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Rafael Soares 09/27/2022 09:23
    Lendária Alpha x Omega - Travessia realizada em 48 horas

    Lendária Alpha x Omega - Travessia realizada em 48 horas

    Breve relato sobre a Travessia da Lendária Alpha x Omega, rasgando a Serra do Marumbi de ponta a ponta. Revisado por Rogério Alexandre

    Prólogo - Os primeiros encontros

    Aproveitando que os acontecimentos dessa expedição continuam bem claros e vivos na memória, arrisco-me a tecer algumas palavras que eternizarão minhas impressões quanto a esse desafio, apesar da ampla dificuldade que há em demonstrar através da simples linguagem uma das aventuras mais desafiadoras, esplêndidas e emocionantes que tive a honra de vivenciar. Talvez poesia, pintura ou música, tivessem mais sucesso. Infelizmente, me são ainda mais estranhas que essa despretensiosa prosa.

    Minha relação de amor (e ódio) com o Pico Marumbi, ou Pico Olimpo como preferir, iniciou-se em 2019, ano que alcancei seu cume pela primeira vez, em um rateio entre amigos. Naquela ocasião, lembro de ter ficado em completo êxtase ao finalizar o trajeto, incluindo o imponente Pico Abrolhos. Meu espanto e encantamento não se deviam somente pelo lindo panorama da Serra do Marumbi, como também pela dinâmica e geologia da trilha: bem técnica, diversas vias ferratas, trechos de escalaminhada, trepa pedras, canaletas, raízes, obstáculos dos mais diversos tipos e tudo de mais desafiador era ofertado ali pela natureza viva e crua da Serra do Marumbi.

    Com o flerte iniciado, fui me envolvendo cada vez mais, estudando relatos, tracklogs, vídeos, livros e o cupido me pegou de vez quando descobri que o Conjunto Marumbi (Abrolhos, Ponta de Tigre, Gigante e Olimpo) era a penas a ponta do Iceberg, e que a partir do Pico Marumbi (Olimpo) a serra se prolonga com uma infinidade de picos e Morros que compõem a lendária travessia Alpha x Ômega, costurando três serras: a Xxx, a Serra do Leão e a própria Serra do Marumbi.

    P.S. Em 2020, após a reabertura do IAP, tentamos uma nova investida ao Pico Marumbi, mas fomos obrigados a abortar por conta do tempo instável que predomina ali, e é aí que começa minha relação de “ódio”. O camping aparentemente estava permitido, porém, devido ao fluxo de “turistas” e a insensibilidade da grande maioria, falta de respeito ao próximo, ao meio ambiente e a si mesmos, a pernoite no camping do IAP tornou-se proibido e assim permanece até o momento em que redijo este relato.

    Sonhando

    Segundo Encontro - “Nos conhecendo”

    Em maio de 2022 me propus a levar um time para conhecê-la, sim, a tão famosa montanha, ou o conjunto Marumbi. Infelizmente, mais uma vez, por motivos de força maior (basicamente de segurança) não pude completar o planejado de subir pela Rota da Passagem Noroeste (Vermelha) e descer pela Frontal (Branca), ficando mais uma vez com o desejo engasgado na garganta (relação de ódio). Como o Universo conspira no sentido dos desejos viscerais, em junho, tive nova oportunidade, agora responsável por guiar um grupo, e, para meu deleite (jubilou), dessa vez o segundo encontro coroou-se de total êxito. O clima estava perfeito, o êxtase da superação novamente me dominava, e a paixão por aquela montanha cada vez aumentava. Fiquei observando a leste, embevecido, imaginando como seria chegar ali vindo do Morro do Canal, percorrendo a lendária travessia Alpha x Ômega, imaginando os desafios que ali se escondiam, os que já haviam sido superados, com todos os causos, e estórias que se fundiam em minha mente, resultado de tantos estudos e leituras que, diligente, havia feito previamente. A travessia Alpha x Ômega passou à categoria de sonho, de quase obsessão.

    O convite inesperado

    O ano de 2022 ainda me traria muitas surpresas e desafios… um ano de grandes conquistas, não somente no montanhismo, mas também de muitas amizades e parcerias. Foi numa dessas investidas que tive a honra de reencontrar o Douglas Garcia, irmão de alguns perrengues anteriores, e conhecer o Rogério Alexandre, montanhista experiente, estudioso, parceiros para qualquer obra. E essa parceria de outrora se tornou uma forte amizade (pelo menos de minha parte). Essa combinação de intensos desejos pela mesma serra, culminou no convite e planejamento para realizamos a tão sonhada Travessia Alpha X Ômega. Quero aproveitar esse momento para agradecer a Rogério e Douglas pelo convite – Obrigado irmãos de perrengue!

    Sovados pela indômita Farinha Seca, feita sob chuva fria e constante, estavam especialmente cuidadosos quanto ao tempo para a tentativa da AO. Devido a grande instabilidade do clima na serra, ficamos de olhos pregados na previsão ansiosos para uma janela minimamente estável para que pudéssemos realizar o feito tão almejado por todos. Teríamos ainda a companhia de Guilherme e Dindo, curitibanos, perrengueiros e que seriam nossos guias pois já haviam realizado a travessia outras vezes, e claro, a honrosa e ilustre presença feminina que não poderia faltar: Amanda, trekker muito forte que deixa muito “marmanjo” pra trás. Confesso que há horas em que tenho vontade de sussurrar para um ou outro trilheiro menos empenhado: “trilhe como uma menina!”, kkkk.


    Rumo ao Morro do Canal, início da travessia

    Partimos enlatados no baú de uma Fiorino em direção ao Morro do Canal, ponto de entrada da nossa travessia. Íamos empolgais, com muita alegria, risadas, as expectativas à flor da pele, naquela resenha pré-trip contagiante, em um trajeto de aproximadamente 1 hora. Chegamos pouco após as 4h30. Alguns grupos ali já se encontravam, e, enquanto ajeitávamos nossas cargueiras e corríamos as últimas verificações para iniciar a pernada, lembro-me de ter ouvido, à meia voz: “Eles vão fazer a Alpha- Ômega!”, “Quem sabe um dia a gente chega lá”. Essas palavras entraram em meus ouvidos como uma suplementação de coragem, determinação e principalmente gratidão. Gratidão por estar ali iniciando a concretização de um sonho, uma almejada travessia e o principal, com a melhores pessoas que poderia estar. Procuro palavras para descrever essa sensação indescritível, mas não encontro em meu limitado vocabulário.

    Malucos das Amantikir prontos para a jornada

    O começo - x - 1º dia

    Pouco antes das 5 da manhã já estávamos tocando pra cima, subindo as vias ferratas e os grampos no Morro do Canal, nosso primeiro cume a ser atingido, sem muitas dificuldades. Subíamos céleres, pilhados pela energia do iniciar de trilha. Ao chegar no ponto mais alto, somos brindados pela vista panorâmica de toda a iluminação da cidade de Curitiba, e a oeste, o avermelhar do astro rei já sinalizava o ensolarado dia que teríamos. . Encontramos alguns hikers no trajeto, pois tanto o Morro do Canal, quanto o Morro do Vigia e mesmo o Torre Amarela são bem frequentados em trilhas bate e volta. Há até uma pequena travessia ligando os três, programa de início para muitos trekkers. E por onde passávamos reparei o olhar dos trilheiros em nos ver com mochilas cargueiras, e não imagino o que se passava em suas mentes. Em determinado momento, Rogério perdeu a ponta de seu bastão e retornou para resgatá-lo, e após uns 15 minutos de espera Amanda sugeriu que fossemos busca-lo. Retornei e o encontrei aborrecido, pois além de não haver encontrado, estava a apanhar dos caminhos de rato que existiam na região de cume. Para não atrasar mais o grupo, ciente da extensão da pernada que faríamos naquele dia, decidiu dar por perdida a peça e retomamos em direção aos amigos. Quase chegando onde os havia deixado, plantado à beira do caminho como uma flor alienígena aquelas matas, estava a dita ponteira. Foi nítida a alegria da recuperação. Fosse mais romântico, diria que as montanhas nos brindará com bons auspícios, logo de entrada. Tocamos em frente, com passo forte e pouco tempo depois, com o sol nascendo, alcançamos o Morro do Vigia, local onde compartilhamos o cume com outro grupo para apreciar o nascente, em uma imagem única. Seguimos por uma trilha menos batida, em um cruzo descendo o Vigia, e logo percebemos que não era o trajeto mais tradicional, pois a vegetação logo se fechava, apesar de encontrar-se aqui e ali, árvores fitadas. Voltamos poucos minutos, em eficiente trabalho de equipe, testando os diversos rastros e logo encontramos a trilha correta, por onde prosseguimos sentido Ferradura. Logo a frente passamos também pelo cruzo sentido o Torre Amarela, mas esse não fazia parte do nosso roteiro e deixamos a trilha mais batida, por uma saída à direita e continuamos nossa pernada.

    Sol nascendo no Cume do Morro do Canal

    A partir de agora embrenhávamos de vez na parte intangível da Serra do Marumbi, rumo ao desconhecido, rumo as estórias e contos de tempos mais antigos, de grandes montanhistas paranaenses, desde acampamentos fantasmas, acidentes aéreos, resgates, infindáveis gretas, e todos os obstáculos que essas serras nos oferecem.

    Seu cume é coberto por vegetação arbustiva, impedindo de ter uma vista mais completa da Serra, assim como dos morros seguintes. O que se pode dizer é que há uma pequena abertura, um mirante onde conseguimos avistar os cumes já deixados para trás. Sem percalços com relação a navegação, seguimos rumo ao Morro do Carvalho.

    O que mais me ansiava à chegada do Carvalho era encontrar os antigos destroços do Avião da Sadia “Pelo número de vítimas, este acidente aéreo de 1967 é considerado o mais grave do Paraná. Foi com um avião da empresa Sadia, que matou 23 pessoas em 1967” https://jws.com.br/2021/03/memoria-acidente-deixa-23-mortos-na-serra-do-mar-em-1967/ logo em seu cume, em um cruzo a direita encontramos parte da turbina e da fuselagem do avião envolvido nesse trágico acidente. Não sei como você se comporta, caro leitor, em uma cena como essa, mas em minha fértil imaginação, as imagens de tudo que ali aconteceu criam um filme e um frenesi de sentimentos e emoções. Contam as histórias que foram muitos os que sobreviveram ao impacto do avião contra a montanha, mas que a mora no resgate, aliada à reduzida proteção contra as baixas temperaturas da madrugada, acabou por vitimar a quase todos por hipotermia. Salvo engano, foram apenas dois os sobreviventes resgatados. O cume do Carvalho, assim como o do Ferradura não proporciona uma visão desimpedida, por ser coberto de vegetação. E após uma breve resenha e registros fotográficos seguimos em direção ao Pico Sem Nome, mas não sem antes passar pelo Acampamento Fantasma.

    Destroços do Avião da Sadia

    Entre o Morro do Carvalho e o Pico sem Nome, em um cruzo logo à direita chegamos ao Acampamento Fantasma. Não sei se devido ao que já tinha lido, juntamente com a relato do acidente com o Avião da Sadia, percebia uma atmosfera meio que “pesada”, sendo mais uma sensação interior do que exterior, esse local transmite um clima de suspense, quase de terror, mesmo. No local: uma lona azul em forma de barraca aparenta ter pelo menos uns 20 anos, uma mochila pendurada em uma árvore e um par de botas, completam o cenário ideal para um filme “Sexta Feira 13” ou qualquer outro do gênero thriller. Não sei se há alguma relação desse acampamento com o acidente, mas deixo aqui o vídeo do experiente montanhista Júlio Fiori, um dos desbravadores daquela rota que discute com mais propriedade o que pode ter acontecido ali.

    https://www.youtube.com/watch?v=qYMCVvIh_xA

    Acampamento fantasma, entre o Ferradura e o Carvalho

    Seguimos rumo ao Cume do Pico Sem Nome, e devido aos percalços já citados anteriormente, e o tempo gasto nos registros fotográficos, estávamos atrasados com relação ao planejamento inicial, mas nada que tirasse nosso bom humor, parceria e prosseguíamos aproveitando ao máximo aquele momento único. Seguindo a frente, nossos guias locais Guilherme e Dindo, Amanda e eu mais atrás e fechando o time, Douglas e Rogério.

    Não diferente dos morros anteriores, o Sem Nome também não proporciona uma vista das melhores, sendo superado de forma rápida e quase despercebida rumo ao cume do Mesa. A partir daí a tarde já se aproximava, e até o momento, graças a forte chuvas de dias anteriores, não tivéramos dificuldades em encontrar água, e nossa hidratação estava garantida. O que preocupava era onde faríamos a pernoite, pois sabíamos dos fortes ventos que sacudiriam os cumes durante a madrugada, e encontrar um local escondido e muquiado nas infindáveis gretas e raízes que compõem o terreno acidentado da trilha era mais um desafio, visto o grande risco de queda de algum galho ou mesmo árvore devido a forte ventania.

    Por volta das 14 horas cumeamos o Mesa, e já no coração da Serra do Marumbi, longe de tudo e de todos, o caminho se tornava cada vez mais desafiador. A macega predominante do local se mostrava cada vez mais fechada, escadas de raízes contorcidas confundiam o caminho e gretas que chegavam até o núcleo do planeta estavam cada vez mais presentes em nosso trajeto. Nesse momento lembrei-me do vídeo do grupo paranaense “Nas nuvens montanhismo” que realizou tal feito em 2007 em um clima completamente adverso, e fiquei imaginando como era realizar essas expedições nos tempos do desbravar, quando o caminho sequer existia. Minha admiração por esses montanhistas só aumentou.

    A partir do Mesa, seguimos rumos ao conjunto Alvoradas, que são 4 e não saberei especificar exatamente a sequência dos que cumeamos e margeamos, mas com a chegada aos cumes com o cair da tarde, percebemos o vento cada vez mais gelado e forte, constatando a previsão de que a noite seria de intensa ventania, de forma que ratificamos o planejamento prévio de que nosso acampamento seria em local mais protegido, visando minimizar os riscos já citados anteriormente. Já caminhávamos desde as 4h30 com poucas pausas e já começávamos a sentir o cansaço em nossas carcaças. Pouco após as 16h deixávamos o conjunto Alvorada para trás e com os últimos raios de sol a vista, nos afundamos no vale entre Alvoradas e o Morro do Pelado, visualizando a esquerda os morros Chapéu e Chapeuzinho e a direita o imponente Espinhento, cujo nome dá uma ideia do que deve se passar para alcançar seu cume. Passamos por uma área de camping amplo e plano, mas a velocidade do vento nos impediria de montar as barracas e termos uma noite de descanso agradável. Agora nossa meta era encontrar um local menos desfavorável para que pudéssemos pelo menos descansar nossas carnes já baqueadas, mesmo que precisássemos avançar na escuridão da noite.

    Passando pela enconsta do Espinhento

    Foi um momento tenso, o sol já havia nos deixado, estávamos em algum lugar entre os Alvoradas e o Pelado, repleto de gretas, raízes, buracos e vegetação típica da região, tateando por algum lugar favorável para nosso pouso temporário. A fome de alimento quente já dominava, e refazer as reservas de sódio, carboidrato e proteína já se fazia mais que necessário. Por volta das 22 horas, nos deparamos com um conjunto de raízes mais plano, e não pensamos 2 vezes antes de descer a cargueira das costas e preparar para ficar por ali mesmo. O local não cabia mais que 2 barracas, e abrigados do vendo gelado, montei apenas o mosqueteiro da minha Cloud Up 1. Poucos metros a frente, Amanda e Rogério também já se aconchegavam em um bivaque adaptado, num trecho reto, mas inclinado. O restante do time, Douglas, Guilherme e Dindo, prosseguiram, pois, lembravam de uma gruta alguns minutos encosta acima, mas não tínhamos certeza de que caberíamos todos ali, e com a nossa área de acampamento quase pronta, a prudência se aliou à preguiça e venceu a votação entre refazermos as mochilas e tocarmos acima ou permanecermos onde estávamos.

    1º pernoite, por volta das 21h, quase nem energia.

    Pouco tempo depois Douglas retornou, em um gesto de amizade e companheirismo insistindo que subíssemos, pois, a área encontrada era espetacular mesmo, podendo mesmo ser chamada de “castelo”. Como nosso acampamento já estava arranjado, optamos por ficar ali mesmo.

    Não houve muito tempo para resenhas. Lembro do enxame de insetos que rodeavam meu rosto devido a luz da lanterna, muitos caiam sobre minha comida e pensei em ingeri-los também como proteína. O desgaste era tanto que não tive energias pra cozinhar o que realmente havia planejado, e minha alimentação não passou de um miojo com queijo, calabresa e bacon. Poucos minutos depois já estava deitado, e a cada rajada de vento sentia as raízes abaixo de me corpo se mexendo. Nesse momento sentia me parte da própria natureza. É como se nossa natureza humana se fundisse a natureza selvagem nos transformando em 1. Como se as raízes fosses as artérias daquela serra e a cada rajada de vento, me fazia sentir o pulsar do seu sangue. Combinamos de acordar às 4h para às 5h nos reencontrarmos com os companheiros hospedados no castelo acima. Foi tempo de colocar celular e relógio para carregar, emprestar um power bank para Amanda e adormecer. Isso era pouco após as 22h. Dormi como uma pedra, o sono dos justos e de consciência tranquila… ou dos triturados por 17 horas de sobe-e-desce de montanhas, com cargueira.

    2° Dia - 17 de julho de 2022

    Acordei assustado, perdido e sem saber onde estava, de onde estava vindo e para onde iria, com o Rogério arrumando as coisas e cantando nossa Alvorada. Conferi no celular que já passava das 4 da manhã e estávamos atrasados, pois ou o celular não me despertara ou por descuido meu, acabara esquecendo de regular o alarme. A escuridão predominava como antes e pus me ativamente ao processo de desmontagem/montagem dos equipamentos de pernoite. Pouco mais de 30 minutos já estávamos prontos para seguir rumo aos companheiros no abrigo acima. Fizemos uma rápida inspeção/vistoria cruzada nas áreas de pernoite, procurando garantir que não deixávamos marcas de nossa estadia ali, nem esquecíamos nada. Um rápido desjejum, talvez um pão frio com muçarela, ou um Todinho, não me recordo ao certo. Uma breve escovada na dentadura e pouco mais de 5 horas estávamos com a tropa reunida novamente. Fiquei perplexo ao ver o conforto ao qual nossos companheiros estavam, abrigados em uma espécie de gruta de pedras e em um terreno totalmente plano. Nem precisaram armar barraca, bivacaram. Por isso anteriormente chamei esse abrigo de castelo, pois nas condições em que nos encontrávamos, um local como esse faz jus a esse nome no quesito conforto. Estavam sossegados terminando seu desjejum.

    Fizemos uma breve pausa, e decidimos ir tocando enquanto terminavam sua alimentação, pois como são ligeiros, nos alcançariam rapidamente. Seguimos progredindo Amanda, Rogério e eu, subindo a encosta do Morro do Pelado, nosso próximo objetivo. Olhava atentamente o céu, que ameaçava clarear, mas algo parecia impedir. Com o avanço da altitude, a mata fechada aos poucos rareava nos apresentando campos de altitude com vegetação mais rasteira e densa. O clarear anódino da alvorada me preocupava, mas já sabíamos que o domingo seria de grande nebulosidade. Conforme íamos ganhando terreno, a imagem do dia ensolarado de sol azul anterior havia nos deixado, quando começamos a ouvir estranhos barulhos. Pedi a todos os deuses, exus e orixás, ou qualquer divindade que estivesse ali nos observando para que fosse apenas o ruído do vento, de algum avião ou coque de vagões de algum trem passado por ali? Perguntei ao Rogério se ele havia ouvido algo, na esperança de ser algum delírio meu, mas fui desenganado com a confirmação de sim. E sim, eram sons de trovão e relâmpagos, que felizmente estavam ao longe ainda e pareciam que não vinham (ao menos nesse momento) em nossa direção.

    Manhã nebulosa do 2º dia, rumo ao Pelado

    Ouvimos o alvoroço dos nossos companheiros chegando na sequência, e antes que nossos corpos pudessem esquentar já estávamos sendo encharcados por uma chuva matinal, não muito forte, mas que foi suficiente para molhar toda a vegetação que teríamos que encarar até o final da empreitada. E o vento não amainara, continuava forte e agora com a umidade do ar, frio e gelado, rasgando nossos corpos como navalha. Alcançamos o cume do Pelado já molhados, e matamos algum tempo ali, em meio a tremedeira um pouco abaixo na Asa do Avião da Sadia que por ali estava (Como assim?) Na época, na tentativa da retirada dos destroços do Avião da Sadia no Morro do Carvalho, a asa do avião se despendeu e por ali mesmo ficou, como um monumento para os que ali se aventuram. Muitos escritos na asa, e me impressionou um registro de 1994, imaginando as dificuldades que abrangia essa travessia na época, sem os recursos e mordomias de hoje. Visto que a chuva não cessaria, comentei com Rogério se não seria mais sensato, sábio e menos arriscado optarmos pela descida pela Free Way, visto que ali estaríamos muito expostos a uma possível tempestade com risco de relâmpagos e raios. Quando indagamos nosso guia Guilherme sobre essa possível possibilidade, ele a descartou curto e grosso: “Free way é pros Nutella”. OBS: free way é uma rota alternativa que desce direto para a estação Marumbi deixando passar pelos últimos Morros da travessia até a chegada ao Olimpo.

    Todos tremendo de frio tentado fazer a pose com a asa.

    O vento que nos castigava também empurrava a massa nebulosa para longe, e a esperança de que tivéssemos uma abertura de tempo ofuscava em nossos olhares preocupados. Seguimos progredindo a passos lentos, dessa vez com nossa farda de trilheiro molhada e úmida, rumo ao próximo morro da expedição, o Ângelo, mas não sem antes passar pelo vale que os divide. Diferente dos morros anteriores, a partir do Pelado conseguimos ter uma visão mais panorâmica de toda a Serra, os morros que já haviam ficado para trás, os que ainda nos aguardavam e uma visão 360, avistando toda a Serra do Ibitiraquire e Farinha Seca, como também Pico X, Torres de Prata e um infindável complexo de picos. Estávamos praticamente na metade do trajeto, ou pouco mais que a metade, e o encontro de uma fonte de água nesse vale nos fez reacender o ânimo e escalarmos o Ângelo em pouco tempo. Já era quase meio dia, e decidimos ali fazer uma parada mais demorada para recompor, hidratar e nos alimentar. Os Paranaenses sempre muito fartos, com hamburgueres, bolachas, macarrão e um banquete digno de restaurante. Rogério com vários doces e quitutes, e eu, sempre gosto de levar queijos gordurosos como provolone, paçocas e doce de banana.

    Subindo a encosta do Morro do Leão

    Revigorados, partimos como leões esfomeados para cume do Leão, o morro mais alto da Serra do Marumbi. As dificuldades se resumiam em caminhar com corpo todo molhado, até as botas “impermeáveis” não escaparam de tamanha umidade acumulada na vegetação que tínhamos que rasgar e vencer no peito. E como recompensa, a chegada ao cume do Morro Do Leão, começamos a ter a visão da minha apaixonada montanha, o Olimpo, ou Pico Marumbi, acenando ao longe, como se estivesse nos dizendo que o fim da nossa pernada estava cada vez mais perto (só que não). A nebulosidade estava mais amena e um esplêndido tapete de nuvens interligava um cume ao outro. A vontade era de chegar a esses cumes caminhando pelas nuvens, e agora, em pouco tempo, chegaríamos ao tão famigerado Marumbi. A partir do Leão a caminhada se torna mais técnica, há mais lajes rochosas a serem vencidas, algumas cordas e correntes presentes ali para auxiliar a transposição, e em pouco tempo já estávamos no cume do Boa Vista, e como o próprio nome já diz, na minha humilde opinião, é uma das vistas mais belas de toda a travessia, nos mostrando todo o trajeto já percorrido e ao lado, o estrondoso Pico Marumbi. Já dominados pela ansiedade da chegada, não gastamos muito tempo por ali e seguimos a Pedra da Lagartixa, como se fosse um ombro do Olimpo. Muito cuidado nesse trecho, não há caminho de trilha, somente umas canaletas nas rochas precisam ser vencidas com toda precaução, pois um pequeno deslize ali pode comprometer toda a expedição. Com parceria e ajudando uns aos outros, vencemos esses últimos obstáculos com excelência, e quando, aproximadamente às 17 horas do domingo dia 18 de julho de 2022, estávamos no Cume do Pico Marumbi vindos do Morro do Canal. Atrasáramos pouco em relação ao planejado na véspera, de cumear o Olimpo até as 16h, parte pelas paradas para fotografias e lanches, parte pelo despertar tardio. Dada a magnitude da empreitada, não estava mal.

    Trecho técnico, entre o Boa Vista, Pedra da Lagartixa e Pico Marumbi

    Meu sonho particular estava realizado, tinha estado ali, há menos de um mês e já havia previsto como seria essa chegada, em um dejavu, e um frenesi de emoções me dominavam. A principal? Gratidão. Ajoelhei-me e agradeci de todo coração, primeiramente a Deus pela segurança de nos proteger até ali, pelo apoio da minha família, por estar com pessoas sensacionais e maravilhosas ao meu lado, por ter saúde e disposição pra conseguir concluir a missão, e por inúmeras coisas que ficaria dias aqui relatando. Parabenizei todos companheiros que dividiram comigo esses sentimentos, em um abraço apertado. Deixamos nossos registros no livro de cume do Pico Marumbi, fizemos uma forte alimentação, rimos muito, alegria e felicidade afloradas. Agora “só” faltava a descida do Olimpo pela Via Passagem Noroeste ou Linha Vermelha. Mais 5 horas de descida e já estaríamos abrigados, no estacionamento do Macuco, onde nosso resgate nos aguardaria. A chuvisco diminuía e aumentava, e pouco mais das 17h30 demos início a última parte da lendária travessia.

    Registro no livro do Pico Marumbi

    Já não havia mais sol quando passamos pelo cume do Gigante e sem grandes dificuldades, logo já estávamos no cume do Ponta de Tigre. Até aí a trilha se mantém aberta sem nada técnico, como os grampos que ainda nos aguardavam. Na expectativa de chegar logo, e talvez uma possível investida no Pico Abrolhos, estava em um ritmo mais acelerado, descendo a esmo sem tomar o devido cuidado. O chuvisco engrossava e em pouco tempo se transformou em chuva, e nem a capa segurava a quantidade de água que caia sobre nós. Quando menos percebia, já havia distanciado dos companheiros, e com o corpo e mochila totalmente molhados, comecei a sentir forte tremedeira nos momentos que aguardava a chegada dos demais. Seguimos assim bom tempo, descendo as canaletas com nossas headlamps, debaixo de uma garoa forte, até chegar à gruta do Vale das Lágrimas. Prevemos que Rogério e Amanda chegariam ali com muito frio e uma possível hipotermia, e tratamos de fazer uma alimentação quente para ambos, uma sopa com muita sustância e aproveitamos também pra compartilhar os últimos alimentos que tínhamos ali. Também já sentia muito frio, e comecei a tremer de tal maneira que poucos minutos parados já me faziam bater os dentes. Infelizmente minha jornada com o grupo terminava ali, pois não aguentaria uma parada adicional. O Abrolhos já estava fora de questão. Rogério nos alertou que seguiriam em um ritmo mais lento pois Amanda havia deixado de colocar suas lentes de contato, e estava com dificuldades de enxergar. Atitude nobre, Rogério serviu de olhos para Amanda. Decidimos que desceríamos Guilherme, Dindo e eu, e Rogério e Douglas serviriam de apoio e olhos a Amanda. Tremendo muito, coloquei um adesivo de temperatura sobre meu umbigo, cobri com roupa úmida e descemos, com o objetivo de parar somente no estacionamento do Macuco, em nosso resgate.

    Vale das lágrimas, descida do Pico Marumbi pela Passagem Noroeste debaixo de chuva

    Você leitor que já fez o Pico Marumbi via Passagem Noroeste já imaginou descer ali de noite, debaixo de chuva e com o peso da mochila cargueira? Pois o que era pra ser o trecho mais tranquilo se tornou um verdadeiro desafio, as vias ferratas pareciam intermináveis, e com isso a disposição foi diminuindo, não sei se devido ao frio ou ao cansaço, e em determinados pontos já descia escorregando de esquibunda, e assim foi grande parte do trajeto, até a chegada a estação Marumbi onde passamos pouco mais das 21 horas, em silêncio, na ponta dos pés, para não sermos avistados. Confesso que foi um momento bem difícil, estava em estado de choque, traumatizado com o que fizemos, loucura? Não sei, aí fica a critério de cada um, mas sim, voz digo, uma aventura de respeito pra entrar no currículo de qualquer trilheiro.

    Pouco mais de 22h passávamos pela estação Eng. Lange, e as 23 horas, aportávamos no estacionamento do Macuco, onde nosso resgate nos aguardava.

    O que aconteceu com os que ficaram? Deixo aqui o trecho do relato do Rogério Alexandre, explicitando o ocorrido até a chegada:

    O martírio da descida (Por Rogério Alexandre Francisco)

    Por mais que a Amanda estivesse em boa forma física e descansada para a descida, a falta de visão lhe castigava a cada metro. Não, minto. A cada passo. Apesar da iluminação proporcionada pelas lanternas, ela basicamente tateava onde ia colocar os pés. Nas ferratas, eu descia um ou dois degraus à frente e guiava os pés dela em cada uma das passagens. “Dá esse pé… isso… agora esse… isso” foi a frase repetida milhares de vezes, acompanhada de pequenos tapinhas na panturrilha da perna a ser movida. Nos trechos planos eu fazia uma ida até o Douglas e voltava um pedaço para aguardar que ela conseguisse tatear a passagem e progredir.

    Numa dessas passagens, por sobre uma greta funda o bastante para machucar seriamente, os pés do Douglas falsearam e ele não despencou fenda adentro apenas pela mochila, que junto ao corpo, entalara na passagem e travara a queda. Com calma, mas célere, conferimos se a mochila estava firmemente presa a ele, e busquei puxa-lo pra fora, pela mochila, enquanto ele usava as pernas para aos poucos sair daquele buraco. Passado o susto com essa fenda, derradeiro susto desse tipo para o grupo (todos, em algum momento, com mais ou menos risco) caímos em fendas dessas. Para uns, a cama de raízes cedeu, outros escorregaram no passo, outros ainda descobriram que a rocha não estava tão firme quanto parecia… passos arriscados, felizmente, sem maior gravidade. Continuamos a descer, lentos, muito lentos, perdendo altitude até alcançarmos a última ferrata, curta, mas que exigia cuidados pela transição em ângulo, numa fenda. A partir dali os desafios passaram a ser os degraus de controle da erosão, onde o receio de uma torção ao final da caminhada tomava toda a consciência da Amanda. Nesse momento, o que se mostrou viável foi oferecer os ombros para que descesse de forma mais controlada, apontando o foco da minha lanterna em soma à dela. Com infinitos cuidados, fomos avançando até que às 02:00 passamos pela estação Marumbi e seguimos em frente para a estação Engenheiro Lange. Nesse momento, ao alcançarmos a linha férrea que existe entre essas duas estações, ficamos em dúvida quanto ao caminho certo, pois não lembramos de pronto dessa linha. Então após retornar um pouco ao longo dos trilhos sem identificar nada que me apontasse outro caminho, decidi que era por ali mesmo e, com uma certeza de que eu não dispunha, afiancei ao Douglas e à Amanda que certamente era por ali e seguimos, com cuidado pelas escorregadias pedras limosas desse trecho, que já haviam causado duas quedas ao Douglas.

    Chegamos à estação Engenheiro Lange às 02:30 e dali apertamos o passo, pois como a estrada era menos irregular a Amanda conseguia andar melhor, e em pouco menos de 40 minutos, chegamos ao ponto de resgate (03:10), onde nossos colegas nos esperavam, dois dormindo mal na caçamba do saveiro (Guilherme e Dindo), outro dormitando sentado (Rafael), que pescava na cadeira ao lado do carro. Saberíamos depois, que caso não chegássemos com o nascer do dia, eles subiriam em nossa busca. Esse tipo de companheiro vale ouro e reitero as loas que já teci em agradecimento. Rapidamente, nos ajeitamos como possível na traseira e tocamos para o café da manhã. Finalmente, a provação daquela pernada estava superada.

    Rafael Soares
    Rafael Soares

    Published on 09/27/2022 09:23

    Performed from 07/16/2022 to 07/18/2022

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    Trilha muito legal, desafiadora física e tecnicamente. Parabéns!!!

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    e relato leve, detalhado, gostoso de ler. Transmite as emoções que vivemos ali, de forma honesta e sincera. Quanto a minha revisão, devo elucidar que foi de forma e não de conteúdo, que já estava brilhante antes.

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    Rafael Soares

    Rafael Soares

    Taboão da Serra SP

    Rox
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    Conectado com a natureza de todas as formas

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