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Divanei Goes de Paula 08/11/2015 14:21
    VULCÃO VILLARICA: Pai e Filha no Topo da Casa do Demônio

    VULCÃO VILLARICA: Pai e Filha no Topo da Casa do Demônio

    Subida ao topo gelado do Vulcão na cidade de Puccon no Chile.

    Montanhismo Trekking

    VULCÃO VILLARICA - CHILE: PAI E FILHA NO TOPO DA “CASA DO DEMÔNIO”.

    ................. Não é o peso das duas mochilas, a minha e a da minha filha, que carrego sobre os ombros, que me faz afundar na neve fofa da encosta do fumegante VULCÃO VILLARICA. O peso que me atormenta é o peso do fracasso iminente que se avizinha. Não há mais nada que eu possa fazer, minha filha já chegou ao seu limite. Na última hora ela se arrastou pelo gelo e agora parece ter chegado ao fim. Dos sete brasileiros que compunham uma “expedição” de quinze montanhistas, apenas nós dois ainda não ficamos pelo caminho, mas sobre os meus ombros alem das mochilas, carrego um vulcão inteiro nas costas, que eu já não tenha fracassado outras vezes, todo montanhista coleciona glórias e fracassos nessa vida, mas desta vez será um fracasso à mais de 5.000 km de casa e talvez eu nunca mais tenha outra chance. Horas antes o guia da expedição ameaçou nos tirar o cume se não nos mantivéssemos colados ao pelotão que restara, composto por um casal de coreanos, um casal de israelenses e um alemão. Desta vez parece mesmo que o guia filho da puta não terá piedade e quando ele pede para que nos aproximemos do grupo e dá a notícia, não consigo me segurar e deixo transparecer toda a minha fraqueza emocional: dou um tapa no capacete da minha filha de 14 anos, dou um abraço nela e desabo a chorar.............

    Antes mesmo do nosso avião, que partiu de São Paulo, tocar o solo de Santiago, a capital do Chile, na minha cabeça só havia um pensamento : subir o Vulcão Villarica e fazer com que as meninas, minha filha e minha mulher, tivessem contato com gelo e neve. É claro que eu também não queria perder a oportunidade de botar meus pés no cume de um vulcão ainda ativo e entupido de neve, mas o objetivo principal era mesmo apresentar um mundo novo para elas, já que eu já havia estado em outras oportunidades em montanhas geladas.

    Para as meninas, a chegada à Santiago é como se elas descessem em outro planeta, já que alem de ser a primeira vez de uma delas dentro de um avião, é também a primeira vez das duas em outro país. Outra língua, outros costumes, outras comidas, outras paisagens. Ficamos dois dias na capital e já picamos a mula para o litoral, já que antes de seguir para o centro-sul do Chile, queria que elas conhecessem as águas frias do Oceano Pacifico. Fomos à Valparaíso e Vinha Del Mar e de lá embarcamos direto para PUCÓN. Doze horas de uma viagem longa, mas longe, muito longe de ser entediante. Primeiro porque o transporte é de primeira e segundo porque a paisagem ao longo do caminho distrai a mente e alegra a alma.

    Quando o ônibus se aproxima de Villarica, a cidade, meus olhos já procuram ao redor sinais do grande vulcão, mas como o tempo está nublado, nada vejo. E conforme o ônibus vai margeando o espetacular Lago Villarica, minha ansiedade só aumenta e quando vejo a placa que anuncia a nossa chegada à Pucón e o gigante aparece, quase perco o fôlego. É um monstro de forma cônica, parecendo um grande e famoso sorvete da década de oitenta (gelato), entupido de neve em pleno verão, com mais de 30 graus de temperatura.

    Descemos meio perdidos no terminal de uma das empresas de ônibus, já que não existe rodoviária em Pucón e cada empresa tem a sua. O lugar me pareceu desagradável, sem brilho e nem poesia, mas minha opinião mudaria radicalmente ao longo do tempo. Fui procurar um hostal para ficarmos, enquanto as meninas aguardaram numa pracinha. Nada encontrei nas redondezas e quando voltei dei de cara com uma senhora empurrando uma bicicleta e ela me perguntou se necessitávamos de hospedagem e nos ofereceu um quarto para três pessoas por 7.000 pesos cada um, cerca de 100 reais para os três. Era o que procurávamos. Seguimos a mulher, carregando nossas pesadas mochilas por uns três quarteirões e quando chegamos à hospedagem da CECILIA, nos sentimos em casa, onde havia uma cozinha comunitária, uma sala com TV , internet e logo fizemos amizade com a gentil senhora e sua filhinha, que nos tratou como sendo parte da família.

    Pucón é uma cidade incrível, pra mim a mais aconchegante de todo o Chile. Toda a cidade é voltada para o turismo e ali se pode fazer de tudo, desde pesca, rafting, canoagem, arborismo, cavalgada, velas, passeio de barco e é claro, subir o vulcão, sua grande atração. A cidade tem um estilo europeu, com casarões e mansões espetaculares, que deixa nossa Campos do Jordão parecendo uma grande favela. O Vulcão Villarica pode ser avistado de qualquer ponto da cidade e se você é montanhista, vai sair de lá com o pescoço torto de tanto olhar pra cima. Na cidade existem dezenas e dezenas de agências que fazem a escalada até o cume do vulcão e o preço gira em torno de 200 reais por pessoa, um pouco caro, mas com tudo incluído, desde mochila , roupas, botas e equipamentos diversos. Acredite, vale cada centavo gasto. E não há outra maneira de subir sem contratar uma agencia, a não ser que você tenha o certificado internacional de escalada em gelo, coisa que nem os maiores escaladores do mundo tem( burocracia).

    Como a Cecília, dona do hostal havia nos dito que poderia conseguir um desconto na escalada do vulcão, com uma agência conhecida que nos pegaria no hostal, resolvemos fechar com ela e marcamos para dois dias depois da nossa chegada, já que no dia seguinte eu queria apresentar às meninas as águas termais. Existem dezenas de piscinas termais ao redor de Pucón, das mais simples , as mais sofisticadas, mas eu queria algo o mais natural possível e então optamos em ir para LOS POZONES, porque alem disso, poderíamos chegar de ônibus. O ônibus parte da Rua Uruguai, enfrente de outra empresa de ônibus e leva uma hora e meia para chegar ao local, onde têm que se desembolsar uns 35 reais por pessoa para ter acesso as piscinas naturais de águas quentes, que também fica junto a um grande rio de águas cristalinas e muito geladas. Depois do banho quente, seguimos também de ônibus para outra grande atração do Chile, os OJOS DEL CABURGA. Piscina e cachoeiras de águas verdes e azuis, um espetáculo pra ninguém botar defeito.

    De volta ao hotel, a noite fomos até a agencia de escalada para experimentarmos todo o equipamento e a roupa que usaríamos no dia seguinte. Bota, calça, blusa, luvas, gorro, poleiras (perneiras), piolet( uma espécie de picareta de gelo), esquibunda, e outros equipamentos de couro para auxiliar na descida. Fomos comprar uns óculos escuros e o lanche para a grande subida.

    Ainda no Brasil, andei pesquisando sobre essa subida e fiquei sabendo que as agencias, quase sem exceção não prestam la um grande serviço e se for brasileiro, o negócio é pior ainda. Brasileiros tem fama de desistir muito fácil e isso se dá pelo enorme numero de paulistanos sedentários que tentam fazer a escalada, achando que o negocio é turístico. Segundo relatos, os brasileiros despreparados chegam até a neve, se encantam e já que estão fisicamente destruídos, desiste dali mesmo. Para as agencias quanto mais cedo os clientes desistirem melhor, assim não precisam ficar arrastando atrás de si um monte de pregos inúteis, que acabaria por atrasar toda a expedição, pondo em risco também as expedições do dia seguinte. A subida e a descida se faz num único dia, mas será um dia duro de caminhada, tanto que a maioria acaba mesmo por ficar pelo caminho. Outra coisa que fiquei sabendo é que as agencias não avisam pra ninguém levar um bom agasalho e aí o sujeito chega à linha de neve eterna e passa um puta de um frio e logo pede pra voltar, então sabedor dessa sacanagem, já providenciei blusas, luvas e gorros quentes para nós três, porque se tivéssemos que desistir, não seria de frio.

    Foi uma noite longa por causa da ansiedade e quando a VAN chegou ao hotel para nos pegar às 06h30min da manhã, já estávamos lá fora faz tempo. Fomos todos para a agencia para colocarmos nossos equipamentos de escalada e lá conhecemos nossos parceiros de expedição. Alem de mim, minha esposa e minha filha, os outros membros eram outros 4 brasileiros, um casal de coreanos, um casal de israelenses, um alemão e os três guias. Como não poderia deixar de ser, logo os brasileiros se enturmaram, já que os outros estrangeiros mal falavam espanhol e resolveram ficar na sua, cultivando o seu lado frio de sempre. Todos a bordo, rumamos para o Parque Nacional Vilarrica, onde está o vulcão. Chegando à portaria somos obrigados a mostrar nossas botas para os guarda-parques chilenos, que analisam uma por uma e ainda nos explica como devemos proceder na subida, dizendo que somos obrigados a acatar todas as ordens dos guias.

    Subimos de VAN até chegarmos aos 1.400 metros de altitude do Vulcão Vilarrica, bem aos pés da estação de esqui. Alias aqui é um ponto chave desta subida, quem quiser desembolsar uns 45 reais poderá subir um bom trecho sentado na cadeirinha do teleférico e acabar por economizar mais de uma hora e meia de desgastante subida e a priori , a minha intenção era mandar minha mulher pelo teleférico, o que daria a ela uma maior chance de poder chegar ao topo, mas para azar dela o teleférico estava em manutenção e ela teria que subir todo o caminho a pé mesmo. Equipamos-nos, botamos as mochilas nas costas e começamos a subida, já informados previamente que quem não conseguisse seguir por qualquer motivo, seria escoltado para baixo por um dos guias, no caso uma guia de montanha. Nessa conversa já comecei a ver o quanto os brasileiros são descriminados. Ao invés dos guias falarem em espanhol e depois em inglês, eles davam prioridade para a segunda língua, mesmo sabendo que o grupo era composto na sua maioria por brasileiros. Precisávamos o tempo todo ficar pedindo para que os caras traduzissem para o espanhol o que estavam falando e essa pratica se repetiria dezenas de vezes ao longo da escalada, o acabava por enervar todo mundo.

    Oito horas em ponto começa a caminhada e a visão do GRANDE VULCÃO VILLARICA, com 2.847 metros de altitude, portanto mais alto que quase todas as montanhas do Brasil, vão me deixando extasiado. Do seu cume é possível avistar a fumarola de enxofre, que acabou gerando o nome de RUCAPILLÁN, dado pelos índios Mapuches e que significa Casa do Demônio. O início da subida é muito íngreme e com terreno vulcânico totalmente instável, você dá um passo pra frente e outro para trás. Não deu nem cinco minutos e minha esposa já deu sinal que teria problema e antes mesmo que ela resolvesse dizer algo, peguei a mochila dela e coloquei na frente do meu corpo e agora passaria a carregar as duas. Acontece que nossas mochilas estavam muito mais pesadas que a de todos por ali porque havíamos colocado muito material de sobrevivência, muita água, lanches, roupas, coisas que eu achei que poderia fazer a diferença e que poderia nos salvar em uma emergência, fazendo com que chegássemos ao cume.

    Vamos todos caminhando em fila indiana, com passos lentos, mas sem interrupções. De vez enquanto damos uma parada de um minuto somente para puxar um pouco de ar para os pulmões. Logo o grupo se dispersa e os blocos vão se formando. Eu e a minha filha Julia vamos firmes junto com o pelotão principal, mas minha mulher e os outros brasileiros já assumem a condição de cú de tropa da expedição, ficam para trás e eu sempre saia da minha posição para dar um apoio moral para minha esposa, mas logo vi que conseguir fazer com que ela chegue ao topo seria uma missão muito difícil. Na verdade eu tinha esperança de que ela conseguisse caminhar pelo menos até a linha de neve eterna, o que já seria uma vitoria. Logo os outros brasileiros já conseguem ficar bem mais para trás e minha esposa começa a reagir e quase já se junta ao pelotão principal. Ao nosso lado começam a surgir algumas línguas de neve, mas ainda não podemos tocá-la porque esta dentro do vale a nossa esquerda e direita, já que estamos caminhando por uma crista de rochas e terreno solto.

    Paramos para uns cinco minutos de descanso e para dar tempo para o grupo todo se juntar, mas alguns já sumiram e ficaram muito para trás e então sem muitas delongas, voltamos a caminhar seguindo a linha dos cabos do teleférico até que uma hora e meia depois chegamos a antiga base da estação de esqui, velha e destruída. Aqui é onde todos os grupos se juntam para um descanso de uns 15 ou 20 minutos, uma parada para um lanche e uma água. Estamos finalmente junto a linha de neves eternas do vulcão, ou seja, neve que nunca derrete e a chegada ao gelo alegra a alma de todo mundo. As meninas pisam pela primeira vez no gelo. Apesar de ter trazido bastante comida e água, não consigo comer e nem beber nada. Fico prestando atenção nas instruções dadas pelos guias e me preocupo em traduzi-las para as meninas que não entendem nada de espanhol. Neste ponto somos obrigados a colocar nossas polleras, um tipo de perneira para não entrar neve na bota e é daqui para frente que teremos que usar o piolet, uma espécie de picareta com ponta também no cabo. O guia explica como devemos fazer para frear com a picareta no caso de uma queda no abismo de gelo, não é uma explicação tão convincente e boa parte fica apreensiva quanto ao sucesso desta ação e eu espero que não precisemos usá-las em nenhum momento. O guia chefe junta todo o grupo e comunica que teremos no máximo até uma hora da tarde para chegarmos ao cume do vulcão, caso contrario a expedição poderá ser cancelada por segurança. Nessa hora fico pensando que aquela conversa de segurança não passa de uma balela, porque naquela região do Chile escurece depois das dez da noite e aquela margem de segurança é um absurdo sem tamanho, afinal de contas aquele não é o Everest e só depois eu compreenderia o porquê de tanta pressa para se chegar ao cume o mais cedo possível, o que acaba por inviabilizar a subida de muitos ao topo.

    Finalmente botamos os pés na neve e parte do meu objetivo estava cumprido, agora faltava tentar chegar ao cume de qualquer jeito, mas foi aí que sofri a primeira paulada. O fato de eu estar carregando um peso muito excessivo e a caminhada se dar num ritmo muito alem do que eu pensava, comecei a sentir uma fisgada na cocha, CAIMBRA ! Cacete, não era possível que aquilo estava acontecendo comigo , não ali, não naquela hora. Poucas vezes tive câimbras na vida subindo montanhas e justamente ali num vulcão que eu vinha namorando há vários meses a desgraçada queria me pegar. Estiquei a perna, fiz um aquecimento rápido enquanto caminhava mesmo , já que o guia não cumpriu o que havia prometido e não parava nunca para um descanso. As dores sumiram, mas o psicológico ficou abalado. Minha filha estava bem e minha mulher meio que se arrastava pela neve , mas ainda continuava caminhando. A inclinação do vulcão começou a aumentar e a neve se alternava entre fofa e dura e escorregadia e os tombos eram inevitáveis. Então vamos subindo e mirando as dobras do terreno, onde grupos que estavam muito acima de nós se reuniam para um descanso e quando chegávamos ao local e pensávamos que iríamos descansar, o filho da puta do guia tocava para frente, na verdade de propósito para minar a energia do grupo. Eu continuava com minha labuta de toda hora retornar para tentar persuadir minha esposa a seguir enfrente, mas cada vez mais eu a via definhar e isso me destruía psicologicamente, já que tinha medo que naquela altura do campeonato, não haveria nenhum guia para retornar com ela e aí eu próprio teria de abortar a subida para ficar com ela. O guia continuava botando pressão pra gente continuar e ameaça nos excluir do grupo se não nos juntássemos a eles. Eu ficava falando pra minha esposa ter força: “ não desista, vamos, não desista “, mas ela já era uma morta, um zumbi que vagava sem rumo sobre a neve fofa na cacunda gelada de um vulcão ativo a mais de 5.000 km de casa e mais de duas horas antes do topo, sucumbiu de vez, sutilmente mandou todo mundo tomar no cú e ir pra puta que o pariu e disse que queria voltar( rsrsrsrsrssr). Uma das guias que nos acompanhava, se propôs a voltar com ela e com outra brasileira que também pediu arrego.

    Agora o grupo era composto pelos israelenses, pelos coreanos, pelo alemão e por mim e minha filha de 14 anos. Todos os outros brasileiros haviam desistido e agora era a hora da onça beber água. Só havia um guia, o guia chefe e se alguém resolvesse desistir ou sucumbisse, teria que esperar todo o grupo retornar do cume. O guia nos avisa que agora teremos que andar todos juntos e se alguém se desgarrar, será excluído do grupo que tentará atingir o cume. Com minha mulher em segurança e descendo, meu coração começa a se acalmar, mas quando me lembro de um detalhe, um punhal atravessa meu peito de um lado a outro : Putzzzz, minha mulher não fala uma palavra de espanhol e a descida nas canaletas de gelo, alem de perigosa, causa pânico em quem não está acostumado a escorregar à beira de abismos gelados. Minha esposa contou-me depois que quando a guia começou a dar as instruções de descida , ela e a outra brasileira que também não entendia espanhol, começaram a se desesperar e o fato de nenhuma das duas conseguirem acelerar a descida escorregando, quase congelaram na montanha e então ela me fez prometer que nunca mais, nunca mais mesmo eu irei colocá-la mais numa furada dessa.(rsrsrsrssr)

    Voltando ao seleto grupo que vai tentar o cume, eu e minha filha tentamos nos juntar a eles que estão mais acima e para minha surpresa, cinco minutos depois de iniciarmos a caminhada, minha filha se volta pra mim e diz que está sentindo muitas dores nas pernas. Pronto, era o balde de água fria que faltava, numa temperatura que já está congelando os ossos. Pego a mochila dela e jogo nas costas e começo a lamentar a situação que se encaminha para um fim melancólico. A cada metro que andamos, ela reclama de uma dor diferente e pede para pararmos. Paro e olho para o nada, totalmente desolado, fico absorvido pelo fracasso que se avizinha à frente. Vou tentando arrastá-la, mostrando pra ela que a gente não desiste nunca, enquanto a gente estiver respirando a gente vai tentar. Ela faz uma cara de choro e eu já estou quase desabando. Vamos ficando para trás, mas ainda temos a esperança de que quando chegarmos à próxima dobra do gelo, faremos uma pausa para que ela se recupere. Que nada, o guia passa reto e não pára. Fico olhando para o longínquo cume e depois olho pra minha filha que vai tentando seguir. Vou apoiando ela por trás, se pudesse à levaria nas costas. Estou despedaçado, um sentimento desgraçado se abate sobre mim, tentar seguir enfrente ou acabar de vez com aquele sentimento ? A cara de desespero da minha filha é de dar dó. Havíamos brincado o tempo todo no hotel e eu dizia que ela não chegaria ao topo e ele me dizia que chegaria de qualquer jeito. Tava na cara que ela não queria desistir, mas os olhos dela diziam outra coisa. Ela quer ir, mas o corpo dela já desistiu faz tempo. Aquilo não era mais montanhismo, aquilo havia passado dos limites do bom senso, melhor seria mesmo dar meia volta e voltar. A pressão psicológica já havia me afundado até o pescoço na neve, eu não subia mais uma montanha, eu carregava um vulcão nas costas. Caminhamos por mais uns cinco minutos, até que vimos desabar à nossa frente a coreana. Foi a deixa pra eu agarrar minha filha por trás e quase que atropelar a oriental. Não éramos mais os últimos, mas quando o guia parou mais acima e nos chamou, pensei logo : ESTÁ TUDO ACABADO !

    O guia chefe está estacionado uns 50 metros acima de nós, junto com o alemão, o coreano e o casal de israelenses. O guia dá o sinal para que a gente se adiante e nos junte ao grupo mais acima. Eu e a minha filha caminhamos até ele e quando a coreana chega meio que cambaleando eu espero só ouvir a notícia de que nós três deveremos voltar ou esperar por ali mesmo. Para mim estava claro que a paciência do guia tinha acabado, apesar de não estarmos tão lentos assim, nós não tínhamos dúvidas nenhuma que a escalada havia acabado pra gente. Meu coração já estava para explodir de tanta tensão. Mas pra nossa surpresa o guia chefe disse : ESTAMOS HÁ NÃO MAIS QUE 15 MINUTOS DO TOPO e antes mesmo que ele continuasse a falar, cerrei o punho, bati de leve na cabeça da minha filha, dei uma abraço nela e o que poderia ter acontecido no topo, desabou ali mesmo. Comecei a chorar sem parar, sabia que agora ninguém nos tiraria a oportunidade de chegarmos ao cume do Villarica e se preciso fosse, dali pra frente carregaria minha filha nas costas. Mas nem precisou, ela mesmo se deu conta do feito que pai e filha estava prestes a realizar. Ficou assustada com a minha demonstração de fraqueza emocional. Ela ainda não sabia se eu estava emocionado ou estava sentindo o efeito do cheiro de enxofre que não deixava ninguém respirar e nem enxergar direito. Não faço a mínima idéia de como foi estes 15 minutos de subida, chorei até o topo e só parei quando avistei a cratera fumegante soltando aquele gás fedorento.

    São 13h35min do dia 16 de janeiro de 2015, quando atingimos o cume do VULCÃO VILLARICA ( 2.847 m). Quase 6 horas de caminhada e mais de 1.400 metros de desnível, o que não é pouca coisa em se tratando de montanha com gelo. No cume as pessoas se cumprimentam e se abraçam, mas eu e minha filha nem nos atemos muito a isso não, já que em nenhum momento nenhum daqueles estrangeiros se mostrou com um pingo de companheirismo. Corremos logo e fomos ver a arrebatadora visão da cratera da “ CASA DO DEMÔNIO”, aquilo sim era uma visão espetacular, um buraco monstruoso, onde o cérebro demora para absorver a informação. A neve vai até onde o nada começa e de dentro do nada, o cheiro de enxofre denuncia que ali no submundo do planeta, o homem também não passa de “um nada”. Ao redor do Vulcão Vilarica descortinava toda a visão do lago de mesmo nome e bem mais ao longe, outros vulcões desafiam nossa capacidade de admirar o mundo. Logo o guia começa a gritar que devemos descer por causa do cheiro do enxofre, mas eu e a Julia estamos “cagando e andando” pra ele e só resolvemos voltar para junto do grupo, quando satisfazemos a nossa vontade de olhar o mundo lá de cima.

    Quando nos juntamos novamente ao grupo, apareceu do nada mais um brasileiro. Segundo o que ele nos disse, veio acompanhado do outro guia da expedição, que eu pensei que havia voltado com os outros patrícios. Pelo que ele contou, só conseguiu chegar ao topo porque foi quase levado nas costas pelo guia, mas ta valendo. Dei um abraço forte nele e disse o quanto eu estava feliz em vê-lo no topo. Todos reunidos, o guia chefe começou a explicar como seria a nossa descida. Vestimos uns aventais de couro, que também nos protegia a bunda e ele nos ensinou como deveríamos usar o esquibunda, uma espécie de escorregador de plástico, olha só, com formato de bunda mesmo. Nos orientou como frear na descida com a picareta e disse que se não usássemos corretamente poderíamos nos ferir com gravidade ou acabar caindo no abismo gelado. No começo fiquei com muito medo da minha filha não conseguir usar as ferramentas e voltei a ficar apreensivo. Ele nos disse que deveríamos obedecê-lo e quando ele dissesse para usarmos o esquibunda não deveríamos hesitar em nenhum momento. Desceríamos pelas canaletas de gelo e quando elas acabassem, mudaríamos para outras. Ele tomou à dianteira e colocou a Julia logo atrás dele e eu fui em seguida. Segurei meu coração, me posicionei atrás da minha filha e quando ele deu o start, nos desembestamos vulcão abaixo.

    A velocidade do “bagulho” é assustadora, descomunal, desconcertante. Experimento o tal do freio feito com a picareta e a desgraça não quer parar, me sinto um passageiro digno do filme Jamaica Abaixo de Zero. O negócio é tão louco que não consigo nem pensar na segurança da minha filha, estou desgovernado dentro da canaleta, não sei rezar, nada poderá me socorrer, estou perdido se essa merda sair da canaleta de gelo, aí é que “tô fudido mesmo” ! À minha frente, minha filha grita feito doida. Não , ela não está com medo, se diverte como nunca havia se divertido antes. Logo pego o jeito e consigo me estabilizar. Agora quem grita sou eu. Pai e filha estão em êxtase. Somos os únicos que fazem a maior algazarra na montanha e quanto mais velocidade pegamos mais “zueira” a gente faz. Logo a canaleta em que estamos acaba e temos que caminhar em direção a outro buraco gelado. Já estamos habilitados, não há ninguém nas costas daquele vulcão que desça mais rápido do que nós dois. Não usamos mais a porcaria da picareta, deixamos que a força da gravidade fizesse o seu papel. A neve entrou até no nosso fiofó, congelou tudo, nem sentia mais minhas mãos e mesmo assim não estávamos nem aí pra nada. –“SEGURA QUE OS BANANAS CARAMELADAS ESTÃO CHEGANDO, PORQUE NÓS NÃO VIEMOS DO BRASIL ATÉ AQUI PRA COMER NEVE NÃO !” Foi sem dúvida uma das coisas mais divertidas que já fizemos na vida. Para espanto dos estrangeiros, que se mantiveram tensos do inicio ao fim da descida, chegamos até onde se poderia ir escorregando, fazendo a maior arruaça que aquele vulcão já presenciou. De pé e agora sem ligar mais pra porra nenhuma, nem pra guia , nem pra ninguém mais, botamos novamente nossa mochila às costas e fomos descendo bem de vagar, curtindo cada metro de neve que ainda nos restava e quando a neve acabou, descemos mais de vagar ainda , batendo foto, batendo papo com outros montanhistas que encontrávamos pela frente, até que às 16 horas desembocamos novamente no estacionamento, de onde havíamos saído umas sete horas atrás, onde reencontramos minha mulher e os outros da expedição.

    De volta à agencia de escalada descobrimos porque eles ficam botando pressão para que a expedição acabe o mais cedo possível. Quando todos chegam é preciso lavar todo o equipamento e por para secar para que seja usado novamente no dia seguinte por outra expedição. Mas para nós isso já pouco importava, depois da aventura , estávamos perdidos no tempo, a cabeça zuada e a adrenalina ainda demoraria varias horas para baixar. Voltamos para o hotel com o corpo destruído pelo esforço físico e pela tensão que havíamos passado naquele dia. Minha mulher passou a noite toda tendo dores terríveis e a cada meia hora fazia questão de me esculhambar pela roubada em que eu a havia metido, mas eu sei que lhe proporcionei a maior aventura que ela jamais esquecerá. Quanto a minha filha, ela cumpriu o prometido, que era chegar ao topo do Villarica. E esse foi o relato de uma família simples, que deixou a periferia de uma cidade perdida no interior paulista e foi se aventurar num longínquo país depois dos cafundós da Cordilheira dos Andes. Para a maioria, isso não é nada, pra mim ter o privilégio de chegar ao cume de um Vulcão ativo e gelado com minha filha de 14 anos, foi o ápice da minha vida de montanhista e pai.

    Divanei Goes de Paula / janeiro de 2015

    OBS: menos de 2 meses depois dessa aventura, o Villarica explodiu e foi pelos ares.

    2 Comentários
    Adeilton Alves 12/05/2020 08:17

    Emocionante . Imagino a farra sua e de sua filha fazendo a descida de esquibunda... Valeu... Sucesso. Você já esteve na carretera austral, ruta 7 de Puerto Mont a Villa O'Hinggs??

    Divanei Goes de Paula 12/05/2020 10:28

    Adeilton, tenho vontade de subir de jeep toda a Carreteira Austral um dia. A descida com minha filha foi uma farra só, talvez um dos dias mais felizes da minha vida , pelo menos na descida .

    Divanei Goes de Paula

    Divanei Goes de Paula

    Sumaré - SP

    Rox
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    Quase 30 anos me dedicando às grandes trilhas e travessias pelo Brasil e por alguns países da América do Sul .

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