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Felipe Romano 30/06/2022 16:27
    Face Leste do Pico Maior: a grande clássica

    Face Leste do Pico Maior: a grande clássica

    Relato da escalada ao topo da Serra do Mar, no Parque Estadual dos Três Picos - Nova Friburgo/RJ

    Escalada Montañismo

    Aviso

    Caro leitor, esteja ciente de que este é um relato extenso e minucioso. Em primeiro lugar, é uma forma de tentar passar o máximo de informação para quem quer subir esta via mítica. Li todos os relatos possíveis, e vi todos os vídeos decentes, e mesmo assim não foi possível conhecer todos os detalhes, como o caminho exato a seguir e lances relevantes, que apareceram de “surpresa”. Em segundo lugar, tenho o hábito de fazer anotações de todas as vias que faço, principalmente as tradicionais. Grande motivo disso é que, não podendo escalar com tanta frequência, aproveito para reviver os momentos, e reforçar o aprendizado para as próximas empreitadas. E por último, claro, é para me lembrar desta aventura daqui a 5, 10, 30 anos e contar aos netos. Dito isto, vamos ao relato.

    O projeto

    A Face Leste do Pico Maior dispensa apresentações, qualquer escalador que tenha um mínimo interesse de escalada tradicional pelo menos já ouviu falar. Para muitos, eu incluso, é a via tradicional mais clássica do Brasil. O interesse nela era natural, o grande passo para um montanhista/escalador amador. Obviamente há que se ter uma bagagem mínima para encará-la. Guiá-la, mesmo em revezamento com o parceiro, é fruto de uma progressão de anos (para os meros mortais que só podem se aventurar em grandes paredes em alguns fins de semana por ano). Resumindo, a via foi conquistada em 1974, um enorme feito pelos conquistadores da época, que subiram com equipamentos bem mais simples, mas com muita coragem e habilidade.

    Ela possui 700m de escalada, divididos em 16 cordadas (mas podem chegar até mesmo a 18 ou 19 se quiser ser mais cauteloso e evitar o arrasto da corda em alguns trechos). A graduação média é de quarto/quinto grau, com crux de quinto, trecho de artificial simples (A1), mas uma exposição razoavelmente alta (E3): 5º V A1/6sup E3 700m. Como o nome diz, ela se situa no Pico Maior, um imenso monolito, cujo cume bate nos 2.366m, o ponto mais alto de toda a Serra do Mar (serra que vai estado do RJ até o norte do Rio Grande do Sul). E o único meio de se chegar neste é ponto escalando, sendo a Face Leste a via mais "fácil" e procurada.

    Importante salientar que esta via fica na meca da escalada tradicional/de aventura no Brasil: Parque estadual Três Picos, também conhecido como Salinas, situado entre Teresópolis e Nova Friburgo/RJ. Esta região conta com inúmeras montanhas e tem vias conquistadas há mais de meia década. É conhecida por ter vias ousadas, com alta exposição, atraindo somente aqueles que gostam de sair um pouco da “zona de conforto”. Por isso, é essencial conhecer um pouco a região antes de se lançar no Pico Maior. Em junho de 2019 foi isso que fizemos, eu e meu parceiro, Fernando, subimos uma via mais tranquila no Morro do Gato (Bode da tarde 4º IV E2 130m), e no dia seguinte a CERJ (5º V A1/6sup E3 360m ), que fica no Capacete, montanha logo ao norte do Pico Maior. A CERJ é realmente a porta de entrada das vias mais longas e expostas. Tenho um relato desta via neste mesmo portal, mas resumindo, foi uma via agradável, onde não sentimos tanto a exposição e voltamos ao entardecer, sem sustos.

    O parceiro

    Toda empreitada de escalada, com exceção aos “malucos” escaladores-solo, requer pelo menos um parceiro. O já mencionado Fernando completou a dupla. Também morador de Americana/SP (cidade próxima de Campinas) e também pai de dois filhos, ele tem uma extensa experiência na escalada, tendo começado ainda na década de 90. Abriu inúmeras vias nas pedreiras de Americana e Iracemápolis, e já rodou bastante o continente sul-americano em escaladas, trekkings e outras roubadas. Sua vida daria um livro facilmente. Apesar disso, ainda não tinha escalado a Face Leste do Pico Maior, então também estava animado em conhecer essa via após nosso teste bem-sucedido na CERJ. Devido sua maior experiência, e preparo físico sempre em dia, sabia que eu tinha que estar bem preparado e, mais que isso, estudei bastante a via por relatos e vídeos, para compensar minha desvantagem.

    O plano era voltar em Salinas na temporada seguinte, 2020, mas veio a pandemia. Em 2021 projetos pessoais não permitiram novamente a empreitada, e foi só no começo do 2022 que combinamos que o feriado municipal deste ano seria a data certa, evitando assim uma lotação no abrigo e montanha em algum outro feriado de alcance nacional, e aproveitando um dia a mais em caso de necessidade.

    A preparação

    Iniciei o treinamento para esta via mais de 6 meses antes. Queria estar na melhor forma, e com grande resistência aeróbica, para estar 100% quando precisasse passar pelos lances mais difíceis da via. O treinamento foi baseado em módulos, ficando mais específico ao dia da escalada quanto mais perto estivesse. Ao longo desses meses também fui considerando os mínimos detalhes logísticos, como horários das etapas e cada peça de equipamento que iria levar, assim como onde os colocaria na mochila (por exemplo, guardei o celular dentro do estojo de primeiros socorros na lateral da mochila, para poder acessá-lo sem tirar a mochila).

    Além dos treinos em casa (onde conto com uma parede que construí, e outros elementos simples, mas suficientes), fazia parte do planejamento fazer umas 3 saídas para vias tradicionais mais próximas. Muitos podem achar que não é o suficiente, e realmente não é o ideal, mas não tenho tanta disponibilidade para mais. Era importante realizar estas vias com o Fernando, para entrosar a dupla nos procedimentos. Neste semestre deu para brincar um pouco na face norte da pedra do Pântano em Andradas em fevereiro, depois subir a Pedra Grande de Atibaia, com sua trilha íngreme considerável e treinar chaminé (importante para a Face Leste), e fazer um último teste emendando duas vias tradicionais no mesmo dia: em maio voltamos para Andradas para subir a via Erupção (5º VI E2 180m) e a Era do gelo (4º V E2 180m). A primeira via nós já tínhamos subido em 2019, em preparação para a CERJ, e a segunda via eu já tinha feito em 2017, com outro amigo, mas era novidade pro Fernando. Iniciamos a trilha por volta das 7h30 e as 17h estávamos no carro. A trilha para a base destas vias demora por volta de 50 minutos. Escalamos a Erupção em 2h30, rapelamos a via Era do gelo em 1 hora, e subimos a Era do gelo novamente em 2h20. Um tempo decente, imaginamos.

    Sem estar no planejamento, fui com a família para a região de São Bento do Sapucaí no final de semana seguinte e, sem conhecer outro escalador para combinar uma via, marquei com um guia local a subida da via Homem Pássaro (6º VIsup E2 180m) no Bauzinho. Frisei que gostaria de guiar pelo menos umas duas cordadas (a via toda possui cinco) para manter e aprimorar o psicológico, afinal de contas, estar na ponta da corda é bem diferente de estar embaixo, e para subir uma via como a Face Leste é necessário cabeça fria. Acabei guiando a segunda e quarta cordadas, relativamente tranquilas, esta via é muito recomendável para quem está guiando por volta deste grau. Protegida nos lances chaves, com alguns cruxs bem atléticos, há várias opções de proteção com peça móvel. Tudo parecia estar em perfeita sintonia, parecia.

    Problemas no caminho

    Logo na madrugada seguinte deste dia, um domingo, acordei vomitando e passei o dia bem mal. Faltavam 3 semanas para a escalada. Fui melhorando ao longo da semana, alguns dias sem treino alternaram com dias um pouco melhores, e foi assim até praticamente a semana da viagem. Não consegui mais engatar uma sequência de dois ou três dias de treino. Para piorar, a última semana foi bem ruim, com meu filho mais novo pegando uma pneumonia, problemas no trabalho, a saúde ainda não 100%, e o que mais preocupava (exceção à pneumonia, que acabou se tratando): a previsão do tempo. Há cinco dias antes da escalada acompanhava a previsão, que variou entre média e pouca chuva para domingo. Pouca coisa é tão angustiante quanto condições climáticas duvidosas para um escalador, ou outro praticante de esporte outdoor, imagino.

    Equipamentos, o mínimo possível

    Chegou o dia

    Sexta-feira, 10/6, a previsão do tempo melhorou um pouco, mas a maioria das fontes ainda mostrava alguma chance de chuva, sendo que uma indicava 90% até. Claro que numa região alta, de montanha, é quase impossível prever qualquer coisa e, sem opção de remarcar, vamos em frente.

    Sai do trabalho as 16h15, passei em casa, coloquei a cargueira e a mochila de ataque no carro (já vinha arrumando tudo desde segunda), e o Fernando chegou às 16h30. Antes das 17h estávamos na estrada, parando só para trocar de motorista no meio do caminho e comer um jantar leve, e as 21h30 paramos em hotel de Resende para dormir. Às 7h do dia seguinte já estávamos na estrada novamente, e um pouco preocupados. Saímos de Resende em uma neblina leve, mas após descer a serra sentido o Arco Metropolitano do RJ a chuva deu as caras, e estava forte. Subimos para Teresópolis em uma névoa densa, não foi possível nem ver o Dedo de Deus do Paraíso das flores (famoso ponto de observação da Serra dos Órgãos com muitas opções gastronômicas). A chuva continuou no caminho e só foi apaziguar numa distância de uns 50km antes do Pico Maior. Ali paramos para almoçar na “Linguiça do Padre”, ainda não era nem meio-dia, só tinha a gente no local, mas foi uma excelente opção para experimentar a especialidade da casa.

    O fabuloso Dedo de Deus

    Chegamos no início da trilha que sobe para a República Três Picos (abrigo do sr. Paulo Mascarim, onde nos hospedamos em 2019, e voltamos neste ano). Esta trilha possui 1km sinuoso, e geralmente está em mau estado para carros transitarem, tanto que subimos a pé em 2019, mas nesta ocasião ela estava decente e conseguimos subir com o carro que estávamos (um 4x4 urbano). Assim rapidamente chegamos no abrigo, por volta das 13h, bem descansados. Com o tempo sobrando nos instalamos na pequena cabana de madeira, e decidimos fazer o reconhecimento da trilha até a base da via. Levamos as cordas e outros equipamentos na base, nos poupando o peso de levá-las no dia seguinte.

    O imponente Pico Maior

    Reconhecimento

    Com dicas do sr. Paulo, e o croqui da trilha em mãos, passamos pela Grande Araucária, viramos à esquerda, onde há uma placa recente indicando o caminho para o Pico Médio e Menor (não menciona o Pico Maior mas é a mesma trilha). Após uns 20 minutos passa um riacho, mais 20 minutos abre-se o bosque com as placas indicando os Picos Menor e Médio à esquerda e o Maior à direita. Mais 10 minutos, e uma possibilidade de se perder, ou pegar um caminho mais fechado (nosso caso), e se está na sabe da lendária via. A trilha, em quase toda extensão, é bem fechada por se tratar de uma via tão famosa, e nesse dia ela estava BEM úmida, para não dizer molhada. Chegamos na via quase encharcados, o que não era também um bom indício para a escalada do dia seguinte.

    O início da via, no dia anterior

    Na base da via descansamos e analisamos o que dava. A rocha estava levemente úmida, mas “escalável”. A névoa pairava sobre toda a montanha, mas não havia sinal de chuva. Guardamos as duas cordas (a principal de 60m, e a corda mais fina para eventual abandono de via se fosse necessário) e as ferragens (costuras, mosquetões) dentro de um saco de lixo amarrado e deixamos escondido para o dia seguinte. Voltamos rapidamente, e às 15h30 estávamos no abrigo, prontos para organizar tudo para o dia seguinte. Uma macarronada na cozinha do acampamento e às 18h30 entramos na cabana para dormir. Vale notar que ao escurecer, com a uso da luz do headlamp, ocorria algo que nunca tinha presenciado: era praticamente impossível enxergar 2 metros pra frente devido ao gotejamento aéreo. A nebline era forte e as gotas de água ficavam suspensas no ar, refletindo a luz da lanterna. Foi nesse ambiente que dormimos, torcendo para que, pelo menos, não chovesse, e fosse possível escalar com um mínimo de segurança.

    Café às 4h19

    Enfim, na rocha

    Após uma noite com vento e a neblina fazendo as árvores pingarem em cima de nosso teto, acordamos as 4h da manhã, e o Fernando acendeu o fogareiro na cabana para tomarmos um café. Iniciamos a trilha às 5h na Araucária, mais 45 minutos de trilha, ainda bem úmida.

    Combinamos que eu guiaria os trechos onde há mais chance de se perder, pois eu tinha estudado mais a via (em parte para compensar minha menor habilidade e volume de vias tradicionais nos últimos meses/anos), então por esta ordem o Fernando iniciou o primeiro trecho, às 6h30, iniciando assim, finalmente, a escalada! A parede não estava totalmente seca, mas ouvimos de duas fontes que mesmo estando o primeiro trecho levemente molhado o restante estaria bem seco. Iríamos descobrir se isso era fato mesmo.

    Ainda escuro na base via, mas logo clareou

    Primeiro trecho: aderências e esticadas

    O primeiro trecho começa bem positivo, mas já dá amostras da exposição, tendo 3 opções para proteção em seus 45 metros. Não demorou muito e ele montou a parada, comigo subindo na sequência. Vale notar que muita gente escala em simultâneo, quando a dupla escala junta distante uns 20-30 metros com as proteções intermediando, nas primeiras cordadas para ganhar tempo. Mas optamos pela segurança, pela parede estar com alguma umidade e por não termos conseguido treinar escaladas em simultâneo em outras ocasiões. De todo modo, estávamos bem entrosados, evitamos perder tempo com qualquer outro procedimento (como tirar sapatilha, tirar muitas fotos, parar demais para beber/comer, ou ficar confuso com procedimentos) e não acreditamos que o tempo fosse ser um problema.

    Na segunda cordada segui guiando, 50 metros com 3 proteções. No geral um trecho tranquilo, porém me deparei com o primeiro crux: um lance de aderência já uns 10m acima da última proteção, apimentado por uma rocha não tão seca. Perdi alguns minutos valiosos ensaiando o movimento mas cheguei a parada e o Fernando já veio logo atrás. Ele emendou pra terceira enfiada, que inicia num lance difícil, apesar de constar como 4º grau. Raramente tomo alguma queda em via tradicional, mas indo de segundo escorreguei nesse lance inicial. Na sequência a via segue fácil até a 3ª parada, que é mais curta. Agora seria minha vez de guiar uns dos trechos que mais confundem escaladores, e já fez alguns desistirem de subir a via por errar o caminho.

    Fernando chegando na P2

    Será que vai dar certo?

    Inicio tranquilamente uma travessia para direita, com boas agarras e pés. Clipo uma costura uns 10m após o início da via, e encaixo uma proteção móvel (friend) mais uns 5m depois. Vou subindo na diagonal e, uns 4m para minha direita me deparo com uma seção de mato correndo vertical na rocha. Olho um pouco para baixo e vejo uma parte do mato mais batida e penso “bom, só pode ser aqui que a via continua”. Desescalo tranquilamente até a última proteção e sigo para esta parte de mato atravessando para a direita. Faltando pouco mais de 2m um problema: uma seção vertical completamente encharcada da água que desce do mato acima. Estando seco este trecho parece tranquilo, mas molhado como estava eu tinha que torcer um pouco para não escorregar. Já olho para o matinho logo ao lado como uma tábua de salvação e vou ensaiando o movimento de travessia para direita: há alguns cristais para pés. Tento secar a sapatilha com as mãos (e não foi a primeira vez do dia) e me lanço no movimento. Consigo “escalapular” para o matinho batido, ufa. Salvo? Ainda não, esse matinho estava batido pelo erro de inúmeros de escaladores que acharam ali ser o caminho da via, o que claramente não era, pois do outro lado havia um trecho bem vertical sem agarras, longe de ser um segundo/terceiro grau pelo croqui.

    Àquela altura já me preocupava com a molhadeira da via, mas tento buscar o caminho certo. Volto para o trecho molhado de rocha, onde passei momentos antes, e uns 2 metros acima vejo outra trilha batida no matinho, mais discreta, mas certamente o caminho certo. E agora? Não tendo onde proteger tenho duas alternativas: fazer a travessia de volta, para a esquerda, no trecho molhado de cristazinhos, sem uma tábua de salvação como o mato pisado onde estava, ou me agarrar no mato vertical e acessar a trilha acima. Não penso muito e saio abraçando o mato molhado como se não houvesse amanhã. Consigo chegar na trilha acima de qualquer jeito e ali sim, visualizo a continuação natural da via.

    Mais tranquilo continuo uma travessia para direita, agora em agarrões, e clipo uma costura em uma chapa. Ali sei bem onde estou pois já tinha visto o trecho em vídeos, seria só seguir um mundaréu de agarrões verticais, lance bem simples e tranquilo, não fossem 2 fatores: o arrasto da corda que dobrava a esquina do totem, e uma quantidade inacreditável de água nos agarrões que formavam poças cheias na pedra. Por isso não quis arriscar, montei uma parada intermediária nesta última chapa com mais o uso de um friend, faltavam só uns 5m para a parada. Chamei o Fernando, ele veio e completou a via, já sem o arrasto de corda, chegando tranquilamente na quarta parada. A esta altura, do jeito que estava este trecho eu tinha quase certeza que não iriamos mais conseguir continuar na via. Porém, por estarmos num trecho de escalada horizontal (travessia) sabia que não teria como descer por ali, e teríamos que chegar na quinta ou sexta parada para poder fazer o abandono. Guardei esses pensamentos comigo, e fiz a segurança do Fernando na quinta cordada, esperando para ver como estava a condição do restante da via para se tomar uma decisão de abandono ou continuação da escalada. De qualquer modo tínhamos uma corda fina, para emendar na corda principal, além de um croqui das paradas de abandono, que seguem por fora das enfiadas mais horizontais, então não havia motivo para desespero. Até mesmo desescalar esta quarta cordada era algo possível.

    Eu no meio da quinta cordada (provavelmente)

    Escalada off-road

    A quinta enfiada parece ter o começo fácil, cheio de agarrões, mas os lances são meio esquisitos, até se chegar num grande platô. O Fernando fez uma parada desse platô, após uns 40m de escalada, e assim que cheguei no platô ele continuou o resto da via, mais 20m. O trecho final fica vertical e vai seguindo pra esquerda, só com uma proteçãozinha, mas ele diminuiu um pouco a exposição com um friend intermediário. Logo também cheguei na sexta parada. A cordada seguinte é a que menos lembro, apesar de ter guiado, só sei que passei por muito mato molhado e terra. Já parecia que estávamos praticando outro esporte. Pelo registro de uma foto sei que cheguei na parada por volta das 10h50. Estávamos tentando não enrolar, ainda imaginando que fossemos chegar no cume entre 15h e 16h, ainda de dia para achar o caminho de volta com a luz.

    Por volta da sexta cordada, mato molhado

    Algum ponto no meio da via, o tempo abriu em alguns momentos

    O Fernando puxou a ponta da corda no sétimo trecho, passando ao lado do grande L de mato que é possível visualizar lá do abrigo do Mascarim. Logo segui e toquei a oitava cordada, passando mais ainda no meio do mato, inclusive por um trecho vertical aonde é obrigatório usar uma árvore de agarra (árvore esta onde fiz uma proteção com fita). Puxando mais mato do que rocha cheguei bem próximo na primeira chaminé da via mas, como o arrasto da corda era grande, e a proteção praticamente inexistente, resolvi fazer uma segurança numa árvore que julguei ser capaz de segurar uma queda e o Fernando veio, já emendando para a base da chaminé, uns 10m acima. Era 12h20 e paramos bem no meio da via, 8 cordadas acima, faltando mais 8 para o cume. Aproveitamos para comer, beber e descansar um pouco.

    Base da primeira chaminé (não recomendado dormir neste local)

    A exigência sobe

    A Face Leste possui duas chaminés, ambos lances bem conhecidos por suas características peculiares. Apesar da primeira ter um lance “lendário”, acreditei ser mais tranquilo que a segunda chaminé, então escolhi guiar a primeira, deixando a segunda para o Fernando, com um pouco mais de bagagem nesse departamento. O lance famoso deste trecho fica a uns 20m acima do início, onde se deve passar para a face esquerda da rocha, segurando em boas agarras, e fazendo uma travessia com desescalada para a esquerda. Eu subi uns 15m, tranquilamente, e não achava a proteção na face esquerda. Vi uma agarra bem gasta e acreditei ser o caminho. Ensaiei, ensaiei, mas não achava a proteção e o lance parecia bem mais duro que um quarto grau. Tinha colocado até uns dois friends e um nut para proteção, mas estava em dúvida. Até que pensei “a chaminé está tranquila, vou subir um pouco mais e ver se acho a chapa”, então mais uns 4m acima dou de cara com ela! Não tem segredo, é só continuar subindo, olhando pra esquerda, que ela aparece. Costurei e passei para a face esquerda, um lance que acabou sendo fácil. Na face esquerda é bom contar com o equilíbrio (como minha mochila estava lá com o Fernando ficou mais fácil esse lance). Não achei a próxima proteção mas coloquei dois friends grandes numa mesma fenda para continuar procurando. Então, bem próximo vi a última costura antes da parada, na verdade ela fica quase um metro para baixo da linha da chapa anterior, e uns 4m pra esquerda. Um curto lance de desescalada e poucos metros para esquerda cheguei à nona parada. Puxei minha mochila pela corda e o Fernando veio na sequência.

    A primeira chaminé

    A próxima enfiada também conhecia bastante por vídeos e fotos. Ela começa numa fenda vertical, chega numa proteção fixa, e aí atravessa totalmente para esquerda, passando por fendas verticais por uns 10m, sobe reto e faz um arco para a direita. Pela alternância das guiadas era a vez do Fernando, e eu disse para ficar atento no caminho. Após a fenda inicial já não é mais possível ver o guia da parada que estava então não consegui indicar mais precisamente quando ele estava na via. Ele acabou não atravessando o suficiente para a esquerda e tocou reto, onde deu de cara com um teto e teve mais dificuldade. Depois de perceber que não estava no caminho certo voltou para a esquerda e conseguiu fazer o contorno, evitando uma passagem de teto direto para parada (algo que provavelmente ninguém faz pela dificuldade). Subi na sequência e percebi que o lance após a fenda inicial não era fácil mesmo, um quinto grau de Salinas, mais difícil que o quinto da CERJ, por exemplo. Talvez a fadiga também começasse a pegar, já que estávamos na parede há mais de 7 horas. De todo modo o restante da via foi mais tranquilo e rapidamente cheguei na décima parada.

    Eu subindo a décima cordada

    Sem perder tempo, já entrei para guiar a décima primeira cordada. Na minha cabeça essa seria a última cordada mais exigente e o resto seria um “passeio”, o ritmo estava bom. Os primeiros 10m foram bem fáceis e rápidos, seguindo uma bela cristaleira com ótimas agarras. Depois de costurar a segunda chapa, a via começa a perder as agarras, ficando numa aderência quase vertical por uns 15 metros. Depois de uns 8m da última proteção me deparo com o crux dessa enfiada: uma pequena travessia para a esquerda, até chegar na próxima proteção. No croqui esse trecho indicava que tinha mais uma proteção, talvez eu tenha entrado num trecho mais difícil que o original, talvez não tenha achado esta outra proteção, ou talvez ela tenha sido até removida em algum momento. Fato é que estava num lance exposto e delicado para minha habilidade com aderências. Ali passei alguns minutos naquele “veneno”, sem perder totalmente a compostura, mas preocupado com uma possível queda de potenciais 15 a 20 metros. Se eu tivesse uns 20cm a mais alcançaria a proteção para tranquilizar, mas não tinha jeito, eu teria que trabalhar os pés em minúsculas concavidades na parede quase vertical. Após alguns ensaios me comprometi com o lance, estático, músculos travados, passei uma costura de 30cm na chapa e a segurei, gritando alguma exclamação divina, e passando a corda para ficar seguro. Dali subi reto, novamente numa cristaleira de agarras boas, virei a esquina em mais uma touceira com mato e acabei numa grande concavidade vertical. Passei um pouco de tempo para entender como subir, e para onde ir, então localizei a parada à esquerda, uns 5m acima. Ao invés de subir nessa concavidade, que seria exposta e não tão fácil, voltei um pouco e subi à esquerda, com auxílio de uns matinhos, chegando na parada.

    Na P11

    A cordada seguinte seria guiada pelo Fernando, mais um longo trecho, que se inicia num lance vertical de uns 10m com uns abauladões, chega num platô e daí em diante não é possível ver mais o guia da parada. Só sabia que este trecho tinha a famosa segunda chaminé mais acima, uma chaminé exposta, sem proteções, mas que diziam ser tranquila e perfeitamente simétrica. Enquanto eu assegurava o Fernando não imaginava que ele estava ali, mais de 20m sem proteção, no meio da chaminé, fazendo um vídeo com o celular tranquilamente. Após ele chegar na parada já fui subindo,e o lance dos abaulados, que parecia fácil da parada, não foi tão simples. Chegando no platô acima vi a imensidão da chaminé, mas ainda tinha que encarar uns 10m de uma fenda na lateral da parede direita, bem larga e vertical. Subi do jeito que deu, com mais esforço do que técnica: não conseguia entalar o pé adequadamente para ganhar altura e nem usar a parede lisa, à esquerda da fenda, pois não tinha agarras. Esse trecho já foi cansativo, e quando entrei na chaminé o cansaço só aumentou. Pouco mais de 20m com poucas agarras para pé. Eu escolhi entrar virado para a direita, enquanto o Fernando tinha entrado para a esquerda. Geralmente uma chaminé tem um lado mais “fácil” que outro, não sabemos qual era o caso desta, pois vi vídeos e fotos de escaladores usando os dois lados. De todo modo, após a metade eu já estava cansado, somando com o esforço do dia e a falta de vivência nesse tipo de lance. Na saída na chaminé ainda há um lance vertical de agarras, não muito boas, e ali usei o tanque reserva para chegar na parada. O cansaço bateu mesmo.

    A extenuante e exposta segunda chaminé

    O dia já chegava próximo do fim, e trecho seguinte seria o primeiro artificial (sequência de proteções fixas bem próximas onde podemos usá-las para progredir a escalada), e achei que seria tranquila. Porém, antes de iniciar o artificial seria preciso fazer um lance em tesoura com as pernas bem abertas, sendo que a parede da direita era praticamente lisa, sem ressaltos. Iniciei o lance vindo direto da chaminé, bem cansado ainda, progredi um pouco, instalei um friend médio, e faltava só 1 metro para ganhar um platozinho para iniciar o artificial. Porém esse lance exigia um certo desprendimento, ou confiança de que o pé chapado na parede direita não ia escorregar.

    O sol já se escondia àquela altura, e minha confiança, aliada com o cansaço, me seguravam para se comprometer ao lance. Ensaiei o movimento, subi o pé esquerdo, mas não senti firmeza que ia chegar safo no platô. Uma queda ali daria direto na parada uns 3 metros abaixo e, naquele momento, tão perto do cume, arriscar não era uma boa hipótese. Eu poderia ter descido e descansado alguns minutos para tentar novamente, algo não incomum na escalada tradicional, mas sem querer perder mais tempo, e com o Fernando escalando em alto nível, perguntei se ele queria tentar o lance para agilizarmos a subida. Rapidamente ele pegou a ponta da corda, subiu com cautela e chegou no artificial. Assim progrediu de proteção em proteção até a próxima parada. Para quem gosta de guiar, e ter essa responsabilidade, é meio chato ter que “desistir” de uma guiada, digamos que o ego sente, mas pensando friamente, foi a melhor decisão em prol da subida mais rápida e segura. Enquanto isso ia descansando um pouco. Quando chegou minha vez, já com a corda de cima, passei o dito lance e agilizei bastante a passada pelas 10-12 proteções do artificial, usando praticamente só uma fita de 60cm e duas de 30cm alternadamente. Chegando na próxima parada, a noite tinha definitivamente caído, eram pouco mais de 17h30, e acendemos nossa headlamp.

    Cai a noite

    A próxima cordada também era um artificial. O Fernando apto a guiar novamente, indiquei o caminho, que pode enganar alguns, já que se inicia pelo lado esquerdo de um bloco levemente positivo, mas liso. No escuro ele entrou na depressão larga e quase plana à esquerda do rampão, e emergiu uns 5 metros depois usando uma fenda, na qual ainda encaixou um friend. Um pouco acima e à direita, fazendo um movimento levemente exposto em domínio de platô, logo encaixou a primeira proteção fixa do artificial. Dali mais umas 5 proteções fazendo uma travessia para esquerda, mais alguns lances em escalada livre seguindo esta horizontal e estava na parada. Subi rapidamente de segundo, passei pelo artificial meio que puxando nas costuras, meio que escalando mesmo, mas naquela escuridão achei o lance para se chegar à parada um pouco difícil até, pelo menos digno de observação para os próximos escaladores que ali passarem: há algumas agarras de mão mas o pé deve passar numa aderência quase vertical, não é de graça. De todo modo não demorei muito, cheguei na parada e voltei a fazer o papel de guia.

    A última enfiada (ou penúltima, dependendo da logística da dupla) segue por outra bela cristaleira de agarrões de terceiro grau, tendo só uma proteção em seus 30 metros. Ainda usei um friend numa laca, e segui até a parada. Como disse, tem duplas que passam por esta parada direto ao cume, mas ali já há um certo arrasto de corda, o próximo lance é um vertical com potencial queda para platô e, principalmente, àquela altura já não tínhamos pressa nenhuma. Achei mais cauteloso parar ali mesmo e fazer a segurança pro Fernando, que logo subiu e iria ter a honra de guiar o último trecho, que é um belo lance vertical com boas agarras em quarto grau de uns 5 metros, e depois já embarca no costão, praticamente uma caminhada até o esperado topo do Pico Maior. Assim segui este último trecho e às 19h chegávamos ao fim desta via lendária, finalmente no cume da Serra do Mar. Sob as luzes dos headlamps, com a escuridão em volta, comemoramos a conquista, após 12h30 de ascensão e 700 metros de rocha, fendas, aderências, agarras, chaminés, mato, terra, umidade, água e vento.

    Livro do cume

    Decisão a tomar

    Agora em terra firme, e plana, reforçamos as roupas de frio, comemos, bebemos e descansamos um pouco, e deixamos o equipamento no chão. Não tinha sinal no celular então pedi para o Fernando enviar uma mensagem pra esposa só para avisar que estávamos bem. O celular dele ainda recebeu uma mensagem do nosso amigo Alexandre Alves, que repassou a informação ao sr. Paulo Mascarim que estávamos bem. Fomos assinar o livro do cume e tirar umas fotos. Obviamente que não era possível ver muita coisa da paisagem, já que nem a lua aparecia em meio à escuridão e nuvens. Por volta das 20h nos preparamos para procurar o início do rapel e descer, tínhamos uma idéia boa de onde estaria. Indo em direção à face norte, onde está a primeira parada de rapel já sentimos a força e o frio do vento que batia na encosta, chegando até mesmo a nos desequilibrar. Não demorou muito para começarmos a pensar num plano B.

    Abrindo um parêntese, no começo de 2022, quando conversamos sobre a escalada desta via, o Fernando tinha a idéia de dormir no cume, algo que é comum a muitas duplas que não chegam a tempo de descer com segurança. Pensamos a respeito e, com base em muitas dicas e relatos, achamos melhor subir o mais rápido possível, desconsiderando esta opção. É claro que dormir no cume , de maneira bem confortável, iria aumentar bastante o peso de nossas mochilas se fossemos levar saco de bivaque e/ou isolante, saco de dormir etc., o que iria atrapalhar a escalada. Por isso só subimos com o mínimo (segunda pele para pernas e corpo, fleece, corta-vento decente, gorro, meia extra, balaclava e cobertor de emergência, além de duas velas que poderiam ser usadas em conjunto com o cobertor para aquecer rapidamente).

    Voltando à situação atual. Eram 20h, batia um vento fortíssimo na face por onde descia o rapel, e bem no cume, onde se encontrava o livro para assinatura e alguns blocos grandes, a temperatura estava razoavelmente agradável e não batia vento. Sem comentar nada ainda com o Fernando, estava pensando na possibilidade de ficar por lá até o amanhecer, o que teria a vantagem de descermos com mais segurança (tanto pela luz do dia quanto pela temperatura), e de ter a bela vista lá de cima, já que chegamos a noite e não pudemos contemplar a paisagem. Pesando os prós e contras rapidamente achei melhor ficarmos por lá mesmo. Quando comentei com o Fernando ele também estava com essa idéia, e fomos buscar um refúgio (sabíamos que havia algumas opções para ficar abrigado no meio de alguma grutinha, de acordo com relatos e confirmação do próprio Sr. Mascarim no dia anterior).

    Subi nos blocos maiores do cume e logo vi uma caverninha formada por eles, um espaço que caberia nós dois sem aperto, com possibilidade até de esticar o corpo todo. Melhor que essa descoberta foi encontrar um isolante térmico, uma grande manta de plástico bolha e uma grande lona feita com plástico preto de saco de lixo. Estiquei o isolante e o plástico bolha no chão da caverna, e dei de cara com uma aranha preta de tamanho mediano. Pelo pouco que entendo de aranhas não sabia se esse bicho seria venenoso ou não, só sei que não era uma armadeira, mas era maior que uma. Fiquei encarando-a, de vez em quando virava para ver se ainda estava ali e ela ficou quietinha. Depois de certo tempo sumiu, mas já nem ligava para ela, estávamos cobertos com roupa, gorro, lenço, só os olhos de fora, confiei que ela fosse ficar na dela mesmo. Enquanto isso o Fernando conseguia tampar a entrada principal com a grande lona, usando muita habilidade para encaixar todos os friends entre o plástico e algumas fendas, evitando assim que passasse muito vento por lá.

    Caverninha do bivaque

    Perrengue noturno

    Após a arrumação geral do abrigo provisório ficamos ali umas 2 horas, creio que cochilei alguns minutos, mas depois das 22h o vento forte começou a bater e entrar por frestas da caverna. Até às 4h ele não iria parar nem por 1 minuto, então o frio bateu por este longo tempo. Senti bastante frio no pé e um pouco nas pernas, não ajudou o fato que o tênis tinha ficado molhado pela trilha ainda lá antes da via, e não secou mesmo eu deixando-os pendurados na minha cadeirinha do lado de fora. Deste modo, a meia seca extra que eu tinha levado na mochila tinha ficado molhada, pois usei-a com o tênis achando que íamos rapelar durante a noite. Tentei usar as cordas para isolar meus pés do chão e do vento, deve ter ajudado um pouco, mas não resolveu. Em alguns momentos ficávamos com calafrio, outros fazíamos vídeos dando risada da situação, outros arrumávamos a lona, o isolante...foram mais de 8 horas que se arrastaram e tiramos alguns poucos minutos de sono. O Fernando ainda tirou uns cochilos de pé, apoiado na rocha, ficando com o menor contato do corpo com a rocha fria. Ficar sentado também era uma opção as vezes. Quem já passou por uma situação dessa sabe como é. Para mim o que funciona é pensar na manhã que logo vai chegar, o sol vai aquecer e nos fazer esquecer da noite fria. Já tinha passado por isso em Itatiaia, com duas noites seguidas geladas sem dormir na barraca. Para o Fernando era um passeio no parque, já que passou inúmeras situações iguais ou pior, como quando ficou uma semana sozinho numa barraca na Patagônia invernal tomando chuva, vento e neve, e nenhum sol para secar suas roupas e equipamentos por todo esse tempo.

    O hotel mais alto da Serra do Mar

    Amanhece

    Pouco antes das 6h eu já estava querendo sair da caverna, mas o tempo ainda estava fechado, nenhum sinal do sol, então ficamos aguardando um pouco mais até que o ambiente lá fora estivesse menos hostil que dentro. Mais alguns minutos e saímos, aproveitando a luz para pelo menos vislumbrar a paisagem 360 de um mar interminável de montanhas, e uma camada de nuvens no horizonte que ainda escondia o sol à leste. Enquanto arrumávamos os equipamentos o sol deu as caras completando o espetáculo. Começamos a procurar o rapel por volta das 7h30. A encosta para alcançá-lo tem uma certa exposição, e o vento ainda teimava em soprar por ali, porém com menos força e numa temperatura mais amena. Uns vinte minutos se passaram até o Fernando conseguir localizar dois grampos atrás de um bloco, e com ajuda de uma foto que peguei em um relato, só podia ser ali. Desci com a corda até lá, olhamos a direção pelo croqui, montamos o rapel, e fui o primeiro a descer numa parede negativa, as 8h. Logo localizei a próxima parada e o Fernando veio na sequência.

    Rapéis intermináveis

    O rapel segue a via Silvio Mendes, primeiro caminho a chegar ao cume do Pico Maior, uma escalada que passa por chaminés estranhas, matos, fendas, face e até cabos de aço no início de sua rota original. Continuamos por mais uns 4 rapéis, geralmente desviando um pouco para esquerda, até chegamos numa chaminé bem positiva e cheia de mato e pequenas árvores. Dali desci usando duas árvores de parada para rapel, brigando com fendas, mato e buracos que tentavam engolir a corda. Mais uns dois rapéis em grampos P e às 11h30 estava na chamada P2, segunda parada da via, onde há um confortável platô e até uma espécie de poça alta com bastante água. Esta água, logicamente, fica parada, então é bem suja com detritos diversos da mata em volta, mas por vezes é usada por escaladores sedentos. Eu tinha levado Clorin (pastilha para purificar água com cloro, luxo que alguns esquecem), mas ainda tinha quase meio litro de água dos meus 2L que levei no início da aventura, e o Fernando tinha 1 litro (tinha subido com 2,5L), estávamos “confortáveis”.

    Um dos primeiros rapéis da Sylvio Mendes

    Desde ponto da P2 há uma trilha, ainda na encosta do Pico Maior, em direção a face leste da montanha. Sabíamos bem dela, que inclusive passa por trechos de mata fechada, e que tem certa exposição em alguns momentos, então rapidamente eu achei a clareira mais óbvia de onde se inicia a trilha. Enrolamos a corda e o Fernando a levou nesta parte, fui na frente procurando o caminho. Em certo momento a trilha, já razoavelmente aberta, vira à esquerda, descendo um grande degrau de terra, e desemboca num costão positivo, mas extremamente exposto para desescalar. Ouvimos que havia trecho para caminhar em pedra, com alguma exposição, mas estávamos realmente espantados.

    Fui e voltei duas vezes em dúvida, ninguém queria se arriscar a descer por ali. Após alguns bons minutos perdidos pensamos “não é possível que seja por aqui”. Voltei mais um pouco, até onde a trilha anterior encosta na pedra da montanha, e encontrei um caminho bem estreito de mato pisado, colado à rocha, seguindo para a esquerda. Desconsiderando a rota suicida onde o Fernando se encontrava mais abaixo, o chamei para me seguir, e fomos indo por essa trilha, bem mais estreita, mas menos arriscada. Mais uns 5, 10 minutos e chegamos em uma parada dupla, fazendo um curto rapel. Este não era o rapel da P1 para o chão, e não sabíamos que havia esse rapel intermediário, mas seguimos mesmo assim. Poucos minutos de mais trilha vertical e finalmente achamos o último rapel que faríamos: a P1 da Sylvio Mendes, que caia direto para a terra firme, no col que separa o Pico Maior do Capacete (procuramos a famosa árvore maior do col, sobre a qual o livro de guia das 50 vias clássicas do Brasil comenta, não tínhamos certeza qual seria, mas isso não foi problema, a trilha estava óbvia ali).

    A trilha de volta

    Finalmente em terra firme, dei o último gole da minha garrafa, comemos alguma coisa, enrolei a corda como mochila e desta vez eu a levaria na trilha final. Nos colocamos a andar, seguindo o caminho natural para o Capacete, e fui buscando o caminho que o circunda, numa linha de nível mais alta possível, para se evitar o erro de descer no vale antecipadamente. Este trecho não tem uma trilha definida, mas várias aberturas num capinzal, porém ajudou muito o fato de conhecermos o Capacete, já que fizemos a CERJ lá em 2019, e descemos pelo caminho mais fácil, a via Sergio Jacob, na Face Leste. Rapidamente encontramos a Sergio Jacob, e sua vizinha Rodolfo Chermont, e seguimos, mais ou menos, a trilha que fizemos 3 anos atrás. Infelizmente, na pressa, esquecemos de olhar para trás, tirar uma foto e dar um adeus mais de perto ao Pico Maior. Após 1h30 de trilha a partir do Pico Maior, passando por muita descida em zigue-zague, que minou as coxas e panturrilhas, paramos para tirar umas fotos na Pedra do Sofá, e chegamos no abrigo do Mascarim, sãos e salvos.

    Chegando no abrigo trocamos idéia com o sr. Paulo e outros montanhistas que ali estavam, tomamos um pouco de cerveja para comemorar, aproveitei o banho quente da casa, e começamos a nos organizar. A idéia era dormir em Teresópolis ainda neste dia, para adiantar o caminho de volta, mas cansados como estávamos fizemos um “jantar” por volta das 17h e fomos dormir lá na cabana do abrigo mesmo, às 18h. Após praticamente 12h de sono de qualidade, levantamos as 6h daquela terça-feira descansados, tomamos um pré-café da manhã, tiramos mais fotos e partimos as 7h30. No abrigo o sol imperava, o Pico Maior e seus vizinhos reluziam a forte luz, mas quando descemos algumas dezenas de metros, estrada de terra abaixo, a nuvem já encobria o céu, mostrando que realmente as montanhas possuem seu próprio microclima. Chegamos no Paraíso das plantas em Teresópolis de novo sob forte névoa e não pudemos ver o Dedo de Deus e o restante da Serra dos Órgãos. Comemos um pastel especial da casa e outras guloseimas, por volta das 9h30 ali. Seguimos para Nova Odessa, parando somente na Rod. Carvalho Pinto para almoçar, e chegando na terra natal às 16h30, levando na bagagem uma grande conquista, algum perrengue, e muita história para contar.

    Lições

    Naquele domingo, enquanto subia a interminável via, pensava que nunca mais me meteria naquela montanha gigante, me dando por satisfeito subir uma vez. Mas um escalador de vias tradicionais costuma ter memória fraca dos perrengues, então nunca vou dizer nunca. Quem sabe daqui 10, 20 anos, com algum filho ou outra dupla? Repetindo esta via ou não acho útil deixar algumas lições para quem almeja subir este monstro. Em primeiro lugar, considere que a possibilidade de pernoitar no cume é bem real. Separe uma boa meia seca somente para o momento de dormir. Não marque com muita antecedência uma única data só para a escalada, tenha pelo menos uma outra data reserva. Se tivesse outra opção de data talvez teria postergado, já que eu e clima não estavam em ótimas. Além do que a ansiedade pode prejudicar tendo só uma data. É claro que pode não haver “momento ideal” e isso faz parte do montanhismo, mas duas opções são melhores que somente uma. Entre com uma mentalidade de que a qualquer momento pode aparecer um lance mais chato, mas que não há nada instransponível para quem guia quintos em tradicional. Entrosamento com a dupla é essencial, assim como uma sapatilha confortável que você sabe que pode usá-la durante todo o dia sem tirar (ambos foram nosso caso). Esteja ciente de que, mesmo com todos relatos e vídeos disponíveis, sempre haverá trechos não detalhados numa via deste porte. Cada escalador tem facilidades e dificuldades com certos lances, então o que pode ser difícil para mim pode ser tranquilo para você e vice-versa.

    Agradecimentos

    Agradecemos às dicas e apoio dos amigos Alexandre Alves, Divanei Paula, Victor Messias, Juliano Bollani e Paulo Mascarim; ao livro 50 vias clássicas do Brasil, da Companhia da Escalada, e vídeos diversos (Sensorial adventure, Escaladas Clássicas, On the rocks, Montanhar filmes, etc.)

    Vocabulário: para quem não é da escalada seguem as definições de termos usados aqui:

    Guiar: ser o primeiro escalador a subir, aquele que leva a corda primeiro e vai passando as proteções, normalmente aquele que se expõe mais ao risco para depois proteger quem vem em segundo.

    Cordada/trecho/enfiada: a distância entre uma parada e outra de uma via, geralmente numa escalada tradicional ela tem de 20 a 60m, dependendo de diversos fatores.

    Crux: o lance mais difícil de uma cordada ou via, seja por dificuldade técnica, física, mental, ou uma mistura desses elementos.

    Proteção móvel: equipamento que o guia leva consigo para encaixar na rocha e passar a corda, evitando uma queda maior. O escalador que vem de segundo remove a peça quando sobe. Pode ser passiva, como o nut, que é uma peça sólida de metal encaixada numa fissura similar a um gargalo, ou móvel, como o friend, encaixado numa fenda e que tem um dispositivo que se abre quanto mais é forçado para baixo.

    Aderência: parte da via em que não há agarras, mas a inclinação é positiva, tendo que se usar a aderência da borracha da sapatilha para se manter em pé e movimentar

    Felipe Romano
    Felipe Romano

    Publicado en 30/06/2022 16:27

    Realizado desde 10/06/2022 al 14/06/2022

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    2 Comentarios
    Divanei Goes de Paula 21/07/2022 09:35

    Hahahahahaha, boa mano, PARABENS pelo excelente relato e pela escalada, claro ! Bem vindo ao time dos que já se fuderam nessa via, vocês são escaladores de primeira linha . Escalar o Pico Maior acho que é uma das faces mais gloriosas da vida de um escalador no Brasil, mesmo que hajam outras muiiiiito mais difíceis, essa montanha é especial por tudo que envolve  e  pelo simbolismo que ela representa.

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    Felipe Romano 22/07/2022 08:59

    Obrigado meu amigo! Com certeza, uma clássica épica indiscutível. Guiando ou seguindo, só respeito a quem chega lá e desce de volta. Li seu relato inúmeras vezes pra ajudar com os betas, foi de extrema importância e diversão, valeu!

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    Felipe Romano

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