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Fernando Cabral 03/03/2021 17:25
    Pemican – Pouco peso, muita nutrição e energia de sobra

    Pemican – Pouco peso, muita nutrição e energia de sobra

    Mistura de carne e banha, o pemican é a comida mais funcional que existe para se levar na travessia.

    Trekking Deserto Acampamento

    Pemican – Pouco peso, muita nutrição e energia de sobra

    Pemican é uma comida tradicional inventada pelos índios americanos e canadenses. Para quem faz trilha, aventura ou expedição, suas propriedades são insuperáveis: alto valor nutricional combinado com alta densidade calórica. Ele pode ser comido cru, frito, cozido, assado ou derretido como caldo frio ou quente. Para completar, é fácil de fazer em casa e pode ser guardado por anos e até décadas. Mesmo sem geladeira e sem conservantes artificiais, sua longevidade é enorme. Mistério é explicar por que comida tão qualificada para as trilhas é tão pouco conhecida.

    Quem faz trilha procura comida leve de carregar, fácil de conservar, rápida de preparar, gostosa de comer. Além disto, deve ser nutritiva e energética. Finalmente, não deve deixar lixo.

    A leveza vem de dois fatores: a eliminação da água e a alta densidade nutricional e calórica.

    A eliminação da água se dá pela liofilização ou pela desidratação. Já a densidade nutricional e calórica, estas dependem da matéria-prima usada e do modo de preparar. Se a matéria-prima não for nutritiva e densa, a comida de trilha resultante será pobre. Mas aí está o busílis: qual a matéria-prima ideal?

    Um dos mitos que ainda persistem entre atletas e trilheiros é que o carboidrato é a melhor fonte de energia. Apesar da sua persistência e ampla disseminação, esta crença é baseada em mito. Não contém nada de verdade. Do ponto de vista calórico, é fácil de ver: um grama de carboidrato gera 4 calorias, mas um grama de gordura gera 9 calorias. Portanto, enquanto gastamos 500 g de carboidrato para carregar 2.000 calorias, gastamos apenas 222 gramas de gordura para a mesma quantidade de calorias. Uma considerável redução de peso.

    Do ponto de vista nutricional, o carboidrato nem é mesmo nutriente essencial. Ou seja, não precisamos comer carboidrato. Do pouco que nosso corpo precisa, o fígado produz num processo chamado gluconeogênese. Para isto ele pode usar tanto a gordura quanto a proteína.

    Portanto, entre os macronutrientes, essenciais são apenas as gorduras e as proteínas. Mais precisamente: os óleos graxos essenciais e os aminoácidos essenciais.

    Nosso cérebro precisa de um pouco de glicose, mas toda ela pode ser produzida pelo fígado. Esta glicose necessária representa cerca de 30% da demanda energética do cérebro. Os restantes 70% o cérebro satisfaz (e se compraz) com metabólitos da gordura, especialmente o beta-hidroxibutirato.

    Além disto, carboidrato incentiva a produção de insulina. Insulina em excesso leva ao ganho de peso, ao diabetes tipo 2 e às doenças cardíacas e vasculares. Já as gorduras animais e algumas vegetais (mas não os óleos de sementes!) previnem e até curam estes males.

    Portanto, do ponto de vista da nutrição e da leveza na trilha, devemos substituir todo o carboidrato por gorduras. Estas podem ser animais (porco e vaca, por exemplo) ou vegetais bem escolhidos (gordura de coco e azeite de oliva, por exemplo. Mas atenção: nunca óleos de sementes, como arroz, soja, milho!).

    Assim como não podemos abrir mão das gorduras, tampouco podemos abrir mão da proteína de alta qualidade. Neste sentido, suas melhores fontes são também os produtos animais: carnes, ovos, e queijos. Estes últimos só para quem não tem problema com caseína e outras proteínas do leite.

    É neste contexto de alimento nutritivo e balanceado entre proteínas e gorduras de qualidade e sem carboidrato que entra o pemican, nosso alimento em destaque hoje.

    O pemican tradicional é feito apenas com dois ingredientes: carne e gordura. Mais nada. Originalmente não se usava nem mesmo sal. Hoje não abrimos mão do sal. Sal, a propósito, é um conservante natural e saudável. Nas trilhas, em dias quentes, com muito suor, precisamos muito dele.

    Com densidade de 6,7 calorias por grama, não existe nenhum alimento completo que se compare a ele. Ou seja, com apenas 300 gramas de pemican, nós temos todos os macronutrientes necessários para uma dieta de 2.000 calorias por dia.

    Estes 300 gramas também não deixam muito a desejar quando o assunto são os micronutrientes: o pemican fornece quase tudo que precisamos em termos de vitaminas e minerais. Sobre isto falaremos mais abaixo.

    História

    O pemican era um alimento usado principalmente pelos índios da região norte e nordeste dos Estados Unidos, até o Canadá. Quando os exploradores brancos chegaram na região em busca de pele e outras riquezas, o pemican se transformou no único alimento que levavam em suas canoas.

    Feito originalmente apenas com carne magra e gordura, logo os europeus introduziram o sal. Não demorou muito e também passaram a agregar alguns temperos, como pimenta. Finalmente, introduziram um percentual de frutas secas da estação. Este hábito de acrescentar frutas secas (mas não frutas doces) ainda é mantido por algumas pessoas.

    Mas, convém insistir, o legítimo e tradicional pemican é feito somente com carne magra desidratada e gordura animal. O processo de fabricação é simples.

    Fabricação do pemican

    1) Pega-se a carne magra, corta-se em pedacinhos ou tirinhas. Pode-se moer também. Depois aplicam-se o sal e outros temperos a gosto e seca-se até ficar quebradiça. Se a carne não for magra, é preciso eliminar toda a gordura visível antes de desidratar.

    2) Depois de seca, tritura-se a carne até virar pó. Quanto mais fino, melhor. Os índios usavam pilões e pedras. Hoje em dia usamos liquidificador ou processador de alimentos.

    3) À parte, prepara-se a gordura. Pode ser a gordura do próprio animal que forneceu a carne. Na falta, serve qualquer gordura animal. Para quem não sabe preparar a gordura, pode-se comprar a banha de porco no supermercado. A mais pura que puder se encontrada. Quem quiser pode também usar óleo de coco, óleo de palma ou azeite de dendê.

    4) Eleva-se a temperatura da gordura até ficar bem líquida (uns 50 Celsius).

    5) Em seguida mistura-se a gordura quente com o pó de carne na proporção de 1:1 em peso. Ou seja, para cada 50 gramas de carne em pó adicionam-se 50 gramas gordura.

    6) Mistura-se bem. Sabemos que está pronto quando temos uma pasta bem uniforme.

    7) Para guardar, coloca-se em potes de vidro e lacra-se. Pode-se também deixar um tempo na geladeira. O produto ficará bem duro. Aí é só cortar em tabletes ou cubos

    Lacrado e na geladeira este produto se conserva por séculos. Séculos, aqui, não é força de expressão. Em potes de vidro lacrados e longe da luz, conserva-se por décadas mesmo fora da geladeira. Não há prazo de validade conhecida para este produto (umidade, luz e calor são inimigos da conservação de alimentos).

    Se quiser aumentar mais ainda a vida do produto, acrescente uma pequena camada de gordura antes de tampar. Uns 5 milímetros bastam. Quando for consumir, anos depois, remova esta pequena camada e pronto. Seu pemican estará intato.

    Pemican para a trilha

    Em casa deve-se usar vidro e cerâmica. Na trilha não temos geladeira e é incomodo levar louça, vidro ou qualquer vasilha pesada. Então, vale o plástico. Separamos em porções suficientes para uma refeição. O que é “uma refeição” variará de pessoa para a pessoa. Eu costumo preparar unidades de 50 g e de 100 g. Elas dão, respectivamente, 330 e 660 calorias. Uma unidade de 100 g dá um almoço ou um jantar. Se eu estiver com mais fome, como uma unidade de 100 g e outra de 50 g. Isto perfaz uma super-refeição com 1.000 calorias.

    Em embalagens preparadas assim, é só abrir, comer e guardar o saquinho para levá-lo de volta à civilização. Nenhuma vasilha a lavar. Não precisamos assar, cozinhar, fritar. Mas podemos, se quisermos.

    Como comer o pemican

    O pemican pode ser comido diretamente do bornal. É simples, prático e rápido. Mas, é possível variar e criar requintes.

    No acampamento, havendo gás e fogareiro, o pemican pode ser cozido, assado ou frito na própria gordura. Se o dia estiver frio, ele pode ser dissolvido em um pouco de água quente. Dá uma bebida energética e reconfortante. Funciona como caldo de carne. Se você gosta de macarrão ou arroz (lamento!) pode acrescentar o pemican por cima, logo antes de servir. Ou pode usar onde e como usaria o caldo de carne.

    Quanto comer por dia?

    A necessidade diária de alimentos varia com a idade, peso, sexo e quantidade de esforço que a pessoa fez no dia. No meu caso, na trilha, tomo 2.000 calorias como referência. Há dias em que gasto muito mais do isto. Para percorrer 50 quilômetros numa trilha desnivelada posso chegar ou superar 3.500 calorias. Mas, para esforços de até uma semana, este deficit diário não me preocupa: tiro a diferença da gordura corporal. Quando volto para casa, recupero fácil o peso que perdi.

    Assim, tomando 2.000 calorias como referência, basta levar 300 gramas de pemican para cada dia na trilha. Para um final de semana, 600 gramas são suficientes. Tecnicamente, não precisamos de mais comida alguma.

    Valor nutricional

    O valor nutricional do pemican é a soma dos nutrientes da carne e da banha que foram usadas no preparo. Uma porção de 300 gramas fornece 105 gramas de proteína de altíssima qualidade (alto valor biológico). Fornece também 176 gramas de gordura de primeira (banha de porco ou de vaca).

    Além da proteína, a carne fornecerá cálcio, magnésio, manganês, ferro, potássio, cobre, zinco, retinol, tiamina, riboflavina, piridoxina e niacina. A banha também fornece traços destes minerais e destas vitaminas todas. Mas, o mais importante é que fornece também gorduras saturadas e monoinsaturadas da mais alta qualidade.

    É possível questionar se o pemican tem todas as vitaminas e minerais nas quantidades necessárias. Talvez falte uns microgramas aqui e ali. Mas, para uma trilha de um final de semana ou mesmo de uma semana inteira ou duas, o organismo nem vai notar. No entanto, para quem insiste em ter uma alimentação nutricionalmente perfeita todos os dias, os minerais podem ser acrescentados durante a fabricação. Eles entram junto com os temperos. Por exemplo, alguns gramas de cloreto de potássio, sulfato de magnésio e talvez algumas gotas de lugol (iodo).

    As vitaminas também podem ser acrescentadas durante a fabricação. Por exemplo, para cada porção diária, o acréscimo de 5 ou 10 gramas de pó de fígado liquida o assunto. Vai sobrar muita vitamina. Quem come fígado não precisa de pílulas de vitamina.

    Finalmente, para quem gosta de fibra, ela também pode ser acrescentada durante o fabrico. Ou pode ser consumida à parte. Uma pequena porção de alga ou de psyllium já resolve o problema. Mas este assunto ficará para outra ocasião.

    O sabor do pemican

    O pemican não é considerado uma iguaria, mas um alimento funcional. No entanto, ele pode ficar saborosíssimo. Para começar, tem um leve sabor de carne. Dependendo da gordura usada, toma nuances diferentes. Mas, independentemente disto, ele aceita qualquer condimento: pimentas, ervas, raízes; qualquer coisa. O importante é que os temperos estejam desidratados também. Eles podem ser acrescentados antes da desidratação ou depois, a qualquer momento.

    Pemican apartado

    A carne desidratada em pó se conserva muito bem. As gorduras também (exceto as poli-insaturadas como os óleos de semente). Então podemos também levar para a trilha os dois separados: carne em pó numa sacola, banha ou óleo de coco em outra. Misturamos e comemos conforme nossa conveniência. Não é bem o pemican. Também não se conserva por décadas, mas nutricionalmente, esta forma é equivalente ao pemican.

    Pemican e cetose

    Primeiro e antes de mais nada: não se deve confundir cetose com cetoacidose. Cetoacidose é uma situação grave, de emergência médica que pode matar. Geralmente está associada ao diabetes tipo I (antigamente chamado de diabetes infantil). Já a cetose (de novo: não a cetoacidose) é uma condição de funcionamento perfeito do organismo pois ela ocorre quando ele está usando gordura como fonte de energia. Esta gordura tanto pode vir dos alimentos como pode vir das nossas reservas corporais.

    Portanto, dizemos que há cetose quando a gordura é a fonte de energia do organismo. É como funcionam os bebês recém-nascidos, os animais que hibernam e os animais migratórios. Os cachorros, se não os estragarmos com carboidratos, também vivem em cetose. Por isto são capazes de caminhar muitas dezenas e até centenas de quilômetros sem parar.

    Quando o organismo está em cetose, a inflamação sistêmica baixa, o cérebro funciona com maior perfeição, a pessoa tem mais energia e maior clareza mental.

    Por conseguinte, consumir gordura em lugar de carboidratos, traz vários benefícios. Quanto ao peso, trocamos as 4 calorias por grama do carboidrato por 9 gramas de gordura. Quanto ao cérebro (um glutão!) damos-lhe o alimento de que ele mais gosta: beta-hidroxibutirato. Quando aos músculos, eles ficam felizes quando podem gerar toda sua energia a partir de gordura, uma fonte muito mais limpa do que o carboidrato (deixa menos radicais livres).

    Mas, se você é viciado em glicose...

    Se você é viciado em glicose, se você é daqueles que leva para a trilha arroz, macarrão, batata, aveia, granola, rapadura e gel, sua situação é complicada. Primeira coisa é se livrar deste vício. Sem isto você não terá condições de se beneficiar totalmente do pemican. Você poderá usá-lo, mas como complemento. Poderá comer uns bocados aqui e ali, poderá misturar com o macarrão e com o arroz, poderá até tomar o caldo feito com ele. Mas não poderá fazer trilhas somente com base nele. Não vai dar certo.

    Não vai dar certo porque, quando a pessoa deixa de comer carboidrato e passa a comer proteína com moderação e adota a gordura como fonte principal ou exclusiva de energia, o organismo faz uma atualização completa em sua máquina metabólica. Esta atualização pode levar de três dias a um mês. Neste ínterim, a pessoa costuma perder muito peso (até dois quilos por semana), urina muito, pode ficar com a cabeça leve e sentir fraqueza.

    Este efeito é normal quando o organismo está se adaptando. Ele é conhecido como “gripe da cetose”.

    Mas, há como tratar e como como evitar estas manifestações da transição: basta comer mais gordura ainda, aumentar a ingesta de sais minerais (especialmente sal comum) e tomar mais água. Com estes cuidados, a transição se acelera e a “gripe da cetose” desaparece quase instantaneamente.

    Por motivos óbvios, ninguém deve experimentar fazer a adaptação durante uma trilha de final de semana. A transição deve ser feita em casa. Depois dela feita, aí sim: pode confiar no pemican como única fonte de alimento numa trilha.

    Enquanto não toma coragem para fazer a transição, vá usando o pemican como caldo de carne e bocados salgados para mastigar durante as caminhadas. Melhor do que salaminho, pão, batata frita e outras porcarias que se costumam consumir nas trilhas.

    Depois da adaptação, você poderá levar menos peso e jamais sentirá fonte incontrolável. Uma porção de 150 g de pemican no café da manhã lhe dará energia até o final do dia. Pode acreditar.

    Fernando Cabral
    Fernando Cabral

    Publicado em 03/03/2021 17:25

    Realizada em 03/03/2021

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    9 Comentários
    Fernando Cabral 04/03/2021 09:32

    É realmente simples. Mas, qualquer dúvida que surja, estou à disposição. Embora eu não tenha deixado laro no texto, podemos também fazer pemican de peixe, de porco, de aves. O procedimento é o mesmo.

    Edson Maia 04/03/2021 09:50

    Qual o corte de carne bovina que vc recomenda?

    Fernando Cabral 04/03/2021 15:49

    Em tese, qualquer uma serve. Como vamos quase pulverizar, a maciez da carne fresca pouco interfere com o resultado final. O importante é que não tenha gordura entranhada. Pode parecer estranho, pois no final vamos embeber a carne em gordura. Mas é que carne gorda é mais difícil de desidratar. É pior para manipular também. Costumo usar fraldinha, coxão mole. Agora, se você for usar a gordura de vaca (os açougueiros geralmente dão os retalhos de graça), aí a gordura amarela que vem da picanha e do contrafilé dá um sabor especial (a gordura precisa ser preparada como se prepara a banha de porco).

    Fabio Fliess 04/03/2021 20:48

    Muito interessante Fernando. Obrigado por compartilhar.

    Edson Maia 05/03/2021 12:46

    Mais uma vez, valeu!!!

    Alberto Farber 10/03/2021 09:00

    Muito interessante e completa essa matéria. Eu uso banha de porco para preparar alguns alimentos no dia-a-dia, por mais pura que seja confesso que algumas vezes o sabor ficar um pouco forte. Acredito que uma carne bem temperada deixe mais leve o sabor da gordura. Esse caldo de carne para dias de inverno no final de um dia de trilha parece reconfortante. Vou experimentar.

    Fernando Cabral 10/03/2021 10:48

    Alberto, mesmo a banha que preparo em casa algumas vezes fica com cheiro forte característico. Costumo dizer que é banha de porco macho. A banha de fêmea é mais suave tanto no cheiro quanto no sabor (pelo menos, é minha percepção). Sinto isto mais quando como torresmo bem gorduroso (não tiro toda a banha dele). Mas quando uso para fritar ovos e fritar bifes, acho que o resultado final tem cheiro e sabor melhores.

    Fernando Cabral 10/03/2021 10:50

    Quanto ao caldo para dias frios na trilha, pode ter certeza: é altamente reconfortante. Mas, se você preparou para comer aos pedaços, ao fazer o caldo terá que acresentar mais sal. Fica melhor ainda (para quem gosta), acrescentar cebolinha e salsinha desidratadas depois que o caldo estiver pronto. É só esperar uns dois minutos mais, e pronto. Eu gosto muito.

    Fernando Cabral

    Fernando Cabral

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