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K2 - A clássica abençoada
Escalada da via tradicional K2, no Corcovado - Rio de Janeiro
Escalada MontanhismoJunho de 2024. Tinha acabado de voltar da Bolívia, onde tive uma primeira experiência em alta montanha. O objetivo principal seria o cume do Huayna Potosi (6.088), o que não foi possível (mais detalhes em outro relato). Apesar do vento violento e de ter passado um dia péssimo com vômito e diarreia em La Paz poucos dias antes do ataque ao cume, fiquei frustrado porque acho que com alguns detalhes logísticos seria possível. Dessa frustração veio a vontade de equilibrar a conta conquistando uma via de dificuldade que já estava nos planos há muito tempo: a V de Vingança, do Bauzinho (SP). Fiquei semanas entrando em vias mais difíceis para me preparar para ela, e eis que, no domingo do 11/8, o plano mudou.
Neste dia, escalando na pedreira de Campinas com o Nelson, conversávamos sobre escalada tradicional, e ele disse que já tinha feito a V de vingança, e estava afim de fazer a K2. Claro que era minha vontade também, mas por ser mais longe seria mais difícil ir até lá tão cedo. Comentamos sobre as possibilidades logísticas e chegamos à conclusão que era possível arriscar: ir de Campinas até o Rio de Janeiro de ônibus durante a madrugada, chegar cedinho, escalar, e voltar no mesmo dia, pegando outro ônibus noturno. Ficou combinado que iríamos já dali a duas semanas, bastaria confirmar os detalhes. No dia seguinte vimos os horários de ônibus e parecia factível. Na mesma semana compramos as passagens.
No começo da semana seguinte, a previsão do tempo não estava muito favorável, ia aumentando a chance de chuva. Pensamos em adiar a viagem, mas na véspera da partida a previsão abriu completamente, dando sinal que sábado seria perfeito para escalada (como foi) e que domingo choveria (e que choveu).
Na sexta-feira à noite deixei meu carro na casa do Nelson em Campinas e fomos para a Rodoviária. Ônibus leito confortável e pontual. Deu para dormir razoavelmente bem e chegamos pouco antes das 7h no Rio. De lá pegamos um Uber para o apto da Gina, conhecida do Nelson que já tinha escalado com ele. Café da manhã rápido e partimos, os três, para o centro de visitante Paineiras, no Corcovado. Eram 8h e dali iniciamos a caminhada de 30 minutos pela estradinha do Corcovado e mais uma trilha fechada até a base da K2. Para quem não conhece, a K2 é uma das vias mais clássicas do Brasil, uma escalada de uns 150m que inclui diversas técnicas, como fendas, aderência e agarras, tem um visual incrível, e está aos pés de, nada menos que, um dos pontos turísticos mais famosos do mundo. É uma das mais procuradas desta cidade que possui centenas, senão milhares de vias. A dificuldade técnica é de quarto grau no geral, com alguns lances de IVsup e V, exposição E2.
A escalada
Quando decidimos escalar a K2, duas semanas antes, a primeira pergunta foi: quem vai guiar o primeiro lance? Ambos tínhamos vontade, pois é um lance muito interessante de fenda, e gostamos de guiar. Mas, antes de decidir no par ou ímpar, o Nelson gentilmente me cedeu esta honra. 8h45 tirei o pé do chão e comecei a subida. Apesar da fenda em quase toda extensão desses primeiros 30 metros, a via é antiga, e possui grampos fixos. Fui utilizando estas proteções, mas em dois momentos usei uma proteção móvel. Em algumas partes a pedra perde a aderência no pé, então achei melhor proteger mais. Sem muitos problemas logo cheguei a primeira parada, porém, como estávamos em 3, achei melhor emendar até a segunda parada (uma travessia tranquila com um visual imbatível da costa fluminense, totalizando 45m) para agilizar a escalada.
Abrindo um parênteses aqui, eu sempre escalo em dupla, que é o método mais tradicional e mais rápido. Dessa vez, como estávamos em 3, seria praticamente a primeira vez (segunda na verdade), que iria guiar desse modo. Quando se está em 3 o guia, quando já está na parada acima, pode dar segurança para um, ou os dois simultaneamente. Escolhi dar a segurança simultânea pelo ATC-Guide que comporta duas cordas, já que agilizaria. Apesar de alguma bagunça inevitável com as cordas, acabou funcionando bem. Primeiro veio o Nelson, e quando ele estava a uns 5 metros do chão, a Gina veio atrás. Ambos em bom ritmo.
Todos na parada agora, e o Nelson acabou me passando a honra da guiada novamente, e lá fui eu para o famoso lance do crucifixo. Este lance tem uma fama de duro, mas achei as passagens antes e depois mais apimentadas que o próprio. Não é bom menosprezar. Passando dessa parte há uma viradinha de bloco pouco óbvia para a direita e a subida de uma rampa chega na árvore da próxima base. Ali a corda estava dando um arrasto enorme devido às curvas da via, tive que tomar cuidado pra não ser puxado por ela. Mais uns 35m escalados, segunda parada feita num bom platô, e sobem os dois participantes.
A próxima enfiada começa no lance do palavrão, que tem esse nome pois se dá em um diedro com fendas, sem proteção fixa, de onde muita gente já caiu no platô abaixo e se machucou. Porém, com proteções móveis esse lance não preocupa. E proteção móvel não faltava. Novamente Nelson não estava muito entusiasmado para guiar e lá vou eu esticar a corda. Até gostaria de um refresco para curtir, mas claro que estava feliz de guiar, e fiquei ainda mais depois de chegar na próxima parada. O lance do palavrão é tranquilo, legal para quem gosta de escalar com móveis, apesar de curto. Logo a via segue para a esquerda, numa travessia diagonal sem proteções, mas fácil. Então aparece uma bela laca em formato de V, onde protegi os dois lados com fita longa. Lance mais técnico vertical, mais um móvel para proteger os participantes e uma travessia mole pra esquerda. Ali se chega num platô de terra e mato, sem parada fixa. Usei uma árvore e o peso do meu corpo (aliado ao atrito, força de gravidade e forças sobrenaturais) para dar segurança aos participantes.
Todos na parada e rapidamente já iniciei a última guiada, um lance de 20m abaixo de uma grande contenção de concreto, mais vertical que os demais e com pequenas agarras, ou aderência. Primeira chapa um pouco alta por sair de um platô, mas sem problemas de se alcançar. O crux se dá logo depois, e tive que dar uma puxadinha na costura para me equilibrar e ganhar o lance, que não é tão fácil. Depois já facilita e a pedra dá lugar à terra, onde se faz a parada em uma árvore (algumas são frágeis, a mais segura fica à direita no platozinho). Cheguei ali às 11h45, totalizando exatas 3h desde que iniciei a via. Tempo bom, considerando a cordada em 3. Meia hora depois chegou a Gina, última da cordada, somando assim 3h30 no total. Agora era só andar uns 15m e pular o parapeito da base do Cristo Redentor.
Chegando no ponto turístico aquela reação natural das pessoas olhando para três escaladores vindo sabe-se lá de onde. O lugar estava lotado! Mal havia espaço para pular o parapeito. Tiramos fotos, demos uma olhada no visual e descemos com a van (de graça, pois os escaladores “merecem” rs). Dali fomos direto almoçar nas Laranjeiras, e partimos para o segundo tempo: morro da Babilônia na Urca.
Segundo tempo: Urca – Morro da Babilônia
Chegamos na Urca pouco depois das 15h, passamos pela entrada de funcionários do bondinho, onde uma funcionária anota nossos dados e até a via que vamos escalar. A ideia inicial era fazer o Diedro Pégaso, como o nome diz, um diedro bonito todo em fenda com proteção móvel. Andamos bastante margeando o morro da Babilônia para a direita, já cansados pelo acúmulo do dia, mas infelizmente a trilha estava bem fechada logo antes da via. Pensamos em fazer qualquer outra via e, na volta para a entrada da trilha demos de cara com um escalador solando. Eu tinha certeza que conhecia o sujeito, era um personagem famoso, mas não lembrava o nome de jeito nenhum.
Enfim, encontramos uma via bem protegida que parecia legal, algo em volta do IV grau, e decidimos escalar ali. Dessa vez o Nelson resolveu subir primeiro, guiando. Como já estava tarde resolvemos só fazer a primeira cordada mesmo. Assim que ele desceu da via o famoso escalador solista apareceu. Trocamos uma idéia e assim que ele falou o nome, Antonio Paulo, lembrei que o seguia no instagram, e que ele abrira diversas vias Brasil afora desde os anos 80. Infelizmente só fui lembrar que ele era o escritor do livro “A Escalada Brasileira” no dia seguinte. Eu tenho esse livro há algum tempo, e é excelente! Já fica aqui a recomendação. Depois de todos escalarem a via que o Antonio Paulo disse acreditar ser a “Vilma Arnaud”, voltamos em direção à entrada. Ainda escalei mais uma cordada de outra via (Ricardo Prado, creio), curtindo um som que vinha lá de baixo, da base do bondinho, e fechando um dia bem proveitoso.
Saímos da base da Babilônia já no escuro, demos uma passada na praia Vermelha, fomos até a mureta da Urca tomar umas APAs, e voltamos para o apartamento tomar banho e comer algo. Pegamos o ônibus leito de volta as 22h40 e chegamos em Campinas no amanhecer. Viagem tranquila, e logística bem-sucedida. Ainda tinha o domingo pra descansar. No fim das contas valeu muito a pena o plano, com mais uma clássica conquistada.
Agradecimentos às dicas do Alexandre Alves e os parceiros de escalada, Nelson e Gina.
