estudei por onde orientar o grupo. Conclui que o melhor seria
por ali, comigo bem ancorado fazendo a segurança. Dessa forma, em pouco tempo o trecho estava superado.
Logo passamos pelo cume do Pedra da Lagartixa, por vezes marcado como Muralha, também sem maiores
dificuldades. Alcançamos o Boa Vista às 16h20. Passamos pelo Leão e em seguida, pelo Ângelo. Quase no
cume do Ângelo, uma área de acampamento com muito lixo espalhado nos chamou a atenção pelo
inesperado ali, distante de qualquer acesso mais simples. Registramos a triste imagem e recolhemos o
material, dividindo-o entre as cargueiras. Na descida pelo colo entre o esse e o Bandeirante, em direção ao
vale que guarda o acesso à crista do Pelado, percebi a falta de um dos bastões de caminhada, quando já
trilhávamos sob a luz das lanternas. Eu fechava a trilha, então não havia ninguém atrás para perceber que
o bastão ficara para trás. A conferência anterior havia sido feita há algum tempo, minhas lanternas estavam
com bateria pela metade e ainda estávamos distantes do acampar, optei por não voltar mais que uma vintena
de metros na busca. Ficou como justificativa de incursão futura. Ao chegarmos no vale, abastecemos nossas
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garrafas no pequeno regato e dispensamos algum tempo para encontrar o rastro da trilha, devido à queda
de árvores. Para que a navegação fosse mais efetiva liguei o GPS do relógio e fui à frente do grupo, testando
os caminhos e validando, de tempos em tempos, baseado nas fitas encontradas. Após algum tempo
emergimos da florestinha mais fechada e passamos a subir em meio ao capim da encosta. alcançamos um
falso cume, onde o solo estava saturado de água, ainda que persistisse apenas uma fina garoa. O Douglas
alertou que não convinha ficarmos ali, pois caso chovesse, por pouco que fosse, formaria uma lagoa.
Subimos por mais uns 20 minutos até alcançarmos a Asa, às 22h13. Rapidamente, instalamos as barracas
e cada um tratou de se abrigar. Segui o ritual de sempre, retirar a roupa enlameada e molhada, empilhando-
a no avançê da barraca, colocar água para ferver, dessa vez usando o fogareiro de combustível sólido,
enquanto enxugava o interior da barraca. Era a primeira vez que empregava, nessa travessia, meu
equipamento de cozinha. Em seguida, vesti a segunda pele de contingência no tronco e repassei a secagem.
Tomei uma sopa quente e coloquei água para hidratar o liofilizado que levei. Tamanho foi o desencontro
do sabor do prato com minhas papilas, que precisei me esforçar para comer, em uma palavra: péssimo.
Com o interior seco, retirei as roupas e o saco de dormir de suas proteções, me vesti e, uma vez dentro do
saco, aproveitei para dormir mais cedo. Na madrugada, acordei com a violência das rajadas da chuva e,
depois de repetir o ritual de secar a condensação, inspecionei atentamente quanto a infiltração nas paredes
e costuras. Apesar de satisfeito, duvidando da sua resistência, me despi de toda a roupa de dormir, guardei
no pote e esse, por sua vez, dentro de um saco plástico, e já que mais não podia fazer, voltei a dormir.
Felizmente, demos ouvidos ao Douglas, quanto ao local de pernoite.
Dia 10 Amanheceu seco, com algumas aberturas por entre as nuvens. Torcemos, em vão, que
permanecesse assim, apenas com cerração ou neblina. Um mero mormaço
era sonho distante. Repeti o ritual matinal de arrumação da cargueira,
protegendo todo o equipamento de dormir com sucessivas camadas plásticas
e colocando as toalhas desidratadas para absorver a umidade restante e
proteger dos equipamentos de dormir com condensação do vapor d’agua
preso no interior. Restavam dois pacotes de sopa instantânea e 3 de chás
como reserva. O Macedo transportara mais lanche de precisaria, e não me
furtei de ajudar na redução do peso útil. Os bolsos da barrigueira já estavam
repletos, de forma que dividi o adicional nos bolsos laterais. Fiz o último
curativo no joelho da travessia. Como combinado, o Macedo e o Gui
forçaram marcha à frente, para atacar o Espinhento. Ao passarmos pelas
cargueiras sinalizamos que estaríamos à frente deles com ramos de
vegetação e lixo colorido. Avançamos cerca de meia hora, cada vez mais
desconfortáveis com o acordado... o assunto da conversa não podia ser outro: ali, naquelas condições de
isolamento do “meio” da serra, com a condição climática que, se já não estava boa, ainda piorava a cada
minuto... o desgaste físico, cognitivo e emocional acumulado nos dias precedentes nos levaram a rever o
acordado e voltamos sobre nossos passos. Os encontramos já caminhando em nossa direção, haviam
abortado o ataque. Reunidos, focamos caminhar na celeridade possível, atentos à navegação para que os
eventuais erros fossem prontamente corrigidos. O rol de cumes faltantes minguava lentamente e cada passo
nos conduzia ao completar exitoso do rolê. A conversa fluía nas descidas aos vales, pautada nos confortos
da civilização e nas refeições deliciosas e quentes. Nas subidas, “estranhamente” o grupo se tornava
taciturno e as respostas, por vezes monossilábicas, não suportavam o diálogo. A chuva passou a nos
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acompanhar, não era mais “se”, mas “quanto”. O passo do Douglas, era substancialmente prejudicado pela
miopia tardiamente reconhecida somada à baixa visibilidade que a neblina impunha. Não seria exagero
poético retratá-la como xale de viúva. Éramos quatro órfãos, naquela imensidão agreste. E a esperança de
terminar a travessia sob uma tarde ensolarada, nossa viúva comum...restava-nos a galhardia de não refugar
ante os impérvios serranos e, ainda que deixando sangue e pele em tributo à mata espinescente,
completarmos o rolê. A Natureza nos testava, e estávamos determinados a responder à altura. O dia passou
muito rápido... a esperança de abertura de sol, o cansaço somado dos dias precedentes, a pouco aprazível
experiência de vestir as roupas molhadas enodoaram nossa disciplina, e acabamos por partir tarde. Os
rastros por vezes confusos na trilha nos tomaram vários bons minutos. O cinza escuro das nuvens trouxe
um ar lúgubre ainda no começo da tarde. Nas florestinhas, ainda antes das 16h as lanternas eram necessárias.
A difração da luz delas na densa nevoa por vezes tornava o identificar do caminho mais laborioso que o
próprio caminhar. A perspectiva era de que com o escurecer nossa velocidade média reduzisse ainda mais.
Por vezes, o rastro da trilha, claro e desimpedido, permitia caminhar mais célere. O intento era concluirmos
até as 22h30, ficando dentro dos 10 dias.
Ao cumear o Carvalho, informei que seguiria em direção ao Canal e o Douglas decidiu me acompanhar.
Com isso, liberamos o Gui e o Macedo para buscar o derradeiro ataque. Pouco depois, ao alcançarmos o
cruzo, repetimos o ritual de sinalizar e dobramos à esquerda, deixando o caminho para o Torre Amarela as
nossas costas. No cume do Vigia, os ventos de tempestade se fizeram sentir com tal intensidade que,
confesso, fiquei muito mais feliz de termos decidido abreviar a travessia e “fugir” da serra antes que toda
aquela energia que se avizinhava nos atingisse. Na miríade de caminhos, atalhos e rastros a navegação foi
“tranquila”, comigo à frente lendo os rastros e testando os caminhos, com brados de “fita azul”, “fita
laranja”, “fita rosa” repetidos a cada pouco pelo Douglas. A chuva se intensificou, escudada por rajadas de
vento que enregelavam a face e as mãos desnudas. A situação era desagradável e nos consolava a certeza
de que a provação estava findando. O risco de acidente nos metros finais foi objeto de pensada cautela.
Na base da trilha, nos agruparmos e percorremos juntos os metros finais até o rancho, onde a Daniela e o
Wellyngton nos aguardavam com a kombi de resgate e nossas roupas secas. Abandonei a calça enlameada
e, muito feliz, me enfiei na bermuda. Um pacote de peixe frito desidratado nos esperava, depois de ter sido
abandonado na sacola de roupas, pelo peso, no início da trilha. Os doguinhos também amaram os acepipes.
Trocados, tratamos de comemorar, porém não seria dessa vez a pizza… a pizzaria fechava às 23h, e, ao
chegar lá faltava pouco. Contrariados, alternamos para uma constelaria, onde finalmente pudemos brindar
e comer algo mais substancial. A Gabriela chegou logo depois, escudada pela Valentina para resgatar o Gui
da nossa má companhia. Ainda antes da meia noite, nos despedimos e seguimos para a casa do Macedo,
que gentilmente nos acolheu para o pernoite. No dia seguinte, fomos recuperar os potes de suprimentos da
U.M. e do M22, enquanto o Gui organizou o churrasco de encerramento. Aproveitei lavar e secar as roupas.
Conclusão Nossa travessia se deu sob as piores condições climáticas já enfrentadas em uma AC exitosa.
Dos 10 dias, tivemos chuvas intermitentes ou contínuas em 7 deles. Acredito que isso permita inferir a
qualidade do nosso
planejamento e do amálgama
precioso de qualidades que
meus companheiros de
pernada apresentaram. Sem
vitupério, cito: vasta
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experiência no montanhismo; elevada resiliência psicológica e emocional; habilidade de navegação em
mata fechada, à noite e sob condições climáticas adversas; disciplina moderada; intensa empatia mútua;
boa forma física; habilidade de avaliar a evolução da meteorologia; apurada capacidade de adaptação e, a
cimentar tudo isso, um irredutível elã, tesão mesmo, pela história dessa travessia, a ponto de ceder um
bocado suor, sangue e pele pelo prazer de palmilhá-la. Alguns pontos eu faria diferente: usaria as perneiras
o trajeto todo, contaria com um plano de telefonia rural da TIM, escolheria alimentos de preparação mais
célere. Levaria uma jaqueta de pluma para uso nas paradas mais longas. Estimado (171 km, 20 km na
vertical) x realizado (~160 km e 17,8 km ).
Não foram poucos os momentos em que a lembrança de algum conforto específico nos tentou. Depois de
2 dias andando na chuva, com o corpo enregelado, um abrigo seco e quente é uma promessa surreal. No
meu caso, o ferimento no joelho, bem inflamado e no resistir à uma infecção mais séria, doía a cada rocar
das folhas de capim. Os sucessivos choques com as hastes dos bambuzinhos ou arbustos, então, traziam o
sal das lágrimas à minha face. Certamente, por várias vezes, não segurei o palavrão ante uma pancada mais
certeira. À noite antes que a exaustão vencesse, parecia que o latejar da ferida não me permitiria dormir.
Saber que ainda teríamos dias de tempo chuvoso e de mata mais agreste testavam nossa determinação. Esse
é outro aspecto em que a AC/ACE se mostra desafiadora: pode-se simplesmente desistir, ao final de cada
trecho e ir para casa, para o banho quente, para a alegria simples e farta de um PF. Se essa facilidade de
acessos intermediários traz adicional segurança no caso de um acidente ou intercorrência mais séria, garanto
que a tentação tolda os pensamentos.
Nesses 10 dias caminhamos várias horas. Com frequência à noite. Jornadas de 14 horas foram comuns,
com cargueiras entre 15 e 20 kg. Felizmente, as bolhas foram poucas evidenciando que os cuidados tomados
foram eficazes, mas as pernas e braços ficaram lanhados pela vegetação agreste e espinescente. Como sói
sucede àqueles que mantém a alma juvenil pari passu às rugas da experiência, emergimos na base do Canal
transformados pela caminhada, valorizando os pequenos confortos comuns cotidianos.
Agradecimentos Aos amigos de trilha, que torceram
por nós e sofreram a distância com o imaginar das
provações a que nos submetíamos, assim como no resgate
ou no transfer de ida. Gostaríamos de agradecer
nominalmente a todos que direta ou indiretamente nos
auxiliaram, e vou tentar fazê-lo em ordem alfabética:
Adilson Cypriano, Amanda Rossi Mascaro, Anderson dos
Santos, Cristiane Gaidesk, Danielle Caldeira, Elcio
Douglas Gustavo Henrique, Henrique (Vitamina) Paulo
Schimidlin, Júlio César Fiori, Vilma Aparecida e
Wellyngton Silveira. Agradecemos ao portal Alta
Montanha por coligir as informações sobre travessias e
aventuras.
Encerro agradecendo aos nossos familiares, privados de
forma aguda da nossa presença. Aqui, ante o risco de olvidar alguém, não o farei nominalmente. A todos
vocês, nosso muito obrigado. Estiveram conosco em pensamento, durante toda nossa jornada.

2 Comentários
Tiago Korb 19/12/2023 12:19

Parabéns! Só quem fez uma travessia dessas, sabe o tamanho do planejamento e esforço físico.

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valeu!! Realmente é algo diferenciado, rsrs. Grande abraço

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Rogério Alexandre Francis

Rogério Alexandre Francis

Santos e SP

Rox
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Montanhista de FDS, engenheiro de formação, aficionado por historia, geografia e biologia. O cume não pode ser a maior alegria da pernada.

Mapa de Aventuras


Mínimo Impacto
Manifesto
Rox

Peter Tofte, Renan Cavichi e mais 451 pessoas apoiam o manifesto.