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Das praias, atravessando montanhas

Das praias, atravessando montanhas

Travessia da Serra Fina Clássica em 4 dias, com os Trilheiros Caiçara... montanhismo para iniciantes

Montañismo Acampada Trekking

Deixando as praias, subindo montanhas.

Quinta-feira, 5/9/2019, 18h, deixei a estação de trabalho e desci para encontrar meu sobrinho e o restante da trupe que trilharia algumas das montanhas mais altas do país, ao longo dos próximos quatro dias e três noites.

Finalmente, depois de uma longa e criteriosa preparação, nos colocavamos à caminho, depois de retornar até em casa para buscar o lembrado de 25’ hora. Pouco após as 20h, conseguimos vencer o trânsito da desordenada saída da cidade de Santos, em obras de adequação. Seguimos conversando, cochilando e trocando informações sobre o que nos aguardava.

O grupo ficara concentrado em dois teimosos originais, Myka Oil e Rodrigo Molina, meu sobrinho Eduardo e este que vos escreve, único a conhecer, em parte, as bandas por onde passaríamos. Do grupo inicial, montado em janeiro, que chegou a ter mais de 30 integrantes ao longo do tempo, apenas estes haviam superado as provações que eu havia imposto: treinos físicos frequentes e, pelo menos uma ascensão à Pedra da Mina, via Paiolinho. Relatei essa última parte da preparação em “Caiçaras nas alturas”. Compromissos profissionais intransferíveis nos privaram da Dani Souza, que mesmo apta teve que ficar na torcida. Deus mostraria o Seu Porquê. Saberíamos na volta que a D. Mimi, simpática senhorinha que nossa amiga cuidava, seria chamada ao Seu Lado, aos 91 anos. Estranhos são os desígnios Dele... estranhos para nós que não podemos antever nas vicissitudes da vida, o caminhar da Sua Vontade... ela partiu serena, e a presença da nossa amiga ali, lhe trouxe um pouco dessa paz. A Dani agora tem mais um anjo de guarda, a olhar por ela, de um ponto ainda mais alto que a mais alta montanha...

A Alessandra e a Lívia, planejaram fazer a travessia no mesmo período, mas de forma separada, optaram por uma incursão ao Marins, uns dos ícones do montanhismo no estado de São Paulo, palco de muitas alegrias e, infelizmente algumas tragédias, algumas nunca elucidadas outras, com o trágico final de conhecimento de todos...

Após uma parada para esticar as pernas e comer algo, uma leve avaria no sistema de partida nos tomou alguns minutos até optarmos por forçar a partida, no tranco. Seguimos com o Rodrigo ao volante até que uma freada mais forte nos alertou para trocarmos o motorista, que havia “pescado”, por uma fração de segundo. A Myka assumiu o posto, e sob o seu comando, seguimos viagem. Pouco depois, deixamos a Dutra e tomamos a estradinha vicinal que nos levaria até Passa Quatro.

Na subida da serra, a neblina crescente se fazia notar, reduzindo a visibilidade a poucos metros, preocupando a todos, à exceção do Rodrigo que roncava tranqüilo... sob a direção habilidosa da Myka, orientando-se pelos olhos-de-gato entre as pistas no trecho paulista e a, marcar a extremidade oposta da pista contrária, no trecho mineiro, vencemos a cerração e alcançamos Passa Quatro, passamos na casa do Guto para pegarmos as chaves do hostel. Uma última revisada das cargueiras, e logo após as 2h da madrugada fomos dormir um pouco. Combinado o café para as 4:30, acordamos às 4:00, fizemos a higiene básica e ficamos petiscando e conversando à espera do nosso resgate.



Pontualmente às 5h, recebi a mensagem da Patrícia, da Adventure Transfer, de que nos esperava lá fora. Nos despedimos do Guto, pegamos os equipamentos previamente arranjados e embarcamos para Toca do Lobo, ponto inicial da nossa pernada. A viagem não chega a ser extatamente "longa", mas sobe-se bastante, permitindo aquilatar a pernada extra daqueles que começam na rodovia. Subimos nos inteirando das últimas novidades de Passa Quatro, se havia previsão de outros grupos na serra, etc. Ficamos sabendo que a propria Patricia pretendia pernoitar na Pedra da Mina, no sábado, para curtir o nascer do sol visto de lá. Combinamos de nos encontrar lá em cima, pois acamparíamos ali na segunda noite da travessia. Pouco depois, nos encontrávamos no alto da estradinha, e após vestirmos as cargueiras começamos a caminhada, desviando das poças maiores até a Toca do Lobo, onde fizemos o clássico registro de início de trilha às 6h e cruzamos o riacho para subir, pela trilha que atravessa a mata, até o Cruzeiro.


Apesar de já ser dia claro, as nuvens acima de nós transmitiam um ar lúgubre à pernada e o friozinho matinal dos corpos sendo dissipado aos poucos no íngreme subir da encosta nos deixava menos afeitos à qualquer troca de opiniões que não pudesse ser feita através de resmungos ou onomatopeias... mesmo assim, fiz uma “longa” parada para apreciar uma espécie de orquídea que ainda não havia observado naquela parte da serra.


Retomamos a subida e em pouco tempo, alcançamos o Cruzeiro e passamos a seguir pelo ombro em direção ao Quartizito. Deixamos as cargueiras e descemos para coletar água para o consumo na longa subida até o Capim Amarelo, para alimentação e higiene e para seguir até a base da Pedra da Mina, no dia seguinte.

Vencida a subida do Quartizito, começamos a longa e suave descida até o Passo-dos-Anjos, já quase na base do CA. Caminhamos sem pressa, apreciando as paisagens e discutindo a possiblidade de testemunharmos um Espectro de Broken. Por um fugidio instante, pudemos apreciar esse singular jogo de luzes e sombras nas nuvens. Tão logo se formou, ainda mais célere se desfez, sem sequer nos dar esperança de registrá-lo. Seguimos ganhando altitude aproveitando as breves paradas para retomada do fôlego que insistia a fugir a cada dezena de metros vencida, para fotografarmos as belezas que víamos. Aqui faço uma singela constatação... a melhor foto, do melhor celular ou câmera não pode evitar estar aquém do que os olhos contemplam. Então, aprecie ao vivo, com teus próprios olhos. Permita-se imergir nos cheiros e sons da mata, das nuvens, das montanhas. Nesse momento observamos dois outros montanhistas a caminharem pelo em direção a base do CA. Notamos que um subia mais veloz, apenas com mochila se ataque e outro o fazia mais devagar, com uma cargueira que parecia conter o mundo. Quando o primeiro dos dois nos alcançou, fizemos as saudações de praxe e ficamos sabendo que havia trazido o outro, que faria a travessia sozinho em 4 dias e 3 noites, na mesma configuração que havíamos planejado. Trocamos mais algumas palavras e ele retomou a subida, célere, sem o peso extra de uma cargueira. Não demorou muito e o segundo nos alcançou, conversamos um pouco sobre os planos, descobrindo que, ao contrário do que seu resgate nos informara, ele nunca havia feito a travessia. Havia subido a PM via Paiolinho, havia 11 anos. Com a ansiedade de quem faz a travessia a primeira vez, rapidamente nos deixou e sumiu nas curvas da trilha. Naquele momento, nos preocupamos um pouco, ante a aparente ousadia de fazer a travessia em solo, de primeira, e ainda fora de um feriado. Saberíamos, ao longo da travessia do extenso e invejável currículo do nosso colega de montanha, com meses na estação brasileira da Antártica, como alpinista da Marinha, já tendo trabalhado como guia e ministrado cursos na área... além da extensa bagagem, havia se preparado para aquela empreitada, estudando os relatos anteriores, mapas, etc. Definitivamente, não era um dos adeptos do “só vai” inconsequente que tanto trabalho cria para as equipes de resgate.


Mantendo a rotina de subir um pouco, admirar a paisagem, tomar um gole d’agua, petiscar algo, em pouco tempo alcançamos os trechos com cordas, que marcam os últimos metros antes do cume. Num platô, pouco abaixo do cume, caçamos uma boa sombra e fizemos uma pausa maior, com direito a lanche e limonada. Aproveitamos que o sol estava mais intenso e cochilamos cerca de uma hora antes de retomar a subida. Quase que completamente refeitos do esforço até ali, retomamos a caminhada, agora curtindo o visual das montanhas abaixo e fazendo registros das subidas mais escarpadas dos trechos finais. Pouco após as 14h estávamos no cume do CA, primeira montanha com livro de cume que passaríamos. Escolhemos os locais de acampamento, preparamos um almoço-janta e ficamos a apreciar a paisagem e a sensação de ter superado o primeiro dia da travessia sem maiores problemas. Encontramos o James lá em cima, com o acampamento montado e tentando evitar o sol, se abrigando atrás das touceiras de capim mais espessas. Passamos alguns alertas quanto aos erros de trajeto mais comuns e os trechos mais críticos e ficamos a curtir o pôr do sol e o impressionante mar de nuvens que se derramava por sobre as montanhas ao redor... o Marins, o Marinzinho e o Itaguaré pareciam ilhas, apenas com os respectivos cumes despontando acima. O sol se pôs de forma um pouco tímida, mesmo assim permitiu algumas imagens lindíssimas. Com o vento, assim que o sol se pôs, nos retiramos para as barracas, buscando recuperar o sono da noite quase que em claro, passada na chegada à Passa Quatro.


Segundo dia

Acordamos com o dia clareando e fomos apreciar o visual enquanto nos esquentávamos. Nesse dia, teríamos que andar bem, com a meta de chegar na PM antes das 16h e ainda conseguirmos algumas suítes para todos. Preparamos ovos mexidos com bacon, desmontamos acampamento e pouco após as 7h30 estávamos descendo o CA, em direção ao longo colo que existe entre ele e Melano. A descida, aqui, não tem segredo: não pode ser muito à esquerda, pois nesse caso se caminha para o Tijuco Preto, nem muito à direita, pois a falsa trilha termina em um precipício de avanço inviável e obriga, na melhor das hipóteses a uma longa escalaminhada CA acima. Com o devido zelo, descemos ora nos agarrando aos bambuzinhos da orla da trilha, ora usando os bastões para ajudar na frenagem e no equilíbrio. A descida é longa e cada metro de altitude perdido faz crescer a imagem do Melano que se destaca na paisagem. Procuramos manter uma boa velocidade de forma a aproveitar o frescor matinal para ganhar preciosos minutos, passamos pelo Maracanã e pouco após as 10h estávamos na subida inicial para o ombro do Melano. Com o sol começando a castigar, trilhamos pelo ombro do Melano, ganhando preciosos metros de altitude a cada entrada e saída de bosque. Aproveitei para fazer fotos do grupo, com as montanhas ao fundo, mantendo alguma distância entre a minha posição e a posição dos que me seguiam. Cada disparada na frente (e para cima) me custava alguns segundos de respiração ofegante, mas as imagens valeriam a arritmia.

Subimos o ombro do Melano, tomando especial cuidado nas passagens mais expostas e, pouco antes das 11h20 alcançamos o seu cume. Fizemos alguns registros e começamos a trilhar pela sua crista, perdendo altitude gradualmente a cada sobe-e-desce. Alcançamos a laje em que me abriguei na travessia dos “Achados e Malucos”, quando a noite do 1º dia já se avizinhava. Foi curioso ver como um trecho de laje inclinado abrigou tão bem à “tantos”... viramos à esquerda, subindo até o divisor de águas e evitando o trecho enlameado dessa passagem, passando a costear, quase que em nível a base da montanha à nossa frente para descer em direção à cachoeira vermelha.

Nesse momento ouvimos ao longe as vozes do grupo da Patrícia que iria até a PM, via Paiolinho, e acabara de superar a longa subida da Deus Me Livre. Paramos um pouco para tentar ouvir novamente, mas a mudança nos ventos impediu que, mesmo atento, conseguíssemos ouvi-los novamente. Depois de alguma espera para tentar estabelecer a posição do grupo que vinha pelo Paiolinho, decidimos retomar a caminhada, na incessante sucessão de pequenas subidas e longas descidas que nos separava do próximo ponto d’água, já ao pé da PM. Ao chegarmos, cruzamos o Rio Claro e encontramos o James descansando antes de retomar a trilha. Nosso amigo aprendera, na véspera, o quão oportuno pode ser fazer uma parada com sombra e água, antes de fixar acampamento num cume de montanha. A Myka aproveitou para tomar um banho de garrafa, com alguma privacidade proporcionada pelas touceiras de capim. Na pressa, optou por ir descalça, resultando num pequeno, mas dolorido, corte entre os dedos ao tentar andar através do capim navalha. Lembrança para quem pensa que fazer um vara-mato, ainda que curto, pode ser um bom atalho.

Descansamos um pouco, nos abastecemos com cerca de 4 litros de água por cabeça e retomamos a subida, agora mirando o ombro da Pedra, um platô a cerca de 15 min de trilha. Fiz uma parada estratégica num bosque longe dos cursos d’água, aproveitando o solo espesso para cavar um bom buraco na terra e reduzir um pouco do peso que carregava. Entre preparação, uso e finalização do buraco devo ter levado uns 10 minutos... o suficiente para, ao retomar a subida, ver meus colegas de trilha uma centena de metros adiante e dezenas de metros acima. Apertei o passo para alcançá-los, coisa que só fui conseguir já no ombro da Pedra. Nele caminhamos recuperando o folego até a encosta e logo após começamos a vencer as sucessivas curvas de nível em que esse acesso ao cume foi desdobrado. Com o folego recuperado, decidi manter um ritmo mais puxado, ajudando a motivar o resto do grupo. Alcançar o cume 10 minutos mais cedo poderia ser a diferença entre um bom abrigo, numa das “mansões” do cume ou ter que procurar se acomodar onde desse, nas outras áreas de acampamento do alto da Pedra. A estratégia de subir 5 minutos de forma célere e descansar 1 foi bastante eficaz, motivando o Rodrigo a me alcançar. Para desespero dele, eu subia mais rápido, mantendo a distância entre nós quase constante... aos poucos, fui permitindo que me alcançasse, enquanto registrava a subida do restante do grupo. Dessa forma, subimos sem muito atentar para o fato que a subida da PM por esse caminho é quase o dobro da efetuada quando se chega pelo Paiolinho. Tanto a Myka, quanto o Eduardo subiam mais devagar, conversando e poupando energia.


Em pouco tempo chegamos ao trecho de laje de pedras, onde dei uma arrancada final para pegar a primeira suíte, ao lado do livro de cume. Meu abrigo e da Myka estava garantido. Percebemos que o cume estava ocupado apenas pelo James que pegara, uma das melhores mansões, do outro lado do livro. O Rodrigo seguiu em frente para escolher com qual das mansões remanescentes ficaria, e eu voltei por sobre meus passos para ajudar a Myka e o Eduardo na subida. Desci umas dezenas de metros até alcança-los e, para meu alívio, nenhum dos dois permitiu que eu tomasse a sua mochila para facilitar o final da subida. Uma vez que eu sabia que ainda havia bons lugares para o Eduardo escolher, terminamos a subida conversando, sem pressa. Mesmo começando mais tarde que o previsto, chegamos ao cume às 15h30, dentro do planejado. A Patrícia e seu grupo despontavam na última subidinha pelo Paiolinho e fui recebê-los. Escolheram um local menos abrigado, mas de excelente visual para o nascer do sol, plano e adequado para colocar ambas as barracas próximas.

Chegaram mais alguns montanhistas, esses com o plano de fazerem em dois dias. Haviam começado na Toca do Lobo, pouco antes das 8h da manhã e chegaram até a PM com pouco tempo de luz, de forma que se organizaram rapidamente para o pernoite. Particularmente, penso que começaram muito tarde, até porque a chegada ocorria de forma descontínua, evidenciando a heterogeneidade do grupo.

Descansamos um pouco, armamos o acampamento, preparamos um almoço tardio e um jantar antecipado, de forma a forrar bem o estomago de todos, antes da fondue que seria feita na varanda da barraca do James, mais abrigada e mais espaçosa do que as das demais mansões. O sol se pôs de forma espetacular, e com o começo do escurecer, fomos prepara a fondue. Cortamos, como pudemos, o pão italiano em cubos, separamos os vinhos e ficamos degustando a guloseima, revezando os garfos que eu havia lembrado de guardar do jantar durante a viagem na sexta. Pouco glamour, mas muita diversão e sentido... metade de uma travessia para a qual se preparavam havia meses... até por ser um luxo compartilhado por todos, com o peso de cada elemento tendo sido salomonicamente carregado pelos últimos dois dias. Na manhã seguinte, as garrafinhas de vinhos ajudariam a levar um pouco mais de água. Após nos fartarmos de vinho e queijos, limpamos e guardamos as tralhas de cozinha e nos retiramos para o sono restaurador. A temperatura não caiu abaixo de 6ºC e, como estávamos bem abrigados não tivemos dificuldades para adormecer.

Terceiro Dia

Acordei com o clarear do dia, e já passei a pilhar os meus colegas de cume para levantarem e irem apreciar o nascer do sol, próximo do totem de acesso ao Vale do Ruah. Deixei a Myka se trocando na barraca e fui acordar o Eduardo, o Rodrigo e a Patrícia. Na volta, notei que o James já havia acordado... também com a os chamados aos outros em volta, era difícil ignorar que o dia estava clareando e as melhoras imagens do nascer do sol mereciam o pequeno esforço extra.

Ficamos apreciando a paisagem, fotografando a alvorada e o lindo nascer do sol, entre as Agulhas Negras e as Prateleiras. As imagens do nascer do sol ali, ainda que eu já o tenho visto fazê-lo diversas vezes, ainda me encantam. Talvez seja por observar que tudo muda, ainda que “nada” mude. A direção de onde o Sol surge varia, tendo já o observado nascer exatamente por detrás Agulhas Negras.

Com o sol nascido, partimos para desmontar acampamento e preparar um café da manhã reforçado, uma vez que não teríamos outros montanhistas além do nosso grupo e do James para pernoitar lá no cume do Três Estados. O James partiu um pouco antes, e ficamos enternecidos ao ler o que registrara no livro de cume da PM. A dedicatória era simples nas letras, mas cheia de significados e valores que só a relação pai-e-filho pode aquilatar. De forma análoga à minha Fé quanto às dedicatórias para o meu irmão, acredito que esteja ele onde estiver, se sente grato e amado pela lembrança. Partimos da PM pouco após as 8h30 de forma que o dia estivesse mais quente quando alcançássemos a cascatinha onde nos abasteceríamos de agua para os dois dias subsequentes e o pequeno poço que existe logo abaixo, onde todos haviam prometido um banho de batismo na SF.

Nossa mora em deixar a PM foi providencial para o grupo que estava fazendo a travessia em dois dias. De alguma forma eles haviam errado a descida da PM e, quando os vimos estavam subindo de volta para o ombro pelo qual se acessa o vale do Ruah. Procuramos entender o que havia ocorrido, já que havíamos suposto serem experientes para fazê-lo. Como as explicações estavam pouco conexas, optamos por propor que nos seguissem pelo menos até a cascatinha. Dessa forma, ajudaríamos a reduzir o atraso que a errada havia criado. Sugestão aceita, tomei a frente do grupo e procurei puxar bem o grupo, não dando muita margem para dúvidas e tentativas de optar por caminhos menos enlameados... dessa forma, em pouco mais de 5 minutos atravessamos da base da PM até a cascatinha. Deixamos o grupo coletando água e seguimos para o pocinho, onde dei o exemplo e caí na água quase tépida.

Entre um banho e outro, dei algumas recomendações e orientações para grupo que fazia a travessia em dois dias. Seria mentira negar que me preocupei um pouco com a aptidão deles em sair das montanhas ainda com luz do dia. Por isso insisti que deixassem apitos e lanternas de fácil acesso. No trajeto entre o Ruah e o Três Estados iria prestar atenção a eventuais chamadas de socorro, apesar do grupo dispor de dois GPS com os tracklogs da travessia.

Ficamos uns 40 minutos curtindo o sol e água gelada do pocinho e, agora com todas as garrafas cheias, partimos em direção ao Três Estados, margeando o Ruah até o fim do vale e, bem próximo da garganta por onde ele deixa o vale, viramos um pouco à direita e passamos a subir o primeiro dos morros que fazem a transição entre esse vale e a encosta do Cupim de Boi. Após alcançar o seu cume, passamos a costear o Vale das Cruzes, subindo e descendo pequenos morros até, sem grandes surpresas, apreciando o visual dos Camelos, da PM, do Ruah Leste, do Picu, do Três Estados e do Cabeça de Touro, entre outras montanhas e vales ao redor.

Partimos pesados do Vale do Ruah, com toda a água que pudemos carregar, cerca de 4l por cabeça, de forma que caminhamos sem pressa, procurando manter o fôlego e fazer as paradas nas áreas de sombra ou de paisagens mais amplas. Dessa forma, pouco após as 14h, estávamos no começo da última subida do dia, pela lateral esquerda do Três Estados. Pouco antes, com a aproximação final desse trecho, eu havia feito questão de que todos descansassem 5 minutos, se hidratassem bem, tomassem um gole de mel e comessem um pedaço do queijo Grana Padano que carrego de forma a assegurar que estivessem hidratados e com bom balanço entre glicose e sais no sangue para essa ascensão, dado maior grau de exposição que ela apresenta. Na base dessa subida, fizemos nova pausa de 5 minutos e retomamos a subida, galgando em poucos minutos os últimos metros até o cume da montanha.

No cume, reencontramos o James, que havia chegado pouco mais de meia hora antes, e já estava com o acampamento montado. Escolhemos os locais mais planos e amplos para montarmos nossas barracas. Fizemos uma longa refeição, consumindo a maioria do que levamos, revisamos o inventário de água, procurando garantir uma média de 2 litros por cabeça para o dia seguinte. Apreciamos o pôr do sol e nos recolhemos pouco após escurecer.

Quarto dia

Acordei o povo pouco após a alvorada, com o dia ainda terminando de clarear, aproveitamos que não estava muito frio e fizemos diversas fotos enquanto esperávamos o romper da aurora. O sol nasceu lindo, com as diversas matizes de laranja e vermelho se esvaindo conforme a claridade aumentava. Sempre é um espetáculo vê-lo a partir desse cume, e o fato de se estar em três estados da federação ao mesmo tempo é, no mínimo singular. Ainda farei pão de queijo mineiro para café da manhã. Como não havíamos pensado nisso antes, fizemos crepiocas, fatias de pão de maçã e canela com Nutela (não comentei, mas esqueceram minha manteiga no carro). Num desencontro de informações entendi que tínhamos apenas 1,5 litro de água para cada um, de forma que risquei do menu tudo que consumia agua: café, chás, mingaus e assemelhados. Quando descobrimos que tínhamos quase 9 litros d’agua, as coisas já estavam guardadas. Ao fim e ao cabo, foi bom, pois tínhamos água em abundância para uma caminhada que se faz, quase em sua totalidade exposto ao sol que já ardia, mesmo com a brisa de sudeste que soprava.

Havia acertado com o James de seguirmos juntos pelo menos até o Alto dos Ivos, devido aos desvios e erros que essa parte da trilha apresenta. Nosso resgate estava previsto para as 15 horas e o dele para as 13 horas, de forma que talvez ele precisasse acelerar depois desse cume. Deixei a Myka, o Rodrigo e o Eduardo se revezarem identificando a trilha, com bons resultados... ocupa a mente, ensina a reconhecer as marcas de passagens anteriores permite ir construindo um mapa mental do trajeto... atividade lúdica e útil, numa combinação que me apraz bastante. Procurava apenas incutir um certo grau de desconfiança quando o trajeto estava muito fácil, de forma que não soçobrassem ao ver as subidas mais técnicas que enfrentaríamos. Aproveitava também para mostrar os vestígios de erradas anteriores, em certos pontos mais batidos que a própria trilha, num testemunho silencioso de quão fácil é deixar o caminho correto quando não se faz a navegação o tempo todo e deixa-se para decidir apenas na bifurcação.

Fomos seguindo nessa tocada até a paredinha quase vertical que dá acesso ao Bandeirantes, onde muitos (inclusive eu já o fiz) tendem a pegar o caminho da esquerda, costeando em nível a rocha... eu estava fechando a fila e esperei começarem a seguir pelo trecho errado para tomar folego e subir as pedras com a convicção de quem sabe onde está a sequência da trilha, depois de subir uns 3 metros na vertical, vi a primeira marca de passagem. Lá da base é difícil distinguir alguma marca de que a trilha segue aquela curta escarpa. Parei no alto da subida e fiquei recuperando o folego e filmando os amigos a fazer a mesma investida que eu fizera. Em breve, todos os cinco estávamos caminhando pelo cume do Bandeirantes e começando a longa descida até a colo entre a montanha que deixávamos e o Alto dos Ivos.

Me deixei ficar para trás nessa descida para fazer fotos dos meus colegas de montanha, gosto dessas tomadas de longe, onde as pessoas se fazem pequenos pontinhos e consegue-se aquilatar melhor as distâncias e alturas com as quais se lida nessa pernada. Com eles à metade da subida do Alto dos Ivos, achei por bem abandonar a fotografia e apertar o passo para alcança-los nos últimos metros de subida. Assim decidi e assim fiz, com o folego ou, melhor, a falta dele, me mostrando o quanto estou sedentário. No cume fizemos mais um lanche, descansamos um pouco e com a anuência dos outros do grupo, fiz contato com a Patrícia, antecipando nosso resgate para as 13 h 30, de forma a seguirmos junto com o James, que vestia uma cargueira de dar orgulho à muito montanhista raiz por aí... por baixo, pesava uns 18, 19 quilos e ele, apesar das dores e do cansaço, honrosamente, não aceitaria que aliviássemos nenhum peso dela. Cheguei a combinar que me desafiassem a leva-la, por poucos metros que fosse, para aliviar um pouco as dificuldades dele. Mesmo esse estratagema não logrou êxito, restando o consolo de podermos lhe ceder um pouco d’água.

A partir daí passamos a compor um único grupo, apoiando e distraindo mutuamente uns aos outros nos quilômetros finais até a ponto d’água que marca o início de uma antiga estrada de exploração de madeira, e o fim da disciplina de economia de agua. Dali seguimos sentindo os pés e as pernas sinalizarem o esforço ao que haviam sido submetidos até o Sitio do Pierre. No caminho encontramos a estrada bem limpa, com o Luciano trabalhando na contenção da margem esquerda da estrada. Seguimos pela estradinha, a passo, sonhando com a coca gelada que teríamos no final. Esse é um dos trechos mais longos da travessia, porque a menos que corra, o que não é muito apetecível dada a irregularidade do piso, o peso da cargueira e as condições do corpo, leva-se pouco menos de uma hora entre a água e a estrada. Hora de espairecer, interiorizar a pernada, refletir e tentar fazer aquela calma fugidia das montanhas se estender ainda um pouco mais. Como tudo que é bom acaba, chegamos na casa do Luciano, tomamos a coca trincando de gelada e tivemos a última surpresa dessa trip... a Patrícia nos esperava, do outro lado da porteira... nunca tive tamanha colher de chá... não estava preparado para abreviar a pernada dos 10 minutos finais... fui ter com ela, na intenção que descesse e nos esperasse na estrada, como sempre fora, mas os compromissos profissionais dela me fizeram abrir mão desse último gostinho e tratei de colocar a cargueira no porta-malas e tomar lugar no banco do carona. Aproveitamos para dar uma curta carona até a estrada ao James e mais de um se aboletou nos estribos da viatura da Patrícia e foi sacolejando pelos últimos metros. Já na estrada nos despedimos do James, desejando-lhe os melhores medicamentos para as dores nas pernas, passamos na vendinha do seu Adevir, para comprarmos queijos e mel e tratamos de tomar rumo de casa. Ainda pararíamos no Restaurante da Dona Filhinha para o almoço de confraternização da empreitada, regado a guaraná Mantiqueira.

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Rogério Alexandre Francis

Rogério Alexandre Francis

Santos e SP

Rox
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Montanhista de FDS, engenheiro de formação, aficionado por historia, geografia e biologia. O cume não pode ser a maior alegria da pernada.

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Rox

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