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Guilherme Both 03/07/2020 12:40
    Cicloviagem chilena: Carretera Austral e Chile Chico

    Cicloviagem chilena: Carretera Austral e Chile Chico

    Cicloviagem pela Carretera Austral por cerca de 850 km, depois Chile Chico a Coyhaique por mais 240 km

    Cicloviagem

    Introdução

    Este é o relato da viagem que fiz entre os dias 4 e 21 de Fevereiro de 2019. Pedalei pela Carretera Austral por cerca de 850 km, até um entroncamento ao sul de Puerto Rio Tranquilo, onde troquei de rumo em direção a Chile Chico e voltei para Coyhaique, por mais 240 km.

    Além de ter um registro pessoal, minha intenção é compartilhar com outros ciclistas o dia a dia e outras informações que possam ajudar quem estiver planejando percorrer esta região, sem a pretensão de ser um guia detalhado. Para cada dia há um texto curto, dados do trecho, um perfil de elevação, uma imagem de satélite do caminho e fotos que tirei. No final, falo sobre como cheguei e voltei, sobre minha bicicleta e meus equipamentos. Publicações desse mesmo tipo ajudaram muito meu planejamento e entendo que escrever também é uma maneira de agradecer e dar continuidade a elas.

    Foi a minha quarta vez na Patagônia, foram duas vezes no lado argentino e duas no lado chileno. Quando fui fazer o circuito de Torres del Paine usei bastante um fórum para encontrar informações e sempre tinha uma pessoa que desencorajava as outras: essa barraca? Não! Não resiste aos tufões e ao granizo, que são comuns! Essa botina? Vai abrir no primeiro dia! É muito mais duro do que parece! Mandei uma mensagem privada com perguntas, já que parecia saber tudo sobre o parque. A resposta foi que não sabia responder por que só tinha ido no parque em uma excursão de um dia, fez um bate-volta de ônibus. Espero que este texto seja exatamente o contrário, a palavra de alguém que esteve lá e diz: vá!

    Dia 1: Puerto Montt – Hornopirén

    • Total: 101 km
    • Média: 12,9 km/h
    • Máxima: 54,9 km/h
    • Tempo: 7:47:10
    • Acumulado: 101 km

    Um dia fácil para começar, saindo de Puerto Montt a estrada é tranquila e asfaltada. Ainda bem, pensei, a distância pretendida era considerável para o primeiro dia. Isso só durou até passar a balsa em La Arena: a partir daí é muito sobe e desce em trechos em obras, sem asfalto. Sol forte, poeira e calor de 36°, inesperado para a Patagônia. A água que eu levava era pouco para essa condições, fui ajudado muitas vezes pelos funcionários das obras que ficavam em uma casinha parando ou liberando o trânsito, sempre tinham uma bambona de água. Dois pontos altos no dia: um grupo de pinguins passou nadando do lado da balsa, e depois de pedalar o dia todo dentro do mato, dei de cara com as montanhas em uma descida final até Hornopirén. Depois de todo o calor e estradas em más condições, recebi de bom grado o ar gelado na cara depois do pôr do sol em um longo declive pavimentado até a cidade.

    Dia 2: Caleta Gonzalo – Chaitén

    • Total: 57,8 km
    • Média: 11,8 km/h
    • Máxima: 51,6 km/h
    • Tempo: 4:52:49
    • Acumulado: 158,8 km

    Para ir de Hornopirén a Caleta Gonzalo peguei outra balsa, uma travessia de 4 horas dividida entre dormir, comer e observar o mar com os picos nevados ao fundo. Muitos ciclistas a bordo, imaginei que iria ficar para trás e saí logo que descemos. Me enganei, ultrapassei e fui ultrapassado algumas vezes por uma dupla escocesa e depois que me afastei ninguém mais passou por mim. O dia era quente e os carros levantavam muita poeira, a ponto de precisar parar um pouco para esperar o pó baixar. A floresta do parque Pumalin é muito densa e de certa forma lembra a Mata Atlântica brasileira. Conforme me aproximava da cidade de Chaitén, ficavam visíveis as marcas da erupção em 2008 do vulcão de mesmo nome: um bosque de troncos e árvores mortas com vegetação jovem crescendo e rios de água cinzenta e leitosa. Chegando em Chaiten no fim da tarde, dois golfinhos nadavam no mar em frente à praia de cinzas e troncos arrastados, com o vulcão Corcovado ao fundo.

    Chegada em Chaitén; o vulcão Corcovado é o biquinho ao fundo

    Dia 3: Chaitén – Villa Santa Lúcia

    • Total: 78 km
    • Média: 14,5 km/h
    • Máxima: 51,3 km/h
    • Tempo: 5:21:03
    • Acumulado: 236,8 km

    Tomei um chimarrão no camping em Chaitén e segui para o que seria um bom dia de pedalada; estrada deserta cercada de montanhas, com a vista das primeiras geleiras e nevados. O vale fica cada vez mais estreito e os picos mais inclinados, o bastante para que a neve não grude mais e fique só a pedra exposta. No final havia uma subida insana de 12 km, comemorei muito quando cheguei no final e vi a placa indicando a descida. Me surpreendi com a estrada e a mata destruídas até Villa Santa Lúcia, meu primeiro pensamento foi que a floresta tinha sido desmatada por ação humana, mas a profundidade e largura do leito do rio indicavam outra coisa. Uma chuvarada nas montanhas no ano anterior provocou uma enxurrada que desceu o vale e arrastou boa parte da pequena cidade.

    Dia 4: Villa Santa Lúcia – Camping Puesto Mesa

    • Total: 86 km
    • Média: 14 km/h
    • Máxima: 53,3 km/h
    • Tempo: 6:06:48
    • Acumulado: 322,8 km

    Na estrada tento seguir o princípio de “fazer os dias difíceis fáceis e os dias fáceis difíceis”. Tinha planejado ficar em La Junta no km 65 do dia, mas cheguei lá sem dificuldade e resolvi aproveitar para avançar mais 20 km até o camping Puesto Mesa, mesmo contra o vento que tinha aumentado bastante no meio da tarde. Antes, um cachorro quente com abacate para reanimar, chamado de completo. Buenisimo!

    Rio Palena

    Dia 5: Camping Puesto Mesa – Parque Queulat

    • Total: 50 km
    • Média: 11,6 km/h
    • Máxima: 41,6 km/h
    • Tempo: 4:17:28
    • Acumulado: 372,8 km

    Na passagem por Puyuhuapi havia muitas bandeiras Wenufoye nas casas e até na prefeitura. A bandeira é mapuche mas hoje é utilizada como símbolo da cultura nativa do sul do Chile em geral. O parque Queulat fechava as 17:00 e cheguei na portaria as 16:40. Tive sorte e peguei a última vaga no camping dentro do parque, o que me permitiu fazer a trilha depois do horário. Fiquei sozinho no mirador do Ventisquero Colgante, um glaciar “pendurado” no penhasco com uma cachoeira que de um minuto para o outro varia muito a vazão de água.

    Dia 6 Parque Queulat – Refugio Rio Cisnes

    • Total: 61,3 km
    • Média: 11,1 km/h
    • Máxima: 50,4 km/h
    • Tempo: 05:29:29
    • Acumulado: 434,1 km

    Depois do calor dos primeiros dias até gostei do frio e da chuva no Paso Queulat, afinal era para esse tipo de coisa que tinha vindo para a Carretera Austral. Me manti quente enquanto subia, a estrada com muito barro, curvas e subidas exigia bastante esforço. Na descida, passei muito frio com as roupas e luvas molhadas. Parei no Refugio Rio Cisnes com muitos ciclistas que conheci neste trecho, e terminei a noite tomando vinho com os ingleses Mike e Maia; Mike conhecia Porto Alegre, quando foi ao Forum Social Mundial. Dormi pouco a noite, o abrigo onde montei minha barraca era isolado e na beira do rio Cisnes, o vento era tão forte e barulhento que parecia que ia levar tudo embora. Além do ruído, tinha medo (infundado) de aparecer um puma: por via das dúvidas passei a noite com uma faca na mão!

    Chuva e frio no Paso Queulat, considerada a pior subida da Carretera Austral

    Dia 7: Refugio Rio Cisnes – Villa Maniguales

    • Total: 65,1 km
    • Média: 15 km/h
    • Máxima: 60,2 km/h
    • Tempo: 04:18:49
    • Acumulado: 499,2 km

    Queria ter avançado mais mas não havia nenhum camping mapeado no aplicativo iOverlander em uma distância razoável, então fiquei em Villa Maniguales. Foi legal, muitas pessoas que cruzei na estrada nos últimos dias estavam lá também. Entre eles, três espanhóis na primeira cicloviagem, com bicicletas baratas compradas em Santiago. Nos despedimos e nos reencontramos várias vezes ao longo da viagem. Eles completaram o trecho de cerca de 600 km de Puerto Montt a Coyhaique, o que prova que a peça mais importante da bicicleta é mesmo a que vai em cima do selim.

    Subida dura logo de saída, o Refugio Rio Cisnes é o gramado no vale

    Dia 8: Villa Maniguales - Coyhaique

    • Total: 87,6 km
    • Média: 13,6 km/h
    • Máxima: 46,5 km/h
    • Tempo: 06:24:44
    • Acumulado: 586,8 km

    Aqui se faz um desvio da Carretera Austral para as estradas X-50 e CH-240. Na figura acima, a Carretera Austral segue pelo vale na direita. O caminho é mais longo mas menos acidentado e na maior parte pavimentado, o que compensa os quilômetros extras. A CH-240 corre pelo Vale do Rio Simpson, é um trecho fácil e muito bonito, com exceção de uma grande subida para sair do vale já perto do final. Encontrei os amigos espanhóis quase em Coyhaique, festejando que tinham conseguido completar a viagem.

    Coyhaique a vista!

    Dia 9: Descanso em Coyhaique

    Dia 10: Coyhaique – Villa Cerro Castillo

    • Total: 99,1 km
    • Média: 13,7 km/h
    • Máxima: 62,2 km/h
    • Tempo: 07:12:12
    • Acumulado: 685,9 km

    Os santuários do Gauchito Antonio Gil são numerosos nas estradas argentinas, mas na Carretera Austral passei só por um na saída de Coyhaique. Parei para dar um alô na casinha vermelha característica e saí com a sensação que um gaúcho iria dar proteção pra outro na estrada. O dia foi quase todo a subir, até chegar perto do limite da vegetação no Parque Cerro Castillo. Tive a felicidade de ver dois huemuls, o cervo mais austral do planeta e ameaçado de extinção, que tem uma população estimada de menos de 2000 indivíduos. No final, uma vista fantástica do vale do Rio Ibañez e só alegria em 15 km de descida.

    Pedindo a proteção do Gauchito Antônio Gil. No creo en brujas pero...

    Curvas da descida até Cerro Castillo, uma das vistas mais famosas da Carretera

    Dia 11: Trilha Laguna Cerro Castillo e Villa Cerro Castillo – Camping Los Ñires

    • Total: 11,5 km
    • Média: 10,5 km/h
    • Máxima: 36 km/h
    • Tempo: 01:05:04
    • Acumulado: 697,4 km

    Dia de descanso mas só para a bicicleta, não para as pernas. Saí da vila cedo para subir o Cerro Castillo e valeu a pena acordar antes de ter mais gente na trilha: logo no início vi um Pudu, a menor espécie de veado do mundo, rápido demais para tirar uma foto. Demorei perto de quatro horas para ir até a laguna e voltar; como era cedo, resolvi adiantar alguns km do dia seguinte. Logo que subi na bicicleta vi que não ia longe, as pernas estavam cansadas e não tinha força para enfrentar as subidas e o vento contra. Depois de sofridos 11 km cheguei no Camping Los Ñires, de propriedade de um casal de mais idade que chegou lá na época da construção da Carretera nos anos 70. Muito simpáticos, conversamos bastante na sala da casa decorada com um quadro da Michelle Bachelet e outro dos filhos vestidos com trajes tehuelches feitos de pele.

    Laguna Cerro Castillo

    Dia 12: Camping Los Ñires – Camping Doña Dora

    • Total: 70,7 km
    • Média: 10,7 km/h
    • Máxima: 34,9 km/h
    • Tempo: 06:35:13
    • Acumulado: 768,1 km

    O vento contra era intenso e constante no vale do Rio Ibañez. Depois de 3 horas eu tinha andado só 20 km, o que me fazia questionar até onde ia conseguir chegar. Felizmente ao sair do vale a situação melhorou, precisei ultrapassar um trecho montanhoso mas a ausência de vento era um alívio. A Doña Dora me quebrou um baita galho: descobri que a passagem de uma balsa que ia pegar mais além na semana precisava ser comprada com antecedência e não tinha como comprar. Comentei com ela e ela ligou para o dono de um camping em Puerto Rio Tranquilo, meu destino do dia seguinte; por sorte ele estava em Coyhaique e se prontificou a comprar o bilhete. No abrigo do camping, aquecido por uma salamandra a lenha, duas americanas mexiam na bicicleta de uma delas. Estavam aflitas por que o parafuso que prendia o bagageiro no quadro tinha se perdido; eu tinha reserva desse parafuso e da porca, depois de ser ajudado fiquei feliz por poder ajudar também.

    Muito vento no vale do Rio Ibañez

    Camping Doña Dora

    Dia 13 Camping Doña Dora – Puerto Rio Tranquilo

    • Total: 38,5 km
    • Média: 12,8 km/h
    • Máxima: 38,2 km/h
    • Tempo: 05:36:27
    • Acumulado: 806,6 km

    Na metade da distância entre o camping e Puerto Rio Tranquilo se chega ao lago de três nomes: General Carrera para os chilenos, Buenos Aires para os argentinos e Chelenko para os tehuelches, o nome original que significa lago das tempestades. No lago estão as famosas formações geológicas conhecidas como catedrais de mármore, que visitei remando pela primeira vez em um caiaque oceânico. A temperatura da água me lembrou do conservacionista Douglas Tompkins, criador de vários parques chilenos e pessoa que eu admiro muito, que morreu de hipotermia após o seu caiaque virar em um dia de ondas fortes.

    Lago Chelenko / General Carrera e a catedral de mármore

    Dia 14: Puerto Rio Tranquilo – Puerto Guadal

    • Total: 62,8 km
    • Média: 11,2 km/h
    • Máxima: 44,6 km/h
    • Tempo: 05:36:27
    • Acumulado: 869,4

    Os bombeiros e helicópteros combatiam os últimos focos do incêndio florestal que atingiu a região enquanto eu me afastava de Puerto Rio Tranquilo. O caminho circulava o Lago General Carrera e a estrada na metade final apesar de não pavimentada estava muito boa, o que permitiu uma velocidade acima da média. Cheguei no ponto mais ao sul da viagem, o cruzamento da Carretera Austral com a CH-265. Ali rumei para nordeste, em direção à fronteira com a Argentina. Em Puerto Guadal estava tendo uma festa típica, com gineteada e baile. É engraçado como a cultura gaúcha é muito parecida no sul do Chile e no Rio Grande do Sul, separados por 3000 km de distância! Tomei umas cervejas no acampamento e fui no baile, animado por uma banda de chamamé; lá encontrei alguns amigos que conheci no dia anterior em Puerto Rio Tranquilo e que foram a Guadal de carona.

    Dia 15 Puerto Guadal – acampamento no rio Aviles

    • Total: 60,8 km
    • Média: 9,8 km/h
    • Máxima: 49 km/h
    • Tempo: 06:08:56
    • Acumulado: 930,2

    Conheci o Daniel no camping em Guadal e resolvemos seguir juntos. Montanhista experiente, já tinha subido o Aconcágua duas vezes, uma sozinho, mas uma inflamação no tornozelo o fez optar pelo ciclismo por um tempo. Chile Chico está do lado de lá da cordilheira, então o sobe-desce é insano. Precisamos empurrar as bicicletas morro acima muitas vezes, o Daniel sofria mais por que estava com o trocador das marchas traseiras quebrado. O vento era brutal mas a favor, por incrível que pareça cheguei a andar na subida a 15 km/h sem pedalar! A estrada era muito deserta, poucos carros e não vimos outros ciclistas. Com o fim do dia se aproximando paramos para acampar ao lado da ponte do rio Aviles. A chuva se somou ao vento durante a noite e no dia seguinte as águas antes azuladas do rio amanheceram mais altas e cheias de terra.

    Com Daniel rumo a Chile Chico

    Dia 16 Acampamento no rio Aviles - Chile Chico

    • Total: 46,8 km
    • Média: 12,1 km/h
    • Máxima: 48,4 km/h
    • Tempo: 03:52:00
    • Acumulado: 977 km

    Quando o ponto de partida e chegada estão em alturas parecidas o quanto e se sobe e o quanto se desce precisam ser equivalentes. Em terreno acidentado isso é verdade para as distâncias mas não para o tempo, que é muito maior subindo. Assim passou o dia, em longas subidas e rápidas descidas. Eu e Daniel dizíamos: uma hora precisa começar a baixar! Estávamos certos, 10 km morro abaixo no final até Chile Chico que deixaram minhas pastilhas de freio só no metal!

    Dia 17: Descanso em Chile Chico - dia para achar pastilhas de freio novas.

    Dia 18: Puerto Ingeniero Ibáñez – Camping Laguna Chiguay

    • Total: 57,9 km
    • Média: 10 km/h
    • Máxima: 51,8 km/h
    • Tempo: 04:35:51
    • Acumulado: 1034,9 km

    Pensei que talvez fosse possível percorrer em um dia os 100 km que separam Ibañez de Coyhaique. Na saída já vi que não ia dar: a balsa de Chile Chico para Ibañez foi adiada das 8:30 para as 11 da manhã por causa do vento e só comecei a pedalar a tarde. Tentava manter o ânimo mas o dia não estava fácil, 35 km de subida direto com vento contra fortíssimo. Passei de novo pelas curvas do vale do Rio Ibañez, dessa vez subindo – definitivamente descê-las é mais divertido! Já dentro da reserva do Cerro Castillo o problema foi o frio, a temperatura baixou muito e precisava parar frequentemente para esquentar as mãos. Montei a barraca no escuro e de noite acordei com uma risada sinistra que parecia uma bruxa: era o Concón, um tipo de coruja com um canto bem particular.

    Dia 19: Camping Laguna Chiguay - Coyhaique

    • Total: 58,7 km
    • Média: 12,7 km/h
    • Máxima: 52,4 km/h
    • Tempo: 04:35:51
    • Acumulado: 1087,3 km

    Fez frio durante a noite mas não tinha me dado conta quanto até ver a lagoa do camping. Fui caminhar na trilha até lá para aquecer antes de sair, e quando cheguei nela a água estava congelada em todo perímetro, até uns 10 metros da margem. Que diferença para o primeiro dia da viagem, quando fez 36°! Na estrada, senti falta do monte de abelhões que tinha visto quando passei por ali na ida. Descobri que estavam todas pousadas nas flores, em movimentos muito lerdos, paralisadas pelo frio. Quase em Coyhaique parei de novo no Gauchito Gil... gracias viejo, pela viagem tranquila e ótimos dias na estrada! Hora de empacotar o equipamento e voltar para casa!

    Chegando e voltando

    A Carretera Austral tem seu km 0 em Puerto Montt e o final em Villa O’Higgins, 1243 km depois. A maioria dos ciclistas usa o sentido norte-sul, já que o vento normalmente ajuda nesta direção. Acredito que a dificuldade de chegar em Villa O’Higgins também seja um fator para a maioria começar por Puerto Montt, já que não há linhas de ônibus que conectem aeroportos diretamente à cidade, é necessário fazer a baldeação Coyhaique – Cochrane – Villa O’Higgins. Quem precisa voltar para o norte precisa fazer a conexão em Cochrane, com ônibus saindo apenas às terças, quintas e domingos, para no dia seguinte pegar o ônibus para Coyhaique. Eu não tinha muitas informações antes de viajar e tinha dois planos, ir até O’Higgins se desse tempo ou iria sair da Carretera Austral e ir até Chile Chico e de lá de volta para Coyhaique.

    No sábado dia 16 de fevereiro saí de Puerto Rio Tranquilo. Para Villa O’Higgins seriam 347 km e para Chile Chico – Coyhaique seriam 287 km. Meu voo de volta era dali uma semana, no aeroporto de Balmaceda, 55 km ao sul de Coyhaique. Se quisesse pegar o ônibus de O’ Higgins teria que chegar lá na quarta-feira para embarcar quinta para Cochrane e chegar sexta de tarde em Coyhaique, para então conseguir uma caixa, desmontar a bicicleta e arrumar um transporte para sábado de manhã até Balmaceda. Os 347 km até o final da Carretera em 5 dias eram difíceis mas possíveis: seria preciso pelo menos 70 km por dia, os viajantes que encontrei em sentido contrário me disseram que a estrada estava em péssimas condições para o sul e que não conseguiram fazer mais que 60 km por dia neste trecho. Mais do que a distância, meu medo era não conseguir fazer as conexões com os ônibus: nessa parte do mundo as tabelas de datas e horários nem sempre são seguidos à risca, ainda era alta temporada e havia o risco de não ter mais passagem em algum dos dois trechos. Também pensei que podia ter certa dificuldade em encontrar uma caixa para a bicicleta em pouco tempo, o que de fato aconteceu. Considerando que precisaria de um bom alinhamento das estrelas para não perder meu voo, com muita dúvida decidi por Chile Chico e segui no sentido de Puerto Guadal. Se foi a decisão certa? Voltei a tempo e peguei o voo, mas com certeza não foi a decisão do coração.

    Agora, aos aspectos práticos. Minha passagem custou R$1395 (novembro de 2018), São Paulo – Puerto Montt e Balmaceda – São Paulo, mais R$400 para duas bagagens no voo de ida, que não incluía nenhuma. O voo de volta era na categoria econômica premium, comprei por que incluía três bagagens e era mais barato que comprar as bagagens separadas. A Latam cobra 50 dólares para despachar bicicleta; não cobraram em Guarulhos, cobraram em Balmaceda. A ida e a volta foram com escala em Santiago.

    Em São Paulo usei uma caixa de bicicleta e uma caixa de papelão para despachar a tralha, ainda levando como bagagem de mão um dos alforges traseiros e a parte de cima do conjunto, que é uma mochila acoplável. Para a bicicleta caber na caixa desmontei a roda dianteira e prendi na lateral do quadro, removi o selim com o canote, o bagageiro dianteiro. os pedais e o guidom, que prendi verticalmente na suspensão. Para evitar que a suspensão entortasse caso fosse pressionada usei um cano de pvc cortado que encaixa internamente e fixei com a blocagem. Também coloquei um pedaço de papelão entre as pastilhas do freio dianteiro, caso o freio seja acionado sem a roda e o disco no lugar as pastilhas podem “colar” e é difícil separar de volta. O aeroporto de Puerto Montt fica a 35 km da cidade, montei a bicicleta e fui pedalando.

    Em Coyhaique não consegui uma caixa de bicicleta, mesmo indo em praticamente todas as bicicletarias e lojas de material esportivo da cidade. A saída foi comprar um rolo de plástico-bolha e uma fita adesiva e pedir umas caixas menores na Sodimac e improvisar. Fiz o mesmo desmanche que na vinda e voltei com a bicicleta embrulhada e mais duas caixas de bagagem. Balmaceda e o aeroporto ficam a 56 km. Dá para ir de ônibus mas preferi ir com uma van, custava R$50 e buscavam onde eu estivesse, assim evitei ter que movimentar a bagagem. Não recomendo ir pedalando e tentar achar algo para embalar a bicicleta lá, Balmaceda é um povoado muito pequeno e o comércio se resume a um restaurante e um trailer de cachorro-quente.

    Considerações sobre a bicicleta

    Uso uma mountain bike por que é o tipo mais fácil de encontrar e queria uma bicicleta pau para toda obra, que pudesse viajar, usar na cidade e fazer trilhas leves. Sempre se fala em híbrida para cicloturismo, que seria algo como uma bicicleta de estrada com características que a deixem um pouco mais confortável, como pneus um pouco mais largos e guidom reto. Acho muito interessante o uso dessas bicicletas para transporte urbano e viagem em asfalto, porém a ausência de suspensão e a limitação da largura do pneu podem deixar a bicicleta “dura” para uso em pisos irregulares.

    As duas principais modificações que fiz para cicloturismo foram trocar a mesa original por uma mais curta, o que eleva a postura e diminui a pressão nos cotovelos e costas, e um pneu que rodasse bem tanto no asfalto como na terra, em contraste aos pneus “cravudos” tradicionais. Também coloquei um pé para parar a bicicleta, o que é ótimo por que ela é difícil de encostar quando está carregada. Infelizmente a parte de baixo do pé se soltou e a perdi no primeiro dia de viagem, e as tentativas de consertos improvisados não funcionaram bem. O uso de bar ends ajuda a evitar que as mãos e punhos fiquem doloridos ou dormentes, pois permitem variar a posição da pega.

    Meu pneu é um Schwalbe Marathon Plus 28” x 2,0, escolhido pela camada resistente a furos e por ter bom desempenho tanto no asfalto como na terra. Se for usar um pneu comum, uma fita anti-furo faz um papel semelhante. Há muitas partes de terra e cascalho na Carretera Austral e nessa situação quanto mais largo o pneu, melhor; pneus finos tendem a afundar nesse tipo de terreno. Há quem defenda o uso de rodas 26” para cicloturismo com o argumento que é mais fácil encontrar pneus, câmaras e raios. O aro 29” tem tantas vantagens que está se tornando o novo padrão, e apesar de não serem muitas qualquer loja ou oficina ao longo da Carretera terá componentes para este diâmetro. O mesmo argumento é usado para defender os freios V-brake, na minha opinião ultrapassados: precisam ajuste e manutenção constantes, fazem barulho e possuem poder de frenagem abaixo do necessário se não estiverem bem ajustados. Com o freio a disco tudo mudou, praticamente livre de ajustes, pouca manutenção e frenagem precisa. Minha única ressalva é que tenho freios hidráulicos, na eventualidade de um acidente que rompa a mangueira e/ou vaze o fluido estarei em maus lençóis. Freios a disco mecânicos permitem a troca do cabo sem maiores complicações.

    Escolhi o quadro First FX 29B por que foi o único que encontrei com furação para o bagageiro traseiro (raridade): dois rebites com rosca interna próximos ao canote e dois furos roscados próximos do eixo da roda traseira. Muito se fala no uso de quadros de cromoly para cicloturismo, pelo conforto que a elasticidade desse aço proporciona e pela facilidade de solda. Não considero uma opção viável para a maioria das pessoas, esse material não é mais utilizado pela indústria em larga escala, apenas por fabricantes individuais e isso tem um preço. Os quadros vendidos na internet são na maioria dos anos 80, usados sabe-se lá em quais condições, e custam entre 2 e 3 vezes o preço de um quadro novo de alumínio. Qual dos dois tem mais chances de trincar? Talvez essa preocupação com a solda faça sentido em uma viagem que dure meses ou anos em lugares isolados, mas a chance do quadro trincar em uma viagem curta é mínima.

    Os dois fatores limitantes para minha seleção dos bagageiros foram o freio a disco e o uso de suspensão. A maioria dos modelos disponíveis para o bagageiro traseiro iria colidir com o freio, e os modelos para o dianteiro normalmente fixam no eixo da roda ou no garfo e em algum outro ponto rígido acima da parte móvel, o que iria travar o amortecedor e forçar o bagageiro. Escolhi então dois modelos que superassem essas limitações. O modelo traseiro Topeak Uni Super Tourist possui espaçamento nas laterais para afastar do freio e era fixo por parafusos, adequado ao meu quadro. O modelo dianteiro Zefal Rider é fixo na suspensão por duas abraçadeiras de cada lado.

    Quem já pesquisou sobre cicloturismo provavelmente leu coisas como: bicicleta pra isso é a híbrida, quadro deve ser em aço cromo-molibdênio, se for em alumínio o quadro vai trincar e não vai achar quem solde, roda aro 29 é difícil de achar câmara, pneu e raio, freio a disco pode quebrar e não vai conseguir arrumar, suspensão não pode por que dá manutenção, guidon precisa ser tipo borboleta ou drop-bar, e assim por diante. Resumindo: a bicicleta “ideal” seria uma mistura de componentes ultrapassados com outros que não são fáceis de encontrar. Isso desestimula quem quer começar na brincadeira, por que (a) não é a bicicleta que já tem ou (b) não tem nada parecido com isso a venda. Com exceção dos pneus que são topo de linha minha bicicleta é um modelo de entrada, com componentes confiáveis a um preço razoável. Minha intenção ao escrever sobre ela é mostrar que é possível viajar com o que há disponível no mercado brasileiro.

    Considerações sobre a bagagem e equipamentos

    Minha lista é bastante extensa e passa a impressão de ser muita coisa. A tendência hoje é o bike packing, que leva o mínimo possível, e sob esse ponto de vista realmente é muito mesmo. O problema é que não pretendia lavar roupa, prefiro usar roupa não-esportiva quando não estou pedalando e esperava encontrar uma gama grande de condições climáticas, o que realmente aconteceu: sol, chuva, vento, calor de 36 graus frio de -8. Usei tudo que levei, mas poderia passar um ano viajando com a mesma bagagem que não teria falta de nada.

    Se a viagem fosse hoje, há coisas que eu não levaria. As botinas são pesadas, volumosas, passei calor no dia que pedalei com elas por causa da chuva e poderia ter subido o Cerro Castillo de tênis; seria melhor ter levado outro tênis mais leve de reserva se o titular molhasse. Também passei calor quando usei as calças de ciclismo. O pau de selfie não foi útil, a GoPro ficava a mão na bolsa de quadro e por isso ele passou quase o tempo todo no alforge traseiro. A câmara reserva já levei em mais de 5 viagens e nunca usei, séria candidata a ficar em casa na próxima. Comprei o liner do saco de dormir para tentar aumentar o conforto térmico, o que ele não faz por que é muito fino e de nylon, então só serve mesmo para ocupar espaço e dificultar para entrar e sair do saco. O chimarrão era meio trabalhoso de fazer por que a água a ser esquentada competia com a comida do café da manhã pela única panela, e o saco de erva mate furou e sujou o saco de dormir e tudo mais que estava no alforge dianteiro. Só não risco definitivamente da lista pela tradição e por que sempre é um bom pretexto pra começar conversas.

    Não há necessidade de carregar muita comida, sempre passei por locais com mercado pelo menos uma vez no dia, com exceção do trecho entre Puerto Guadal e Chile Chico, que é deserto. A água é abundante e pode ser bebida direto dos rios e arroios, levei um frasco de hidrosteril em gotas mas não utilizei. Só senti falta de água nos dois primeiros dias, o consumo estava muito alto por causa do calor e a recomendação na região era não entrar no mato por causa de um surto de hantavírus, o que limitava onde buscar.

    Lista de equipamentos

    Camping

    • Barraca para 1 pessoa Trilhas & Rumos Bivak 1
    • Saco de dormir Quechua S5 Ultralight (conforto 5° C e extremo 0°C)
    • Liner para saco de dormir de poliéster Quechua
    • Isolante inflável Quechua A200 Ultralight
    • Travesseiro inflável Quechua
    • Lanterna de cabeça

    Cozinha

    • Panela 1.5 litros Stanley
    • Tigela com tampa Stanley 591 ml
    • Material de limpeza: esponja, pano e detergente biodegradável
    • Conjunto de talheres / canivete Nautika (garfo, faca, colher, saca-rolha e abridor de lata)
    • Fogareiro e cartucho de gás
    • Garrafa térmica
    • Bomba e cuia de chimarrão

    Manutenção da bicicleta

    • Alicate pequeno
    • Reparos para pneu Avipal
    • Cola para reparo a frio Unium
    • Espátulas para troca de pneu Schwalbe (3x)
    • Kit ferramentas Epic BT123 11 funções
    • Parafusos e porcas reserva para o bagageiro traseiro
    • Estojo Lowepro para guardar os itens acima
    • Duas chaves de boca (uma para os parafusos dos bagageiros e uma para os pedais)
    • Escova para limpeza de corrente (muito útil, recomendo)
    • Óleo lubrificante (escolhi o úmido em vez do seco / cera pela possibilidade de chuva)
    • Um rolo de fita duct tape
    • Pano de limpeza
    • Câmara reserva
    • Abraçadeiras (tie-wraps) em dois tamanhos: ótimas para reparos de emergência e para embalar a bicicleta desmontada
    • Bomba de ar

    Bicicleta e equipamentos

    • Ciclocomputador Cateye Velo 7
    • Farol Cateye EL 135
    • Campainha
    • Duas caramanholas
    • Bagageiro dianteiro Zefal Rider
    • Bagageiro traseiro Topeak Uni SuperTourist
    • Alforges traseiros Vaude 3x1 (dois alforges laterais e bolsa de topo que vira mochila, acopláveis. Modelo antigo parecido com o atual Vaude Karakorum)
    • Alforges dianteiros Deuter Rack Pack Uni
    • Bolsa de quadro Btwin 1L
    • Bar end emborrachado
    • Quadro First FX29B
    • Grupo e trocadores Shimano Acera 27 marchas
    • Freio a disco hidráulico Shimano
    • Pneus Schwalbe Marathon Mondial Evolution
    • Capacete
    • Cadeado

    Eletrônicos e diversos

    • Celular e carregador
    • Bateria reserva / power bank
    • Câmera GoPro Hero 3 e pau de selfie
    • Pilhas reservas para lanternas e ciclocomputador
    • Estojo de plástico com mapa e caderno, caneta e bloco de notas
    • Nécessaire com itens de higiene e medicamentos

    Roupas

    • 3 bermudas de ciclismo com forro (1 folgada, 1 justa e 1 tipo cueca)
    • 1 calça de ciclismo justa com forro
    • 1 bermuda de ciclismo sem forro
    • 4 camisetas para pedalar: 3 de manga curta e 1 de manga comprida
    • 2 camisetas de algodão de manga curta
    • 2 fleeces
    • 2 camisas longas térmicas
    • 1 calça térmica
    • 1 casaco fino corta-vento
    • 1 moletom de capuz
    • 1 camisa de botão manga longa
    • 1 capa de chuva
    • 1 jaqueta de pluma
    • 1 calça jeans
    • 1 calça-bermuda de trilha
    • 1 bermuda
    • 2 pares de luvas (1 meio-dedo e 1 fechada)
    • 1 pescoceira
    • 1 touca
    • 1 boné
    • 1 óculos escuros
    • 1 par de havaianas
    • 1 par de tênis
    • 1 par de botinas
    • 7 pares de meias
    • 5 cuecas
    Guilherme Both
    Guilherme Both

    Publicado em 03/07/2020 12:40

    Realizada de 04/02/2019 até 21/02/2019

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    Londres - Reino Unido

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    No soy de aquí, ni soy de allá No tengo edad, ni porvenir Y ser feliz es mi color De identidad

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