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PICO DO SOL. SERÁ MESMO O MAIS ALTO DA CADEIA DO ESPINHAÇO?

    Informações e curiosidades sobre um dos picos mais desafiadores da Serra do Caraça, em MG.

    André Deberdt
    10/07/2024 08:49

    Cume do Pico do Sol (2.072m), em uma ascensão realizada no dia 04/07/2024.

    O pico mais alto da Cadeia do Espinhaço?

    Se perguntarem a um geólogo qual o pico mais elevado da Cadeia do Espinhaço, ele certamente dirá que é o Pico do Itambé, com 2.052m, entre os municípios mineiros do Serro e de Santo Antônio do Itambé. Mas e o Pico do Sol, na Serra do Caraça, com 2.072m?

    Sob o ponto de vista geológico, a Serra do Caraça faz parte da unidade estratigráfica do Supergrupo Minas, que compõem o Quadrilátero Ferrífero, juntamente com as rochas do Supergrupo Rio das Velhas. Já a Cadeia do Espinhaço, faz parte da unidade estratigráfica Supergrupo Espinhaço, cujo limite meridional pode ser entendido como sendo a Serra das Cambotas, no município de Barão de Cocais. Portanto, o Pico do Sol, ponto mais elevado da Serra do Caraça, não faz parte do Espinhaço sob a ótica da geologia.

    Porém, em um contexto mais amplo, ou como diria o professor Bernardo Gontijo[1], adotando uma abordagem ecogeográfica, que leva em consideração, além de elementos físicos, a biota e até mesmo as intervenções humanas, os limites podem ser ampliados, conforme adotado pela UNESCO na criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, que abrange também o Quadrilátero Ferrífero e a Serra do Caraça. Se adotarmos este conceito, aí sim, o Pico do Sol passa a ser o ponto mais elevado da Cadeia do Espinhaço.

    O Pico do Sol é um dos mais cobiçados na RPPN Santuário do Caraça. Percorrer os aparentemente curtos 6,5 km até o seu cume exige preparo físico e boa disposição, em uma sucessão de subidas íngremes, trepa pedra e escalaminhadas. Mesmo quem está habituado a caminhar, pode acabar sentindo dor na musculatura dos quadríceps, muitas vezes com fortes câimbras, durante e após a ascensão. Mas o esforço é recompensado.

    Uma publicação de 1908 do naturalista Álvaro Astolfo da Silveira[2] traz uma explicação para a origem do nome desta montanha:

    O nome daquele morro é devido ao facto de se avistarem, à tarde, no seu cume, ainda raios de sol, quando os das serras visíveis no horizonte do Caraça já se acham mergulhados em sombra.”

    O Padre Sarneel, em seu livro "Guia Sentimental do Caraça", de 1953, corrobora tal afirmação:

    "Quando o sol vai sumindo no horizonte oposto e todas as serras já estão revestidas das primeiras sombras da noite, quando a própria Carapuça não mais recebe um pingo de luz, o Pico do Sol ainda brilha alguns instantes, cobrindo seu topo de um capacete de ouro..."

    Ascensão ao cume do Pico do Sol

    Partindo do estacionamento do Santuário do Caraça pelo acesso que leva à Cascatinha, deve-se tomar um desvio à esquerda, após o quiosque. Logo de cara, duas escalaminhadas curtas em paredões de rocha que, além de servirem como aquecimento, são um indicativo aos mais incautos do que está por vir. Depois de cruzar a parte alta da Cascatinha, é necessário passar por um trecho de mata que nos leva à primeira etapa da serra a ser galgada, em uma sucessão de lances íngremes e exaustivos, com alguns poucos e curtos trechos mais planos em meio à vegetação arbustiva, até uma passagem na rocha conhecida como “Portal”, que marca a entrada no primeiro altiplano, entre as cotas 1.700m e 1.900m. Curiosamente, há uma imagem de um círculo branco com uma forma amorfa em seu interior, estampada na grande rocha da direita, que traz um certo componente místico para este local.

    A partir daí a fitofisionomia muda, com o predomínio de moitas de bambuzinho (Chusquea pinifolia), touceiras de capim típicos de brejos e campos de altitude (Machaerina ensifolia e Cortaderia modesta), além de extensos lajeados recobertos por variedades de canelas-de-ema (Vellozia spp) e de bromélias.

    Trata-se de uma região de rara beleza cênica e florística, e uma das poucas oportunidades em que é possível contemplar paisagens de campos rupestres e campos de altitude em um mesmo local, conforme detalhado pelo ilustre biólogo “caracense” Marcelo Vasconcelos, em um artigo que trata da vegetação nos topos de montanha do leste do Brasil[3].

    Neste local o também biólogo e atual coordenador ambiental da RPPN Santuário do Caraça, Douglas Henrique Silva, registrou em uma pequena lagoa de altitude, exemplares da serpente Ptychophis flavovirgatus, que até então só ocorria em áreas montanhosas do sul do Brasil, até o município de Estiva, em Minas Gerais. O registro da espécie para a RPPN Santuário do Caraça amplia sua distribuição em 200km na direção norte, representando o registro mais setentrional da espécie e primeiro para a Cadeia do Espinhaço[4].

    Campos de altitude cercados por campos rupestres, em uma rara combinação de fitofisionomias montanas. Ao fundo, o Pico do Sol (em 04/07/2024).

    A caminhada se torna um pouco menos exaustiva, com uma maior extensão da trilha em relevo menos íngreme. A primeira parada costuma ser feita em um córrego, em meio a belíssimas formações rupestres, com projeções de rocha em variadas formas e tamanhos. Neste local também está outro ponto de referência importante, caracterizado por uma fenda com cerca de 15 metros de profundidade e pouco menos de um metro de largura, que corta a trilha. Hora de encher os recipientes de água e respirar um pouco.

    A partir deste ponto existem dois caminhos possíveis: há aqueles que preferem subir pelo córrego, por um pequeno cânion, num trecho bastante acidentado em meio às rochas. Outra opção é seguir um pouco mais pela direita e galgar até um extenso lajeado, onde não há uma trilha delimitada, apenas alguns poucos e esparsos totens de pedra, mas o rumo a ser tomado é facilmente perceptível por orientação visual. Muita gente sobe pelo leito do córrego e desce pelo lajeado na volta. Os dois caminhos se encontram cerca de 400m à frente.

    Depois de cruzar mais alguns campos e brejos de altitude e lajeados menores, com trilha bem marcada ao longo de praticamente todo o trajeto, chega-se finalmente à “Concha”, uma projeção de rocha utilizada como abrigo na época em que era permitido acampar nestas montanhas, prática proibida desde 2015 devido a sucessivos incêndios decorrentes de fogueiras. É o local ideal para descansar à sombra e comer algo. Próximo a ele, também há um córrego onde é possível obter água.

    Em seguida, tem início o ataque final ao cume, por um trecho bastante íngreme, porém relativamente curto. Uma laje inclinada de rocha representa o “crux” da ascensão, especialmente se estiver molhada, exigindo um pouco mais de atenção. Finalmente chega-se a um extenso platô repleto de canelas-de-ema (Vellozia spp) e bromélias, que leva ao cume, que, até há pouco tempo, ainda era marcado por uma cruz de madeira com uma bromélia endêmica da Serra do Caraça (Vriesea marceloi) ao lado. Infelizmente não estão mais lá.

    No acesso final ao cume também é possível observar alguns exemplares de uma planta rara, endêmica e ameaçada de extinção, que foi dada como extinta durante muitos anos, em mais uma curiosidade botânica: no dia 10 de abril de 1998, o biólogo Marcelo Vasconcelos encontrou alguns indivíduos de Phlegmariurus ruber no caminho para o Pico do Sol (2.072m), em ambiente de campo rupestre, porém, em cotas altimétricas inferiores à do cume, variando entre 1.800 e 1.900m[5]. Na ocasião, a justificativa para a ausência de exemplares no cume teria sido um forte incêndio ocorrido sete meses antes, em setembro de 1997, que descaracterizou totalmente a vegetação deste local. Mais recentemente, em um projeto de pesquisa que mapeia as populações remanescentes desta planta na Serra do Caraça, foram registrados 13 exemplares no caminho do platô até o cume.

    A partir de alguns pontos próximos ao cume é possível avistar diversos outros picos existentes na face leste do maciço do Caraça, dentre eles o inconfundível Agulhinha de Catas Altas (também conhecido como Pico dos Horizontes ou Pico Catas Altas), o Tamanduá e o Baiano. O Pico Carapuça, um pouco mais ao norte, é visível praticamente ao longo de todo o trajeto, assim como os demais picos (Canjerana, Inficionado, Verruguinha, Trindade, Conceição, Piçarrão e Casa Nova), um pouco mais ao longe.

    A permanência no cume do Pico do Sol não pode ser muito longa, uma vez que a descida, apesar de mais rápida, pode ser bastante exaustiva, principalmente após o Portal, em um trecho íngreme e interminável. Com um pouco de tempo extra, ainda é possível aproveitar o belo visual da borda infinita da parte alta da Cascatinha, próximo ao final da aventura.

    Cabe lembrar que o Santuário do Caraça possui regras para visitação. A ascensão aos picos deve ser feita com o acompanhamento de um guia / condutor, em grupos de até 10 pessoas. Os pernoites nos cumes não são mais permitidos, como forma de preservar a fauna e flora endêmica existente nestes locais e evitar incêndios decorrentes do descuido de pessoas que insistem em fazer fogueiras, como já ocorreu em ocasiões passadas. De outubro a março, o acesso aos cumes costuma ser proibido, devido ao risco de chuva forte e raios.

    Apesar das regras e limitações de acesso, subir o Pico do Sol ainda é uma aventura recompensadora, principalmente para quem já teve a oportunidade de explorar os demais picos da Serra do Caraça e busca um desafio maior. Afinal, é ou não é a montanha mais elevada da Cadeia do Espinhaço?

    [1] GONTIJO, Bernardo Machado. Uma geografia para a Cadeia do Espinhaço. Megadiversidade, v. 4, n. 1-2, p. 7-14, 2008. Disponível em https://www.conservation.org/docs/default-source/brasil/megadiversidade_espinhaco.pdf Acesso em 09/04/2024.

    [2] SILVEIRA, Álvaro Astolfo da. Na região do Caraça. Revista do Archivo Público Mineiro, capítulo III, p. 622. 1908. Disponível em http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/1525.pdf Acesso em 09/07/2024.

    [3] VASCONCELOS, Marcelo Ferreira de. O que são campos rupestres e campos de altitude nos topos de montanha do Leste do Brasil?. Brazilian Journal of Botany, v. 34, p. 241-246, 2011. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbb/a/NtJHnxHwwzyDGsFrcjCWPwk/ Acesso em 09/07/2024.

    [4] SILVA, Douglas Henrique. Anfíbios e répteis de altitude da Reserva Particular do Patrimônio Natural Santuário do Caraça, Catas Altas, Minas Gerais, Brasil. 2017. Disponível em https://www.locus.ufv.br/handle/123456789/20583 Acesso em 09/07/2024.

    [5] VASCONCELOS, M. F.; SALINO, A.; VIEIRA, M. V. O. A redescoberta de Huperzia rubra (Cham.) Trevisan (Lycopodiaceae) e o seu atual estado de conservação nas altas montanhas do sul da Cadeia do Espinhaço, Minas Gerais. Unimontes Científica, v. 3, n. 3, p. 45-50, 2002. Disponível em https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/unicientifica/article/download/2652/2645 Acesso em 09/07/2024.

    Trecho inicial da ascensão, com muita subida íngreme até o primeiro platô da serra (em 04/07/2024).

    Belas paisagens compensam o esforço. Ao fundo os picos Trindade (1.910m) e Conceição (1.803m). À esquerda e bem ao fundo o Piçarrão (1.839m) (em 04/07/2024).

    Próximo ao "Portal", que marca a entrada no primeiro altiplano. "Fardado", nosso colega biólogo Marcelo Vasconcelos, que nos guiou na ocasião (em 24/06/2017).

    Belas formações rupestres são presença constante ao longo de todo o trajeto até o cume (em 24/06/2017).

    A "Fenda", corte profundo na rocha que cruza a trilha e uma das referências ao longo do traçado. Ao fundo o Pico Canjerana (1.890m) e o Pico Trindade (1.910m) à direita (em 04/07/2024).

    Extenso altiplano após o córrego, com o Pico Carapuça (1.912m) ao fundo (em 24/06/2017).

    Pausa para descanso na "Concha", projeção de rocha utilizada como abrigo no passado (em 24/06/2017).

    Trecho bastante íngreme no ataque final ao cume (em 07/04/2018).

    Extenso platô que leva ao cume do Pico do Sol (em 07/04/2018).

    Exemplar de Phlegmariurus ruber, planta endêmica e criticamente ameaçada de extinção encontrada no acesso ao cume do Pico do Sol (em 24/06/2017).

    Pico Agulhinha (1.810m) (ou Pico dos Horizontes ou Pico Catas Altas), em destaque na face leste do maciço do Caraça (em 04/07/2018).

    Trecho da descida em meio à floração das canelas-de-ema em abril, com o anfiteatro do Caraça logo abaixo (em 07/04/2018).

    O trecho final é uma pirambeira interminável. Haja joelho! (em 07/04/2018).

    Imagem do Google Earth com o trajeto percorrido e os principais pontos de referência.

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    André Deberdt

    André Deberdt

    Belo Horizonte - MG

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    Biólogo e montanhista filiado ao Centro Excursionista Mineiro.

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