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André Jean Deberdt 14/06/2021 18:28 com 1 participante
    VULCÃO LICANCABUR (5.916M)

    VULCÃO LICANCABUR (5.916M)

    Ascensão ao cume do vulcão Licancabur, na divisa entre Bolívia e Chile.

    Montanhismo

    Pense num vulcão ou peça para uma criança desenhar um. O Licancabur é exatamente assim: um estratovulcão com formato perfeitamente cônico que se destaca na paisagem. Com 5.916 metros de altitude, encontra-se localizado na divisa da Bolívia com o Chile, entre as lagunas Verde e Blanca (no lado boliviano) e a região do Atacama (no lado chileno). Em sua cratera há um pequeno lago, considerado um dos mais altos do mundo e, tanto em seu cume, quanto em sua base, podem ser encontradas ruínas Incas, indicativo de sua utilização pretérita como local para rituais religiosos.

    Para quem quer iniciar em alta montanha, o Licancabur é uma ótima opção. Não há maiores exigências em relação a equipamentos, mesmo com neve, como foi o nosso caso, e a infraestrutura local de apoio é muito boa. Ainda assim, chegar ao cume do vulcão não é uma tarefa fácil. Além das imposições da altitude e do frio, há um desnível de 1.550 m a ser vencido em terreno bastante íngreme, com muitas rochas soltas. Com neve acumulada a dificuldade aumenta, principalmente devido ao grande número de valas escondidas, onde atolar a perna até o joelho ou a cintura é inevitável. Por estar situado dentro dos limites da Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa, o acompanhamento de um guia local é obrigatório.

    O abrigo de alta montanha está situado a 4.340 metros, em uma região belíssima, desértica e isolada. Oferece acomodações confortáveis em um ambiente limpo e com boa alimentação. Não há opção para banho. Cada quarto é abastecido com uma bombona cheia de água, utilizada para a higiene pessoal básica e descarga.

    Na manhã do dia 17/02/19, após um tour de três dias pelo Salar de Uyuni e por algumas lagoas altiplânicas na Bolívia, chegamos à base do Licancabur, junto às margens da laguna Blanca, onde nos hospedamos no único abrigo de alta montanha existente no local. Assim que conseguimos nos encaixar no grupo de alemães que faria a ascensão ao cume no dia seguinte, nos despedimos dos demais colegas de viagem que nos acompanharam nos últimos dias e nos instalamos em um quarto de casal. Como já foi dito, apesar do conforto das acomodações, o local não dispõe de água quente, o que frustrou nossas expectativas por um desejado banho.

    Ainda no início da tarde, encontramos com um grupo de cinco brasileiros do Rio Grande do Sul retornando de uma tentativa frustrada de chegar ao cume do Licancabur, derrotados pela altitude e pela neve. Mesmo no verão, o frio e a neve acumulada podem representar um grande desafio para aqueles que não estão habituados com as condições em alta montanha. Com isso aumentou nossa responsabilidade em restaurar a imagem dos brasileiros, depois do fracasso dos gaúchos.

    Aproveitamos a tarde de Sol para uma caminhada em volta da lagoa, em meio a paisagens tomadas por picos nevados, muitos deles vulcões, flamingos e curiosas formações de microorganismos fósseis conhecidas como estromatólitos, testemunhos de um passado muito distante, quando tudo aquilo foi fundo de mar, antes da colisão das placas tectônicas que deram origem à Cordilheira dos Andes.

    Fustigados pelo vento frio que aumentou ao longo da tarde, retornamos ao abrigo para jantar e tratar dos preparativos para subida do Licancabur, prevista para a madrugada do dia seguinte. Conversamos com os nossos colegas alemães e com o guia local, que nos passou, em detalhes, os requisitos para a nossa aventura. Segundo ele, apenas bastões de caminhada e óculos de montanha seriam suficientes para a empreitada, além das vestimentas básicas de praxe: segunda pele, fleece, corta vento, calça, gorro, luvas e duas meias.

    Apesar da cama confortável, não dormi bem à noite, fruto de uma sinusite que se anunciava e das repetidas despertadas resultantes de momentos de anóxia durante o sono, decorrentes do ar rarefeito. Mas nada que pudesse abalar as boas expectativas para a subida do Licancabur.

    Às três horas da madrugada estávamos todos prontos. Tomamos chá de coca com biscoitos e partimos em duas caminhonetes, por um trajeto de aproximadamente meia hora, em uma estradinha esburacada, até o início da trilha junto às ruínas Incas na base do vulcão. Apesar de termos passado os últimos oito dias em altitudes acima de 3.500 metros, o início da caminhada no escuro e num frio cortante não foi fácil, exigindo um grande esforço para acompanhar o ritmo forte do grupo. No trecho inicial caminhamos por uma trilha batida, com alguns trechos com pedras soltas e cascalho. Na medida em que ganhávamos altura, o relevo foi ficando mais íngreme, com blocos maiores de rocha e com os primeiros trechos de neve e gelo.

    O ritmo diminuiu e as passadas foram se tornando cada vez mais lentas. O bastão de caminhada foi fundamental para manter o equilíbrio. Aos poucos o dia foi clareando e revelando a paisagem espetacular do entorno. Hora de colocar os óculos de montanha, sem os quais é impossível permanecer com os olhos abertos, principalmente nos trechos tomados pela neve.

    Tirar fotos com o celular foi outro desafio. Os óculos com lentes polarizadas dificultavam a visualização da tela e as luvas não ajudavam no disparo. Portanto, tirar uma boa foto implicou em mover o gorro, bandana, luva e óculos, expondo olhos e a pele do rosto a um frio congelante. Haja disposição para registrar a caminhada.

    O trecho final é o mais crítico. A camada de neve se torna mais espessa e você é obrigado a gastar aquelas últimas forças guardadas para conseguir ficar em pé na hora da foto no cume. Mas ao ver as bandeirinhas coloridas tremulando lá no alto, não tem mais o que te segure. Na chegada ao cume, depois de caminhar 6 km em 7 horas, a sensação prazerosa de missão cumprida foi indescritível, somada ao belo visual que se tem lá do alto.

    Ao planejar a viagem, programei uma série de atividades que gostaria de ter feito no cume do Licancabur, dentre elas, dar uma volta completa na cratera e tentar descer até o pequeno lago. Mas, na prática, não foi bem assim. Com o ar rarefeito, um vento congelante e uma camada de quase 30 cm de neve, não era fácil caminhar no cume. Mas a satisfação de ter chegado lá já foi uma enorme recompensa. Não dava para saber se o batimento cardíaco disparado era fruto do cansaço ou da emoção de estar ao lado da cratera de um vulcão a quase 6.000 m. Certamente os dois!

    Gastamos algum tempo tirando fotos, andamos por um raio de, no máximo, 20 metros e aproveitamos o tempo aberto para contemplar a paisagem. Não era prudente abusar, pois uma descida complicada nos aguardava. Para subir, foi simples firmar o pé na própria pegada na neve, mas na hora de descer, um escorregão na encosta íngreme poderia ter consequências trágicas.

    Permanecemos no cume por cerca de quarenta minutos e demos início aos preparativos da descida. A estratégia seria a seguinte: descer devagar cravando o calcanhar na neve a cada passo. Funcionou bem a princípio, mas escorregões foram inevitáveis principalmente quando a perna afundava em valas escondidas ou quando toda a camada de neve deslizava.

    Foi uma descida longa e cansativa e, aos poucos, a meia foi ficando molhada com a neve que penetrava na bota. A Giselle sofreu com a dor causada pelo frio no local onde havia fraturado a fíbula no ano anterior, o que reduziu nosso ritmo, nos afastando um pouco do restante do grupo que, em determinado momento, aproveitou para “esquiar” com as botas na neve, no trecho final da encosta.

    Ao final da caminhada, tivemos que nos espremer em apenas uma caminhonete na volta ao abrigo. Optei por ir na caçamba com o guia, o que não foi uma decisão muito acertada, por conta da poeira que tivemos que aguentar por todo o trajeto. Na chegada ainda fomos até a base da Reserva de Fauna para registrar nosso nome no livro de cume, que na verdade não fica no cume. E constatamos que fomos os primeiros brasileiros a realizar a façanha em 2019!

    Já no abrigo, a impossibilidade de um banho foi desanimadora e tivemos que nos virar, mais uma vez, com os lenços umedecidos. Jantamos, conversamos com algumas pessoas interessadas em subir o Licancabur no dia seguinte e fomos dormir.

    Na manhã seguinte, em posse do voucher pago antecipadamente na agência em Uyuni, fomos levados em uma Land Cruiser até a fronteira, para os trâmites na imigração e para o transporte até San Pedro de Atacama. No posto de fronteira Boliviano fomos momentaneamente extorquidos em US$ 10 pelo fiscal que carimbava os passaportes. Lembrei que havia lido sobre essa falsa cobrança em um relato na Internet, mas só me dei conta muito tarde. Já no ônibus, a Giselle indignada voltou até o posto e ameaçou contar para todos na fila sobre a falcatrua. O policial devolveu o dinheiro de imediato e admitiu com naturalidade o golpe. De alma lavada, seguimos para a Aduana Chilena, onde a educação dos funcionários, a organização e o rigor na revista das mochilas eram de primeiro mundo. Mas o mais impressionante, foi a Giselle ter reconhecido um dos funcionários que havia participado do programa Aeroporto da National Geographic! E claro, foi lá cumprimentar o ilustre artista, que ficou todo feliz!

    Por volta do meio dia chegamos em San Pedro do Atacama para mais uma etapa da nossa viagem. Mas isso fica para o próximo relato!

    Considerações finais

    - O acesso ao Licancabur pode ser feito a partir de San Pedro de Atacama, no Chile (cerca de 48km) ou pela Bolívia, para quem vem de um tour a partir de Uyuni e da região das lagunas altiplânicas, como foi o nosso caso (dois dias e meio de viagem de carro).

    - Para subir ao cume do Licancabur, o que costuma ser feito pelo lado boliviano, é necessário pernoitar no abrigo e contratar previamente um guia local (obrigatório). Há cobrança de uma taxa para a entrada na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa (Bolívia).

    - A saída para a base do cume é feita às 3h e 30min da manhã e a caminhada é iniciada às 4h. A subida pode levar de 6 a 9 horas, dependendo das condições do terreno e da disposição do grupo. O retorno ao abrigo é por volta das 15 horas, quando não é mais possível cruzar a fronteira. Portanto, é necessário pernoitar mais uma vez no abrigo.

    - É importante se informar previamente dos horários e opções de transporte para cruzar a fronteira entre a Bolívia e o Chile. Os procedimentos são demorados e há fila. Saímos às 9h da manhã do abrigo e concluímos o trâmite de imigração nos dois postos de fronteira por volta do meio dia. E cuidado com as cobranças indevidas pelos fiscais de imigração bolivianos. Não existe taxa para cruzar a fronteira. Negue-se a pagar e ponto final.

    - A subida ao cume do Licancabur exige um razoável preparo físico, mas o maior desafio é a altitude. A adaptação às condições de ar rarefeito varia de pessoa para pessoa. Alguém com um ótimo preparo físico pode sofrer terrivelmente com dores de cabeça e náuseas, enquanto outro mais sedentário pode apenas sofrer pelo cansaço do esforço físico.

    - Busque maiores informações em sites de montanhismo e relatos na Internet. Condições climáticas, preços, taxas, horário, entre outros, são importantes no planejamento da viagem.

    Caminhada no entorno da Laguna Blanca, com o vulcão Juriques em destaque e, mais ao fundo, o Licancabur.

    Picos nevados no entorno da Laguna Blanca, dentro dos limites da Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa (Bolívia). Ao fundo o Cerro Laguna Verde (5.531m).

    Pequena parada no trecho inicial da subida ao cume do Licancabur, com os primeiros raios de Sol iluminando a paisagem

    Chegada ao cume do vulcão Licancabur (5.916 m).

    Embora não tenha sido uma prancheta oficial, o CEM se fez presente por toda a viagem.

    Pausa para recuperar as energias na descida, ao final do trecho com neve.

    Trecho final da descida em meio às rochas soltas. Uma caminhada longa e demorada, mas com paisagens inesquecíveis. Ao fundo as lagunas Verde e Blanca.

    André Jean Deberdt
    André Jean Deberdt

    Publicado em 14/06/2021 18:28

    Realizada de 17/02/2019 até 19/02/2019

    1 Participante

    Giselle Melo

    Visualizações

    1491

    7 Comentários
    Ana Retore 17/06/2021 16:25

    Que legal! 😍 Obrigada por compartilhar.

    Divanei Goes de Paula 19/07/2021 13:26

    Preço da Ascenção com o guia obrigatório, pode nos passar . Abraços!

    André Jean Deberdt 20/07/2021 15:50

    Divanei, em fevereiro de 2019 pagamos US$ 100 por pessoa. Mas o valor é negociado diretamente com o guia local e pode variar em função do número de participantes.

    Divanei Goes de Paula 20/07/2021 16:51

    Boa, obrigado !

    Claudio Luiz Dias 17/06/2022 16:10

    lindas fotos e ótimo relato.

    1
    Yone Moreno 02/10/2023 11:32

    Olá André! Obrigada por compartilhar sua história. Pretendo ir para São Pedro do Atacama dia 29/001/24, e quero muito realizar essa ascensão como 1ª experiência de alta montanha. Eu consigo encontrar fácil uma agência ou guia direto de São Pedro até o abrigo na bolívia? Estarei sozinha, você achou o ambiente seguro? E qual a média dos valores saindo de São Pedro para o Vulcão? Agradeço se puder me responder. Abraços

    André Jean Deberdt 03/10/2023 05:56

    Oi, Yone. Sim, e fácil encontrar agências ou guias que fazem o Licancabur, em São Pedro do Atacama. Ao negociar o preço, não esqueça de perguntar se já estão incluídos a taxa de ingresso no Parque e o pernoite no abrigo.  Tanto em são Pedro, quanto no lado boliviano é bem seguro. De maneira geral as pessoas são bastante educadas e solícitas. Fique atenta apenas na aduana da Bolívia, onde é comum cobrarem taxas que não existem. 

    André Jean Deberdt

    André Jean Deberdt

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    Biólogo e montanhista filiado ao Centro Excursionista Mineiro.

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