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O MONTANHISMO E A CIÊNCIA CIDADÃ

    Como atividades relacionadas ao montanhismo podem auxiliar no mapeamento da biodiversidade por meio de plataformas de ciência cidadã.

    André Deberdt
    24/11/2024 10:25

    Floração de sempre-vivas (Actinocephalus sp) no interior do Parque Nacional da Serra do Cipó.

    A Cordilheira do Espinhaço é um importante acidente geográfico, formado predominantemente por rochas quartzíticas, que se estende da macrorregião sul de Belo Horizonte, até o norte da Bahia. Apresenta um relevo acidentado, com altitudes geralmente superiores a 1.000m, sendo o Pico do Sol (2.072m), o Pico Inficionado (2.068m), ambos na Serra do Caraça, e o Pico do Itambé (2.052m), situado entre os municípios mineiros de Serro e Santo Antônio do Itambé, os pontos de maiores altitudes em Minas Gerais, neste caso, considerando os limites da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço. Por suas características climáticas, geológicas e ao seu isolamento, apresenta um elevado grau de endemismo da flora, onde se destacam as “sempre-vivas” (Eriocaulaceae), as canelas-de-ema (Velloziaceae), as bromélias (Bromeliaceae) e as orquídeas (Orchidaceae).

    A Serra do Caraça, situada na porção sul da Cadeia do Espinhaço, região conhecida como Quadrilátero Ferrífero, abriga algumas das mais altas montanhas de Minas Gerais, com altitudes que superam os 2.000m. Os cumes destas montanhas, visitados por religiosos e naturalistas desde o século XVIII e por montanhistas em tempos mais recentes, ainda abrigam diversas espécies endêmicas, raras e ameaçadas da flora, adaptadas ao microclima e às condições limitantes deste tipo de ambiente montano, muitas delas, fora do alcance da maioria dos pesquisadores.

    Somente em 1998 o biólogo (e montanhista não assumido), Marcelo Ferreira de Vasconcelos, realizou coletas nestes locais, em altitudes superiores a 1.800m, ocasião em que teve a felicidade de redescobrir a licopodiácea Phlegmariurus ruber, espécie facilmente identificada pelas suas folhas e caules de coloração vermelha, até então considerada como provavelmente extinta, devido à sua restrita área de distribuição e à falta de coletas recentes[1]. Junto com ela, outras novas espécies também foram coletadas e descritas posteriormente, boa parte restrita aos cumes de montanhas, dentre elas uma bromélia que recebeu o nome do seu coletor, Vriesea marceloi.

    Exemplar de Phlegmariurus ruber, espécie categorizada como Criticamente em Perigo, que só ocorre em alguns cumes da Serra do Caraça, em altitudes superiores a 1.700m.

    Um artigo publicado por Madeira, et al. (2009)[2], trouxe um diagnóstico da distribuição espacial do esforço de pesquisa biológica na região abrangida pelo Parque Nacional da Serra do Cipó, situado no Espinhaço Meridional, com base na bibliografia existente. O estudo corroborou uma tendência já verificada em outras unidades de conservação: que a coleta de material biológico ocorre em locais de acesso relativamente mais fácil, normalmente na proximidade de estradas ou trilhas bem marcadas. No caso específico da Serra do Cipó, foi evidenciada uma concentração das coletas nas proximidades da rodovia MG-010. Cerca de 75% dos registros foram obtidos próximo a estradas, enquanto apenas cerca de 17% foram obtidos no interior do Parque Nacional. Destes últimos, grande parte provém das proximidades das sedes administrativas.

    Não é, de forma alguma, intensão deste texto passar a ideia de pesquisadores acomodados ou preguiçosos. Em muitas ocasiões, o deslocamento até as unidades de conservação já requer um grande investimento em tempo, dinheiro e energia. Ao chegar no local, pensar em se embrenhar por áreas remotas e ermas, nem sempre é viável, o que motiva muitos pesquisadores a otimizarem a logística para suas coletas, que acabam sendo realizadas de forma pontual ou em áreas mais próximas e acessíveis.

    Por outro lado, é cada vez maior o número de pessoas que se aventuram nos cumes e regiões mais intocadas, porém, a grande maioria sem o conhecimento necessário para distinguir uma espécie rara da flora ou da fauna em meio a tantas outras semelhantes. Neste sentido, podemos presumir que, até pouco tempo, era mais fácil um pesquisador, com anos de experiência acadêmica, tornar-se um montanhista, e não o contrário, já que ambos compartilham um sentimento em comum: a paixão pelo ambiente natural, suas paisagens e sua biodiversidade.

    Aula de campo em um curso de montanhismo: pesquisador trazendo aos futuros montanhistas informações sobre a riqueza de espécies da Cadeia do Espinhaço. Na foto um exemplar de Heterocoma albida, categorizada como Criticamente em Perigo, com ocorrência restrita à Serra do Caraça.

    Hoje em dia este cenário mudou graças à Ciência Cidadã, que consiste em uma parceria entre observadores da natureza e cientistas na coleta de dados, utilizando metodologias participativas, onde qualquer pessoa em qualquer lugar, pode submeter as suas informações por meio de aplicativos de celulares ou ferramentas similares.

    As plataformas de ciência cidadã crescem exponencialmente tanto em registros de biodiversidade quanto em participantes, muitos dos quais, encontram nelas sua única forma de inclusão científica. Quem aqui nunca fotografou plantas e animais ao longo de uma trilha, sem ter a mínima ideia de qual espécie se trata e se ela é comum ou rara?

    Uma das plataformas mais utilizadas é a iNaturalist[3], uma rede social formada por observadores da natureza e cientistas, voltada para o mapeamento da biodiversidade, que pode ser utilizada por meio de um celular, tablet ou no computador. Ela também abrange projetos específicos, como o “Biodiversidade do Espinhaço Mineiro”, criado no âmbito do Plano de Ação para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção do Espinhaço Mineiro (PAT Espinhaço Mineiro)[4], parte integrante do Programa Nacional para a Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (Pró-Espécies), cujo objetivo é reunir registros da biodiversidade da Cadeia do Espinhaço. A trilha Transespinhaço também faz parte desta iniciativa, deixando claro o entendimento da importância das trilhas de longo curso como ferramenta de conservação, exercendo importante papel na conectividade de áreas protegidas.

    A divulgação e o incentivo ao uso responsável das plataformas de ciência cidadã é muito importante e contribui para o aumento do conhecimento de nossa biodiversidade, seja por parte do público leigo ou pelos pesquisadores, que passam a ter um melhor entendimento da distribuição geográfica de diversas espécies da fauna e da flora. Para nós montanhistas, a possibilidade de encontrar espécies ainda pouco conhecidas em locais mais isolados e de difícil acesso se torna um prêmio extra para além do alcance dos cumes das montanhas.

    Campos rupestres nas proximidades do Morro do Doutor, no Parque Nacional da Serra do Cipó.

    Fomentar o uso público de nossas unidades de conservação por meio de atividades que possibilitam um contato mais responsável e menos impactante com o ambiente natural é, sem dúvida, uma das formas mais eficazes e baratas de promover a conservação. Além de despertar nas pessoas um vínculo afetivo e uma sensação de pertencimento com os locais visitados, também contribui para o incremento do conhecimento sobre a rica biodiversidade, além de inibir atos ilícitos que a ameaça.

    [1] VASCONCELOS, M. F.; SALINO, A.; VIEIRA, M. V. O. A redescoberta de Huperzia rubra (Cham.) Trevisan (Lycopodiaceae) e o seu atual estado de conservação nas altas montanhas do sul da Cadeia do Espinhaço, Minas Gerais. Unimontes Científica, v. 3, n. 3, p. 45-50, 2002. https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/unicientifica/article/download/2652/2645

    [2] MADEIRA, J. A. et al. Distribuição espacial do esforço de pesquisa biológica na Serra do Cipó, Minas Gerais: subsídios ao manejo das unidades de conservação da região. Megadiversidade, v. 4, n. 1-2, p. 255-269, 2008.

    [3] iNaturalist: https://www.inaturalist.org/

    [4] Biodiversidade do Espinhaço Mineiro: https://proespecies.eco.br/wp-content/uploads/2024/08/Guia-Ciencia-Cidada-Espinhaco-Mineiro.pdf


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    André Deberdt

    André Deberdt

    Belo Horizonte - MG

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    Biólogo e montanhista filiado ao Centro Excursionista Mineiro.

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