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Bolívia (parte 1) - Laguna Chiar Khota e adjacências
Uma semana cercado por grandiosas montanhas ao redor da laguna.
Montañismo Trekking Escalada“Vou dar só uma espiadinha. Vou olhar para cima”, pensei.
“Nãoooo... não vai dar”, meu desmoralizado pensamento me respondeu!
Até chegar a este momento na madrugada de 11 de agosto de 2023, muitos acontecimentos ocorreram. Para entender melhor, vamos voltar treze dias no tempo. Na aproximação para El Alto, cidade vizinha a La Paz, percebi que a cabine do avião, normalmente pressurizada para uma altitude equivalente próxima a 2.500 metros, continuava a ser despressurizada para o pouso a 4.050 metros de altitude, o aeroporto internacional mais alto do mundo. Era hora de iniciar ali mesmo a aclimatação, o que fez meu cérebro dar o primeiro espasmo de dor. Foi possível perceber nitidamente que a pressão atmosférica oferece menor resistência, tamanha a demora da aplicação do reverso para parada do avião. Desembarca, apanha as bagagens (procedimentos de imigração haviam sido feitos na conexão em Santa Cruz de La Sierra). Encontra o taxi do hotel e desce para os 3.600 metros de La Paz.
O casal de amigos Jeferson e Derminda já estavam na Bolívia e chegariam do passeio ao Salar de Uyuni na manhã do dia seguinte. Sem mais o que fazer e cansado da viagem, tomei uma caneca de chá de coca na recepção do hotel, comprei uma garrafa d’água no próprio hotel e fui dormir.
No dia seguinte, domingo, fui tomar o café da manhã na presença dos meus amigos. A cabeça doía. Não houve maiores programações neste dia. Derminda me deu um comprimido de “soroche pills” e minha cabeça parou de doer como por um milagre. O dia seguinte também passou sem programação e aproveitamos para alugar botas para mim (dupla) e Jeferson (plástica), além de grampon para Jeferson em uma loja de equipamentos. Eu tinha um par de grampões emprestado pelo nosso Centro Excursionista Petropolitano.
Uma pequena porção de La Paz (embaixo) e El Alto (acima, como o nome sugere) vista do hotel.
O mês de agosto se iniciou com um passeio ao sítio arqueológico de Tiahuanaco. Fomos os primeiros a serem apanhados pela van da agência contratada, que rodou La Paz apanhando os demais turistas. Passou novamente em frente ao nosso hotel uma hora depois para finalmente seguir viagem! Talvez estivesse incluído no passeio um “city tour”! No retorno, eu e Jeferson fomos a um mercado e lojas comprar suprimentos para uma semana nas montanhas.
Vista da principal imagem da cultura Tiahuanaco, precursora da cultura Inca, no sítio arquelógico: a Estela Ponce, com 3,05 metros de altura.
Na quarta-feira, Derminda voltou para o Brasil. Eu e Jeferson seguimos para o acampamento-base na Laguna Chiar Khota, a quase 4.700 metros de altitude e cercada de belíssimas montanhas ao redor, com destaque para o grupo do Condoriri. Acertamos o transporte das nossas cargueiras por mula com um morador da região, enquanto seguimos a caminhada de cerca de uma hora até a laguna. A visão era deslumbrante. Ao avistar a laguna, soltei mentalmente um palavrão...
Pena que seriam somente sete dias... Ao fundo, o Condoriri, o condor de rochas e gelo (asas esquerda e direita, além da cabeça) nos dava boas-vindas.
Ainda havia sol ao chegarmos ao local, mas com seu ocaso, a temperatura despencou. Parte de nossa bagagem já havia chegado através da mula; parte chegou depois, trazida por moto pelo próprio morador. Jeferson ainda comentou que vinte anos antes, quando ele ali estivera, não havia o abrigo com cozinha para proteção dos fortes ventos e baixas temperaturas. Preparamos nossas refeições contando agora com este conforto no local.
O refúgio Condoriri, em cuja cozinha preparamos nossas refeições, sendo invadido por lhamas. Principalmente à noite, o local fez toda a diferença.
O novo salto de altitude fez com que minha cabeça voltasse a doer à noite. Jeferson também comentou sobre o mesmo efeito. Chá e balas de coca foram nossos companheiros constantes na luta pela aclimatação. A fim de que não fizéssemos maiores esforços, combinamos que, no dia seguinte, faríamos uma caminhada de aclimatação até a base do glaciar Tarija, onde eu poderia treinar alguns procedimentos de escalada em gelo.
A madrugada foi gelada, mas eu estava bem protegido. Comemorei o fato de ter levado acertadamente um cobertor que desempenhou a segunda camada (a primeira foram as roupas) e o saco de dormir ficou no papel da terceira camada. Acredito que fez uns -15°C lá fora e assim seria em todas as noites.
Após o café da manhã, seguimos para a base do glaciar. Uma caminhada de 2 km em um desnível de meros 200 metros. Entretanto, em passo de tartaruga, levei cerca de uma hora e meia para cumprir o trecho. Nitidamente, eu não estava aclimatado para ir além dos cinco mil metros. Havia mais dois grupos treinando na base do glaciar, situado aproximadamente a 4.900 metros. Jeferson me explicou alguns procedimentos de auto-segurança com o piolet. Ficamos cerca de uma hora no local e retornamos. O restante do dia foi dedicado à alimentação!
Caminhada de aclimação até a base do glaciar Tarija, ao fundo. Quem o conhece, quando vê a foto, se assusta com a retração do glaciar devido ao aquecimento global.
Dormir cedo significa horas em claro na barraca. Pensamento divagando em lugares e em pessoas. Às vezes, ele voltava forçosamente para o corpo de forma que eu reagisse às tentativas de invasão do frio. E eu começava uma luta sem fim com o zíper do saco de dormir que, ao menor movimento que eu fazia, insistia em abrir o saco.
O dia amanheceu e acordei preguiçosamente, pois não havia programação definida. Aproveitei para fazer uma faxina na barraca. Colocar algumas roupas ao sol. Fotografar a “vida caseira”. Fomos dormir cedo, pois a programação era acordarmos às duas da madruga.
Uma faxina é sempre importante para manter as coisas organizadas.
O dia seguinte (5 de agosto) ainda não havia começado de fato e eu já estava com olhos arregalados. Não adianta, quando há algum desafio iminente, não consigo dormir. Deixamos o acampamento por volta das três da manhã para tentarmos o Pequeño Alpamayo. Isto significou refazermos os passos do dia retrasado em direção ao glaciar Tarija. Mas agora a aclimatação já era melhor.
Na base do glaciar, ainda madrugada para que o gelo estivesse firme, calçamos os grampões e avançamos, rumo ao desconhecido pra mim. Jeferson também havia subido o trecho duas décadas atrás. Era a segunda vez na vida que eu calçava grampões, sendo a primeira no Rwenzori. Mas esta seria a travessia de glaciar mais longa a ser feita por mim.
O gelo oferecia boa resistência às passadas e, naturalmente, fui ajustando o ritmo. Lentamente, o dia foi clareando, revelando visões incríveis. Após os cinco mil metros, eu comecei a ter melhor desenvoltura. Jeferson começou a se sentir mais cansado. Com o dia totalmente claro, aproveitamos para beber água, comer e descansar. Os primeiros raios de sol douravam os picos mais altos.
Apesar do frio, era compensador, pois o alcance da visão foi sendo ampliado.
Seguimos nossa luta. Mas agora eu também senti que o cansaço evoluía rapidamente. A subida do glaciar parecia interminável e foi ficando mais íngreme. Havia muitas gretas, algumas discretas e estreitas, traiçoeiras; outras largas, se assemelhando a uma boca cujos dentes eram estalactites e prontas para engolir sem piedade o aventureiro.
Cavernas de gelo, gretas e buracos eram inimigos que nos obrigavam a ficar atentos.
O sol agora nos aquecia e nos deu uma energia extra na empreitada. Avistamos o Huayna Potosi, o objetivo final de nossa viagem se estivéssemos bem aclimatados. Em um momento, a declividade do terreno diminuiu para alívio, mas revelou um trecho ainda longo de glaciar. Comecei a avaliar minhas condições para tentar o Pequeño Alpamayo, uma vez que havia um vale considerável antes da subida definitiva até seu cume a 5.350 metros. Jeferson seguia valente, mas também realizando paradas constantes para descanso, além de reclamar que a bota plástica alugada estava machucando seu tornozelo.
Pausa bem-vinda!
Era quase dez da manhã quando alcançamos o fim da subida do glaciar a 5.200 metros. Anunciei a Jeferson minha decisão de não continuar. Acredito que a jornada seria penosa e poderia comprometer o restante de nossa aclimatação pelo cansaço. O pior trecho ainda estava por vir e o risco seria maior. Jeferson imediatamente concordou com minha decisão e que também já ensaiava falar algo neste sentido. Ele me disse que gostaria muito de me levar ao Pequeño Alpamayo. Compreendi sua vocação de guia e o admirei por isso. Mas, como eu lhe disse, chegar até ali era um privilégio e uma grande realização para mim no gelo e na neve. Além disso, a visão na crista do glaciar já era esplêndida e revelou vários picos, além de um tapete de nuvens. Mal sabíamos que, em função destas nuvens, havíamos tomado a decisão correta de descer.
O tapete de nuvens, associado ao glaciar, era fantástico. Mal imaginávamos que aquelas nuvens nos preparavam uma surpresa.
Iniciamos a descida pouco depois das dez. A condição do gelo havia mudado, principalmente no final do glaciar. A sensação era que, agora com a insolação, havia uma fina camada de gelo para se pisar e abaixo desta camada havia um bolsão d’água formado. Uma visão meio assustadora, confesso. Um rio no final do glaciar indicava que a água acumulada dava origem ao rio. Eu andava querendo levitar!
Chegamos ao acampamento por volta das 13 horas e preparamos nosso almoço. Depois, cada um foi para a respectiva barraca descansar. Acredito que adormeci entre 14 e 15 horas e acordei com o barulho de trovões! Aquilo me causou surpresa, pois o dia estivera aberto. Levantei e olhei para o glaciar Tarija, onde horas antes estivéramos. Só a base era visível. Nuvens envolveram o Pequeño Alpamayo e a porção superior do glaciar. As mesmas nuvens do tapete que avistáramos horas antes. A decisão da descida foi uma bênção. Foram duas nevascas consideráveis, que passaram inclusive pelo acampamento.
Ouvi nossa vizinha de barraca, uma chilena de um grupo de mesma nacionalidade, perguntando a Jeferson se estávamos de fato nas barracas. Ela e seu grupo haviam passado pela gente enquanto subíamos e eles desciam o glaciar. Demonstraram preocupação se ainda estaríamos na montanha, o que confirmou a sensação de que poderíamos estar em dificuldades se tivéssemos ido além. Como era bom estar na barraca! O fim do dia revelou novamente a visão dos picos e o sol os iluminando. A tempestade havia passado.
O dia seguinte foi reservado ao descanso. O tempo se mostrou mais instável a partir do dia anterior e Jeferson descartou o objetivo maior desejado por ele para as montanhas que nos cercavam. A ascensão à Cabeça do Condor (5.600 metros). Acertamos que, no dia seguinte, o penúltimo de nossa estada na laguna, faríamos o Pico Áustria para nos aclimatar e nos preparar para o Huayna Potosi. Este pico dispensaria equipamentos de gelo e neve e não haveria necessidade de acordarmos tão cedo.
Aproveitei o dia de descanso para fotografar os arredores do acampamento pouco antes do pôr do sol.
O dia 07 de agosto amanheceu com muitas nuvens, apesar da visibilidade do azul celeste. Era sete da manhã quando levantei. O sol ainda não havia aparecido neste horário e a noite havia sido gelada. Para piorar, a umidade havia aumentado e a condensação da minha respiração no interior de minha barraca provocou a formação de uma fina camada de gelo nas paredes e teto. Isto me deixou muito decepcionado com a barraca, que era de teto simples, mas quatro estações. Eu tinha um sobreteto comigo de uma barraca antiga. No sufoco, eu improvisava este sobreteto, o que não havia sido o caso na noite anterior. Mas o utilizei no interior da barraca para cobrir tudo enquanto eu batia no teto e paredes para que este sobreteto forrado recebesse o gelo e não descongelasse nas minhas coisas. A idéia deu certo e puxei o sobreteto para fora da barraca com uma boa quantidade de gelo.
Por volta das nove da manhã, café tomado, iniciamos nossa caminhada para o Pico Áustria. Passamos pela laguna e iniciamos a ascensão. O trecho inicial era bem íngreme, feito em zig-zag. Depois alcançamos uma plataforma plana que conduziu a uma rampa que cortou uma de várias morainas do pico. Caminhávamos por uma infinidade de rochas no caminho.
Visão da luguna no trecho inicial da subida para o Pico Áustria.
Ultrapassamos a cota dos 5.000 metros, gravada em uma rocha, bem mais dispostos do que dois dias antes. Nossos corpos reagiam mais revigorados à altitude. O nível de dificuldade do terreno também facilitava o avanço e estávamos mais leves sem ferragens nas mochilas. Seguimos em ritmo cadenciado até chegarmos a um colo a 5.150 metros, onde fizemos uma pausa para um lanche.
O visual era de tirar o fôlego, ainda que o tempo estivesse mais encoberto por nuvens. Para o lado do Huayna Potosi, aparentava estar nevando, dado o aspecto borrado da visão em sua direção. Também para o lado do Pequeño Alpamayo havia muitas nuvens escuras.
A elavação no terreno fez com que o majestoso Huayna Potosi aparecesse ao fundo.
Contemplamos alguns glaciares gigantescos próximos ao maciço do Condoriri. Jeferson anunciou que iria adiantar o passo. Eu fiquei para trás mais alguns minutos fotografando e parti mantendo o ritmo cadenciado para se evitar paradas em demasia.
Tudo era motivo para eu fotografar.
Ao seguir, já era possível avistar o cume e algumas pessoas que lá estavam. Mas isto ainda representava quase uma hora de subida. O terreno não tinha tantas pedras como antes da parada, mas a inclinação de cerca de uns 40° era a mesma e os bastões de caminhada continuavam sendo muito úteis.
Consegui me juntar a Jeferson e seguimos até chegarmos à crista que levaria ao cume. A providência Divina fez com que do outro lado se descortinasse uma paisagem longínqua impressionante, para o Lago Titicaca na fronteira com o Peru, além do despenhadeiro aos nossos pés que proporcionou a visão da enorme Laguna Juri Khota. Mais um momento de ficarmos sem palavras e de queixo caído.
De repente, surgiu esta paisagem. Não precisa de muita descrição. Basta o silêncio.
Após registrarmos o momento com mais fotos, arrancamos para o cume, a meros quinze minutos. Havia dois outros grupos no cume. Jeferson e eu chegamos para tocarmos no grande totem que sinaliza o cume e nos cumprimentamos pelo grande feito. Subida em 3 horas e 50 minutos. Uma marcação em uma rocha indicava a altitude em 5.350 metros. A visão 360° era espetacular.
O belo Huayna Potosi se destacava na paisagem quando se olhava para sudeste. A nevasca que aparentemente estava ocorrendo por aqueles lados havia cessado e agora tínhamos uma visão nítida do tamanho do desafio vindouro, apesar de que a ascensão se daria pelo lado oposto à nossa visão.
Fizemos várias fotos, incluindo uma com a bandeira do nosso Centro Excursionista Petropolitano. Jeferson demonstrou preocupação com o avanço das nuvens escuras vindas do lado do Pequeño Alpamayo e realmente era hora de descer, após cerca de meia-hora no cume. Uma nova tempestade como a do dia anterior não seria bem-vinda naquelas altitudes.
Não pode faltar a foto de cume, não é mesmo? Ao fundo, a Cabeça do Condor.
Grandes realizações trazem à mente lembranças por vezes importantes sobre nossa história particular. E acredito que assim ocorreu com o Jeferson, que resgatou seus feitos no montanhismo. Eu estava diante de um amigo emocionado com grandes realizações em mais de quarenta anos de montanhismo. Acredito que o Pico Áustria tenha valido pela descida, nas histórias dos nossos desejos mais profundos de realização do montanhismo, tanto quanto pela visão do cume.
Duas horas depois de sairmos do cume, chegamos ao acampamento. Ainda era meio da tarde e aproveitamos para descansar um pouco. Havia muitas barracas no acampamento. Aparentemente, havia um encontro de guias de montanha para treinamento. A cozinha do abrigo estava superlotada, de pessoas e mantimentos. Não conseguimos preparar o jantar adequadamente.
O dia seguinte, para variar, amanheceu gelado, mas a vontade de retornar para ter comunicação com o mundo e saber como meus filhos estavam foi um grande motivador para levantar sem a presença do sol. Admiramos a laguna Chiar Khota pela última vez e fiz a última foto. Toda aquela paz, aquele cenário que mais parecia uma pintura de um artista famoso. As montanhas onde, eu diria, nos divertimos ficaram para trás e acabei por me emocionar.
Obs.: e a descrição no início do relato? Para este texto não ficar muito longo, a continuação e finalização segue no relato "Bolívia (parte 2) - Huayna Potosi".
É maneiro demais rever esse lugar sob a ótica de outro montanhista. Bateu a saudade! Sensacional amigaço. Parabéns pra você pro Jefinho.
Parabéns, Marcelo! Relato incrível! Riqueza detalhes e com muito sentimento. Belíssima conquista. Fotos maravilhosas!
Olá Juliana. Muito bom ver você aqui, especialista em escrever com sentimento!!! Obrigado pelo comentário. Um grande abraço.