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Felipe Romano 06/11/2024 15:21
    Escaladas em Itacoatiara - Morro do Tucum e Agulha Guarischi

    Escaladas em Itacoatiara - Morro do Tucum e Agulha Guarischi

    Duas vias clássicas em um dia - Luiz Arnaud e Paredão Zezão

    Montanhismo Escalada

    A ideia

    O Estado do RJ é onde se tem a maior concentração de vias de escaladas clássicas e famosas por metro quadrado, são muitas e variadas montanhas encravadas em uma enorme densidade populacional. Dentre essas, uma região me chamou atenção há alguns anos, quando folheava o livro “50 vias clássicas no Brasil”, da Companhia da Escalada, mas nunca tive planos concretos de conhecê-lo, até uns 2 meses atrás, quando visitei o Rio usando uma logística “diferente” e percebi que seria possível frequentar mais a região.

    Em agosto deste ano (2024) um amigo deu a ideia de fazermos a clássica via K2 no Corcovado/RJ em um rápido bate-volta. Acabamos pegando dois ônibus leito na sequência e aproveitamos bem o dia no Rio, subindo a K2, algumas curtas vias no Morro da Babilônia e tomando umas na mureta da Urca. O esquema foi mais que aprovado e queria fazer mais um bate-volta deste antes do verão. Então, lembrei das lindas vias localizadas em Itacoatiara, bairro de Niterói, que possui uma belíssima praia cercada por gigantes monólitos.

    Um desses monólitos é o Morro do Tucum, com seus quase 300m de altura, no qual é possível ascender caminhando ou escalando, e abriga a clássica via Luiz Arnaud. O outro, menos imponente, mas tão alto quanto, é a Agulha Guarischi, que fica perdida no meio de seus irmãos maiores: Morro do Telégrafo e Alto Mourão, e onde se encontra o incrível Paredão Zezão, outra via clássica. Este conjunto faz parte do Parque Estadual da Serra da Tiririca, e ambas as vias constam na seleção das 50 vias clássicas do livro mencionado.

    O plano

    Assim que dei uma olhada em Itacoatiara, pelo Google maps, logo notei que parecia possível subir as duas montanhas no mesmo dia, já que são bem próximas. Pesquisei na internet, não achei nenhum relato de quem houvesse feito as duas, o que não significa que ninguém tenha feito. De todo modo, tracei uma trajetória aparentemente viável, começando pela subida da via Luiz Arnaud, logo no canto esquerdo da praia, descendo por caminhada de seu cume, e caindo na trilha que leva à Agulha Guarischi, sem mistério.

    No começo de outubro apareceu uma promoção imperdível da viação Cometa, 40% de desconto na passagem. Na hora mandei uma mensagem para o Fernando, com quem subi outras vias clássicas e ele se interessou. Comprei as passagens para os dias 18 e 19 do mesmo mês. No começo da semana da viagem comecei a monitorar a previsão do tempo. Parecia boa, porém, contudo, todavia, a partir de quarta-feira já começou a preocupar. Dali até sexta foram inúmeras checagens no Windy, Accuweather, Climatempo e outros, analisando a viabilidade. Essas vias são sensíveis à chuva já que o acesso à Luiz Arnaud é por um costão rochoso de uns 100m de altura, e qualquer umidade pode colocar em risco a aderência. O Paredão Zezão também deve estar seco pra ser escalado, pois seus primeiro 60m passa por um corredor entre muita vegetação. Além disso, tomar uma chuva quando se está numa via de 200 ou 300m não é nada legal.

    Então, na sexta-feira à tarde, após muito analisar a previsão e até ouvir alerta no rádio sobre risco de temporais e deslizamentos de terra nos estados de SP e RJ, resolvemos abortar a missão. Cancelamos as passagens à tempo, e ficou aquele sabor intragável de derrota. Até o fim do ano não teriam muitos sábados livres pra essa empreitada, sendo que no fim de semana seguinte seria o último que estaria 100% tranquilo. No começo da semana seguinte voltei a analisar a previsão do tempo, só faltaria alguém pra encarar, já que o Fernando não poderia.

    A parceria

    Entre segunda e quinta-feira fiquei monitorando o tempo e procurando algum amigo pra encarar essas escaladas. Eis que o tempo se mostrava decente e, já de última hora, na tarde da quinta-feira chamei o Machini, que se interessou na hora. Ele já tinha vontade de conhecer essas vias. Discutimos a logística e equipamentos, íamos só com uma corda de 60m mesmo, e compramos as passagens. No dia seguinte (sexta) peguei ele em Campinas, fomos até a rodoviária e partimos pontualmente às 11h30. Infelizmente o assento não inclinava totalmente, como o Cometa, mas deu pra descansar um pouco.

    A ordem das vias

    Ao longo da viagem discutimos qual via faríamos primeiro. Cada uma com seus prós e contras: se fizéssemos a mais longa e difícil primeiro poderíamos pegar o início dela molhado (já que tinha chovido uns dias antes) e não estaríamos aquecidos para encarar sua primeira parte que era a mais difícil. Se fizéssemos a mais curta e fácil poderíamos nos cansar para a segunda e correr risco de pegar chuva ao fim da tarde, já que havia uma pequena previsão para isso.

    No fim das contas resolvemos seguir o plano inicial já que era a via mais próxima, termina-la rápido, e torcer para ter tempo bom para fazer a outra. Se tudo desse errado (ou quase tudo) teríamos um bom tempo para curtir uma linda praia.

    Morro do Tucum – Luiz Arnaud 2 III E3/D2

    Chegamos até antes do previsto na rodoviária, 6h45, pegamos um Uber, cujo nosso motorista era uma mistura de Travis Bickle com Jim Miller, e às 8h em ponto estávamos na bela praia de Itacoatiara. Pausa para o café da manhã sentado na calçada e pouco depois estávamos procurando o caminho no imenso costão rochoso do Morro do Tucum. A medida que íamos fazendo a travessia, começamos a sentir a exposição. Não é um trecho fácil para quem não está acostumado com alturas e aderência. Na metade do caminho o Machini calçou a sapatilha, continuei com meu tênis por ter um solado de borracha aderente, mas estava no limite já. Depois de quase 100m acima do nível do mar chegamos no platô do início da via propriamente dita, claramente visível por ter uma vegetação mais espessa.

    Morro do Tucum, até o platô com vegetação não há proteção. Depois a via segue o afundamento mais escuro pra direita

    Pouco antes do platô onde inicia a via. Exposição considerável

    Eram pouco mais de 8h30 e, teoricamente, era estar sombra, mas já sentíamos o sol batendo. Nos preparamos e o Machini teve a honra de iniciar a guiada. Alternamos as quatro cordadas e rapidamente subimos os 200m, praticamente 1 hora no total. Além do visual espetacular, não há muito o que se falar da via apesar de ter alguns lances divertidos, pois ela varia entre II e III grau, uma dificuldade técnica baixa, sendo possível quase caminhar em alguns pontos. Melhor assim, pois ao contrário dos relatos que diziam que o sol só aparecia na via a partir das 10h, já estávamos cozinhando desde o início dela. Cheguei à última parada às 10h05, o Machini veio em seguida e já correu para uma sombrinha de vegetação no cume. Fui logo em seguida, estávamos pingando de suor.

    Na metade da via Luiz Arnaud, o relógio marca 9h17. Teoricamente era para estarmos na sombra. Já estava derretendo

    Sombra e água fresca

    Assim que chegamos no topo do morro, deviam ter umas 20 pessoas que subiram caminhando, gente de todas idades, e um deles veio puxar papo, era um morador local, o Pedro Lobão, sujeito gente fina que escalava quando era mais novo e hoje trabalha com o manejo e utilização de jaca na culinária doce e salgada (www.maonajaca.com.br). Descemos o costão rochoso do morro, e dali já pudemos avistar a Agulha Guarischi, a estreita montanha vizinha de 300m onde se encontrava a via que queríamos subir na sequência. Visualizamos um trio escalando o que parecia ser sua 2ª enfiada, e o sol batia forte ali também. Ao redor da Agulha, outras montanhas maiores, como o Alto Mourão e o Morro do Telégrafo, baita vista.

    Ao longo da descida cruzamos com várias pessoas que subiam, inclusive uma garotinha com havaianas que ensaiava um choro, realmente não é um lugar para se andar de havaianas...Enfim, logo estávamos na tão desejada sombra novamente e, mais que isso, havia um belo banco na clareira pra sentar, alívio. Ali pudemos ficar um tempo, comer, beber, e descobrimos que havia água gelada na portaria do parque, que ficava a menos de 10 minutos de trilha. Me prontifiquei a coletar a água (1,5L pra cada um) e também registrei nossos nomes com o guarda parque, informando que iríamos escalar a Agulha e estipulei que deveríamos estar de volta lá pelas 18h (guarde esta informação).

    Agulha Guarischi – Paredão Zezão 3 V E3/D3

    Enquanto ainda descansávamos, refletimos sobre o melhor horário a entrar na via. Entrar logo e encarar o sol imperdoável ou aproveitar um alívio no final do dia, mas correr o risco de pegar boa parte no escuro ou até mesmo uma chuva? Resolvemos ir de imediato, mas sem pressa. Ficamos pouco mais de uma hora descansando na sombra, e por volta do meio dia iniciamos a trilha para a Agulha. Pela informação do livro-guia era pra ser uma trilha curta, de uns 15 minutos, isso se não se perdesse. Ela passa toda pela mata, sombreada, e se dirige até a costa, onde chega a uma “garganta”, uma quebrada de altas rochas que dão direto no mar. Dali vira à esquerda até encontrar totens que levam à base. Felizmente encontrei rapidamente os totens e chegamos sem desvio. Mais um tempo para descansar, encostar na rocha pra sentir a temperatura, arrumar as tralhas e, dessa vez, tive a honra de iniciar a guiada.

    Por volta das 13h inicio a subida dos primeiros 60 metros. Já sabíamos que esse começo seria o trecho mais técnico, mas bem protegido. Realmente o lance por volta da 1ª até a 2ª proteção é um quinto grau carioca, não é de graça. Porém, o que era pra facilitar dificultou. A enfiada segue num corredor de vegetação quase vertical que pareceu mais difícil que o lance anterior. Talvez o quarto grau seja possível puxando as bromélias (nem tão confiáveis diga-se) pois não tem muita agarra ou aderência. De todo modo não fiquei esperando pra ver, fui tocando. Quando estava na metade, o Machini gritou “Tá quente aí?”, e eu respondi “Não! Até que tá de boa!”. E estava mesmo. Porém....mais uns 5m pra cima o bicho pegou. O sol turbinou, virou um maçarico direto do inferno e começou a torrar. Mais um motivo pra acelerar e, quando cheguei na parada, estava derretendo. Fiz a segurança em posição fecal, rezando pra aparecer uma nuvem. Estava preocupado com a saúde e descer dali já era uma hipótese.

    O Machini veio se queixando do calor, mas não demorou e já foi guiando a próxima enfiada, que também seria longa, quase 60m de uma diagonal para a direita que não passava do terceiro grau. Torci pra que ele terminasse logo e achássemos uma sombra mais acima. Enquanto isso tentava me cobrir e respirar fundo. Não era possível beber muita água pois a via era longa, e tínhamos que guardar para a volta. Sem muita demora o Machini chegou na próxima parada. Continuando a alternância, guiei o trecho seguinte. E que lance espetacular! Essa terceira parte é tranquila tecnicamente, mas passa pela aresta da Agulha, dá pra usar uma fita laçada num blocão como proteção, fora isso só tem mais uma chapa nos seus 35m. Fácil, bela e exposta. Apesar do calor infernal tive que dar uma parada no meio da via tirar umas fotos. MAS o melhor estava no final: sua parada chega no platô com vegetação, aonde há uma generosa e tão sonhada sombra. Dei a segurança de uma árvore na sombra, e ali fiquei mais tranquilo em relação ao sucesso da escalada.

    3a enfiada do Paredão Zezão, trecho lindo e tranquilo

    Enquanto descansávamos ali, ouvimos outros escaladores que estavam na mesma via, só que acima. De repente desce o primeiro no rapel. O rapaz estava passando mal, atordoado com o calor. Ajudei a desfazer seu freio e o Machini gentilmente ofereceu água, parecia que ia desmaiar. Após alguns minutos sentados foi recuperando a força, enquanto seus outros dois companheiros desciam até a gente. Conversamos um bom tempo, e finalmente tínhamos nuvens e boas condições pra subir as últimas 3 cordadas: faltavam uns 150m até o cume.

    Por volta das 15h o Machini iniciou a guiada que partia do platô, mais um belo trecho, com crux de IV grau e poucas proteções. Sem problemas ele chegou na parada e eu segui, já emendando o próximo trecho, um pouco mais fácil. Por fim, o Machini guiou a última parte, chegando no famoso cume pouco depois das 16h. Diferente de todos cumes que já estive, esse tem uma aresta pontiaguda, e não tem como ficar de pé, só sentado, ou com um pé de lado, parece saído de um desenho. E a vista? Indescritível! Praia, montanhas, mar, vegetação, área urbana, tudo junto e misturado. Ainda tivemos a sorte de ter uma boa visibilidade pra apreciar e registrar a paisagem.

    O cume da Agulha, diferenciado

    A descida

    Logo depois iniciamos a descida: seriam intermináveis rapéis, algo em torno de 10. Fomos alternando quem descia primeiro para agilizar e rapidamente chegamos no platô sombreado, era por volta das 17h a apareciam algumas nuvens mais escuras no céu. Depois de uns 5 rapéis,Já no platô 150m acima do chão, até seria possível descer uma trilha um pouco exposta, sem precisar rapelar mais, porém, tínhamos deixamos algumas coisas na base da via, então achamos melhor descer por onde subimos. Continuamos e, um rapel abaixo do platô, chegamos na enfiada que é bem diagonal, onde se dá o rapel mais trabalhoso. O Machini desceu esta parte mas não estava encontrando uma parada dupla (mais segura) para montar o próximo. Então ele teve que voltar um pouco pra cima, parando numa parada que estava somente uns 12 metros abaixo da que eu estava. Desci até ali e foi minha vez de procurar abaixo, nada. A esta altura já começava a escurecer. Encontrei somente dois grampos ao longo da via, não tão próximos. Não tinha jeito, teríamos que rapelar de um grampo único. Pelo menos era um grampo novo, de titânio, de fabricação internacional, colado com cola química da Hilti, aparentemente à prova de bomba.

    Machini veio na sequência e acendemos os headlamps, já estava totalmente escuro, era noite, por volta das 18h30. Deixamos uma malha rápida neste grampo solitário (para facilitar a puxada da corda depois) e o Machini começou o rapel que seria o mais importante. Não sabíamos se a corda chegaria até a próxima parada dupla (a P1), além disso, é uma descida bem diagonal, o que é sempre chato e trabalhoso. Enquanto ele descia cautelosamente, estava apreensivo, torcendo pra chegar logo, e para não cair uma chuva naquele momento crucial.

    Rapel noturno, a chata diagonal

    E de repente, meu celular começa a tocar, momento inoportuno! Olho a tela, número com código 21. Alguns milissegundos pra raciocinar e já imagino quem seja. O guarda-parque André ligou para saber se estava tudo bem, atencioso da parte deles. Digo que estamos quase no chão, e qualquer coisa ligaria de volta, esperando não ter que ligar. Logo depois o Machini chega no limite da corda, mas não na parada dupla! Torço pra tirar um coelho da cartola, e ele consegue ficar num platô, e tirar o peso da corda para que eu desça. Então sigo o chato rapel diagonal, fazendo força pra me manter na linha e não despencar, evitando uma volta cansativa para a linha certa. Enfim, chego ao fim da corda. Dali só mais uns 3 metros até o platô da parada. Descemos esse trechinho vertical segurando na corda, que ainda está presa no grampo único. Agora, no platô da P1, puxamos a corda e passamos na parada dupla, mais aliviados que agora seriam só dois rapéis totalmente verticais. Uns 15 minutos depois estamos finalmente no chão.

    Pegamos nossas coisas que estavam escondidas no mato (nenhum infeliz passou por ali o dia todo, exceto nós dois e o trio que escalou antes da gente). O problema agora seria encontrar o caminho de volta na escuridão. Felizmente não tínhamos esquecido as headlamps, apesar da minha estar com pilhas antigas...Na dianteira, aos poucos fui encontrando os totens, mas por vezes desviávamos alguns metros. Até o momento em que acabaram os totens e teríamos que achar a garganta na costa por onde passamos. Batemos cabeça um pouco, vai pra lá, volta pra cá, mas sem querer querendo achamos a tal garganta que indicava o caminho, menos mal. Dali mais uns 20 minutos até a portaria do parque, que já se encontrava trancada, porque fecha às 18h. Felizmente o guarda André estava lá, agradecemos e saímos de volta à civilização.

    As ruas estavam vazias e escuras, mas Itacoatiara é um bairro/praia de alto padrão, e estávamos bem tranquilos. A preocupação agora era achar algo pra comer. Eram 20h, horário que os poucos quiosques fecham, mas conseguimos sentar em um, e nos esbaldamos com um lanche, açaí e cerveja local. 15 minutos depois, chuva. Demos sorte que agora estávamos no coberto. Arrumamos as coisas, pegamos um Uber (a chuva apertou e presenciamos um acidente estranho com gente esquisita), mas chegamos bem cedo na Rodoviária, a tempo de tomar um banho revigorante e encarar a volta no semi-leito...7h em Campinas, tudo certo. Mais um excelente bate-volta pro Rio, com duas clássicas na bagagem e muitas aventuras.

    Felipe Romano
    Felipe Romano

    Publicado em 06/11/2024 15:21

    Realizada em 26/10/2024

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    Felipe Romano

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