Por: Sandro Gavião
...”Tinha uma parte de mim completamente apavorada e desesperada, que pensava que: VOCÊ VAI MORRER! VOCÊ VAI MORRER! Mas a outra parte acostumada a enfrentar problemas em alto-mar dizia: CALA A BOCA. Essas duas vozes me acompanhavam o tempo todo”…
A mente do americano Steve Callahan era um turbilhão de emoções turbinado pela adrenalina injetada em suas veias naquela miserável noite de janeiro de 1982.
Callahan é filosofo, mas logo percebeu que sua verdadeira paixão estava em alto-mar. O que o fez se graduar em seguida em arquitetura naval.
Em 1981, no alto de seus 30 anos, o já experiente navegador partiu de Newport, Rhode Island, Estados Unidos com o Napoleon Solo, (que também é o nome de um personagem de um programa de TV dos anos 60, The Man From UN.C.L.E), um barco a velas de 6,5 metros de comprimento construído por ele. O destino era as Bermudas e depois cruzaria o atlântico sentido a Inglaterra.
Alguns meses mais tarde, ele parte da Cornualha no sudoeste inglês rumo a ilha Antígua, no mar do Caribe. O intuito era participar da corrida de velas individual Mini Transat 6.50 de Penzance. Porem quando chega em La Coruña, na Espanha o mau tempo o faz mudar de ideia. O clima já havia afundado alguns barcos que participariam da corrida.
Em 29 de janeiro de 1982, após fazer alguns reparos no Napoleon Solo, Steven Callahan parte de El Hierro, na Ilhas Canárias com destino a Antígua. Quando já estava a 7 dias em alto-mar, Callahan se viu em meio a uma grande tempestade.
“Nessa noite os ventos foram ficando cada vez mais fortes. Eu finalmente consegui deitar para dormir um pouco, cerca de 1 hora depois eu senti um forte estrondo na lateral do barco, um tremendo barulho, de repente começou a entrar muita água, um jorro de água, tipo um hidrante. Achei que barco estivesse afundando de vez, mas por sorte o vento e os movimentos das ondas estavam mantendo o barco na superfície, a parte da frente estava toda pra dentro da água, mas a de trás estava pra fora, isso me deu a chance de sair do barco.”
“Subi ao convés, inflei o bote salva vidas, coloquei no mar, ao lado do barco e entrei nele. Percebi que o barco não ia afundar de uma vez. Sabia que estava no meio do oceano e as chances de eu sobreviver com as coisas que estavam no bote eram mínimas. Puxei a corda que me prendia ao barco, subi a bordo e mergulhei na cabine.
Estava completamente escuro, eu ficava nadando e tateando as coisas. Achei um kit de emergência, um travesseiro e um saco de dormir, não era muito, mas foi o que consegui encontrar no meio daquele temporal com o barco sendo chacoalhado e açoitado pelos ventos. Quando voltei para o bote estava completamente exausto”.
Ao amanhecer, sua criação, o Napoleon Solo já estava quase completamente submerso abandonando seu criador em alto-mar com sua própria sorte.
“Até achei que poderia tirar a água do barco quando amanhecesse, mas depois de uma forte onda percebi uma relativa calma e quando olhei, vi que estava a deriva, me distanciando do barco”.
Steven Callahan, reproduzindo seus dias à deriva
“E agora? Todas as regras de uma vida normal não existiam mais. É uma sensação avassaladora. E você sabe que muitas pessoas sobrevivem ao impacto inicial, lidam com as primeiras ameaças de uma crise, mas morrem depois. Tinha uma parte de mim completamente apavorada e desesperada, que pensava que: VOCÊ VAI MORRER! VOCÊ VAI MORRER! Mas a outra parte acostumada a enfrentar problemas em alto-mar dizia: CALA A BOCA. Essas duas vozes me acompanhavam o tempo todo”.
Nos anos 80 Steven Callahan já escrevia matérias para a impressa especializada sobre o mundo em alto-mar. Se tornou editor das revistas Sail and Sailor e Crusing World.
Sua vida profissional decolava, mas, por outro lado, ele via a pessoal afundar.
A angustia de um divórcio foi o motor que impulsionou o velejador a viajar o mundo com seu barco.
“Comecei a rever minha vida. Como fui teimoso com os erros que cometi, as pessoas que decepcionei.
Sempre fui ruim com relações pessoais, em ganhar dinheiro. Eu estava me punindo. E ao mesmo tempo pensado como vou sobreviver no oceano, que ironicamente é o maior deserto do mundo”.
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Uma Corrente Equatorial Sul e os ventos alísios levavam o bote salva vidas de Callahan sentido oeste. A deriva, sua esperança era que alguém captasse o sinal que ele enviava de um EPIRB – Radio Beacon Indicador de Posição de Emergência. Mas, naquela época havia uma baixa cobertura de satélites e ele estava em uma parte tão remota do oceano que o sinal não chegava a lugar algum. Ninguém ouvia seus gritos virtuais de socorro.
Os sinalizadores lançados também não foram vistos pelos 9 navios que cruzaram o seu caminho.
Ele era experiente, por isso sabia que seu resgate não seria fácil.
“No início, me manter aquecido foi o maior desafio, perincipalmente a noite e principalmente por estar molhado a metade do tempo. Ventava muito, você pode morrer de hipotermia em questão de minutos ou horas.
Callahan, na medida do possível, se exercitava, tentava ocupar a mente contra pensamentos mórbidos, criou uma rotina de tarefas e documentou tudo.
Mas a principal tarefa diária era conseguir comida e água.
“Algas e cracas começaram a se prender no bote, isso atraia peixes menores, que por sua vez atraia peixes maiores. Por sorte eu consegui recuperar do barco uma espingarda de arpão, mas era praticamente um brinquedo. Era muito difícil pegar algum peixe. Foi só no 14º dia que eu consegui pegar um.
“Depois de 2 semanas eu estava faminto. Os peixes cru eram uma delicia, mas aos poucos comecei a ter menos interesse pela carne e mais pelas partes mais gosmentas. Os olhos eram como duas bolinhas de fluídos. Coração, ovas, figado… Até mesmo o conteúdo estomacal. Dourados comem outros peixes e muitas vezes eles estavam semidigeridos em seus estômagos. Eu dizia: Oba, Picles!
Acho que o meu corpo sabia que essas coisas eram essenciais para minha sobrevivência suprindo minerais e vitaminas que eu não tinha outra maneira de conseguir. Mas mesmo assim eu não estava ingerindo nutrientes suficientes, eu perdi um terço do meu peso, praticamente toda a parte de baixo do meu corpo”.
O dourado do mar, companheiro e alimento de Steven nesses 76 dias
Steven Callahan após 76 dias à deriva
“Depois tem a sede. Você consegue viver até 10 dias sem água, se tiver sorte.
Tive muitos problemas para conseguir água porque chovia muito pouco. Eu dependia dos purificadores de água que estavam no kit de emergência. São estruturas parecidas com balões, você poem água dentro o calor faz a água evaporar e esse vapor vira a água que você bebe. Levou um bom tempo para eu aprender como eles funcionam e produzir meio litro de água por dia”.
O sol só não foi mais implacável com a situação de Callahan por causa da cobertura, tipo barraca, de seu bote salva vidas.
Ele orientou sua navegação, se é que podemos chamar assim, construindo um sextante com lapis que ele conseguiu resgatar do barco. Usando a Estrela do Norte como referência ele consegui ao menos saber sua posição e para onde estava indo.
Mas um apaixonado pelo mar e pela vida conseguiu muitos momentos de paz para contemplar o quão espetacular era tudo aquilo ao seu redor.
“Eu estava mais distante da humanidade que um astronauta em órbita ao redor do planeta. É uma grande sensação, o passado e o futuro não significam nada. Você fica totalmente focado no agora”.
“Em um bote você passa a observar tudo. Foi incrível observar a evolução do eco sistema ao redor do barco. Os peixes, dourados do mar, além de me alimentar me faziam companhia. Comecei a identificar cada um deles, pelas cores, cicatrizes ou até como se comportavam. Havia um macho bem grande que sempre aparecia e ficava brincando, batendo no bote.
A noite o céu estrelado refletia na água e você tem a sensação de flutuar no céu”.
“E tem a bioluminescência natural, parece milhões de vaga-lumes, tudo brilha. Um golfinho passa e você vê seu contorno em um longo rastro de luzes, é a coisa mais linda que você pode imaginar. Eu acordava a noite, olhava para fora e via uns 50 dourados ao redor do bote, como bandejas de prata flutuando lentamente no oceano.
As vezes eu via uma barbatana ou um rabo de tubarão, mas até mesmo essas experiências eram preciosas para mim”.
A bioluminescência em alto-mar
“No 43º aconteceu um desastre. Um dourado quebrou a haste do arpão deu a volta no bote e bateu com a ponta do arpão na lateral do bote e abriu um buraco do tamanho de uma boca. E água começou a entrar. Naquele momento eu já estava com as mãos cheias de feridas por causa da longa exposição a água salgada do mar.
Já estava difícil pescar e produzir água potável, mas, mesmo assim, passei 10 dias fazendo remendos no bote. O remendo abria frenquentemente, precisava arranjar um jeito de fechar esse furo definitivamente. Mas não conseguia pensar em nada, depois de 10 dias estava desesperado. E para piorar um tubarão circulava o bote já fazia alguns dias.
Pensei em desistir. Precisei me dar uns tapas. Acorde! Parei de pensar no que as coisas são feitas para fazer e passei a pensar no que elas podem fazer. Então me lembrei de um garfo de escoteiro que estava guardado. Usei para prender o remendo. Dobrei o remendo para dentro, juntei as partes com as pontas do garfo pra fechar o buraco”.
“De repente começaram a surgir pássaros diferentes e então eu vi uma ilha, era A ilha Maria Galante, do arquipélago de Guadalupe, estava a uns 10 quilômetros de distância, mas identifiquei as casas na praia. Mas também notei que havia um recife de corais pela frente bem perigoso. Mais perigoso ainda era tentar chegar pelo outro lado, pois toda a força do mar batia contra pedras e falésias. Será que depois de tudo que eu passei encontraria a morte na chegada a terra?”
“Minha salvação foram os dourados do mar e todo o eco sistema ao redor do meu bote. Os peixes atraiam uma grande quantidade de pássaros, que atraiu a atenção de pescadores animados com a possibilidade de um dia bom de pesca. Eles vieram e encontraram além de peixes essa ilha flutuante que ficou vagando em alto-mar por 2 meses e meio”.
“Foi uma festa de emoções, tudo muito intenso. Chegar a praia foi realmente como renascer. Me alegrava com coisas simples e banais. Uma cor que eu não via a muito tempo. Vermelho, Nossa! Que lindo! Ou as vozes humanas. Quando ouvi alguém cantando foi como se estivesse no céu. Foi especial”.
Quando Steve Callahan foi resgatado, no 76º dia, estava em grave estado de desnutrição, ao ponto de não conseguir ficar em pé. Feridas causadas pela água salgada se espalharam por todo corpo, passou hospitalizado semanas até se recuperar.
Toda a saga destes 76 dias de solidão em alto-mar foi narrada em seu livro, “À Deriva” que ficou 36 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times.
Entre palestras e incontáveis entrevistas, Callahan foi o consultor de Ang Lee em seu premiado filme As Aventuras de Pi.
“Penso nessa experiência todos os dias e sou muito grato por ter passado por tudo isso. Isso mostrou mais sobre mim que eu jamais saberia, principalmente que somos mais fortes e resilientes que imaginamos.
Sou bastante grato por tudo. Mas foi um inferno”.
que história! vou colocar esse livro na minha lista para futuras leituras. valeu, Alma Outdoor !!