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Escalada na Maria Comprida (Petrópolis/RJ)
Via Maria Nebulosa, a terceira via mais extensa do Brasil, com 1.040 metros de extensão em 22 esticões.
Escalada Montanhismo Trekking- A montanha sempre decide pela gente!
Foi dizendo esta frase ao pensativo e estático Jeferson, que realizava a guiada e olhava para o alto no momento, que praticamente decretei fim à nossa tentativa de alcançar o cume da Maria Comprida pela via de escalada Maria Nebulosa em 5 de junho deste ano.
Estávamos no fim do décimo quarto esticão de corda e ainda restavam oito. Havíamos parado para lanchar em uma plataforma e no próximo esticão entraríamos na densa camada de nuvens que passavam loucamente a toda velocidade e obviamente trazendo uma indesejável umidade, sem falar no frio que aumentava pela sensação do vento crescente. Não tínhamos agasalhos para encarar a iminente entrada naquele mundo de alvura.
Jeferson consentiu. Acredito que ele estaria ensaiando dizer algo semelhante. E assim decidimos retornar. Lamentei muito pelo esforço feito, pois a via estava proporcionando visões fantásticas. A Maria é majestosa, mas já lutávamos há quase sete horas. O horário estava avançado, havíamos progredido com dificuldade em meio a trechos úmidos e o que restava certamente estaria mais úmido, aumentando os riscos. A caminhada de aproximação à base da via por um rio também havia sido dificultada pelo maior nível d’água. Tudo isso somado, nossas chances foram reduzidas e chegaríamos ao cume à noite.
Visão voltada para o lado de Secretário no momento em que decidimos retornar. Estávamos quase na mesma altitude da densa camada de nuvens. O vento uivava. Destaque na foto para o Morro da Covanca, ao centro, e a Pedra Roxa, à direita, com um risco claro em virtude de desmoronamento. Havíamos passado de carro pelo vale formado entre ambas.
A via Maria Nebulosa é a via de escalada mais conhecida na belíssima montanha Maria Comprida (1.926 metros de altitude) com 1.040 metros de extensão. A montanha está localizada nos limites dos bairros Araras e Secretário, em Petrópolis (RJ). A via é acessada por Secretário e foi aberta em 2002 pelos escaladores Alex Sandro Ribeiro (Chê), Jorge Fernandes, Pedro Miranda e Rafael Wojcik. Na época da abertura, era a maior via de escalada do Brasil e a primeira a ter ultrapassado os 1.000 metros. Entretanto, com aberturas de duas novas vias no país, atualmente ela ocupa o terceiro posto.
Jeferson disse ali mesmo que se comprometia em retornar comigo futuramente, enquanto nos cumprimentávamos pelo feito em meio às dificuldades. Confesso que nem imaginava ouvir aquilo no momento. Mas foram palavras marcantes.
Descemos rapelando durante a noite e, quando terminamos a empreitada, já era madrugada do dia seguinte. Na mente fervilhavam visões das dificuldades que haviam sido vencidas na subida e de cobra, aranhas, espinhos e escorregões durante a descida do rio no retorno.
Realmente, achei que não retornaria em breve, mas o Jeferson sempre mencionava o assunto. Em pouco mais de um mês, estávamos retornando. O dia era 16 de julho, aproveitando que não vinha chovendo há vários dias.
Saímos bem cedo, às quatro da madruga. Desta vez, o planejamento era realizar uma travessia na Maria Comprida. Subiríamos a via Maria Nebulosa, mas desceríamos caminhando pela via normal a fim de acelerar o retorno. Por ser uma travessia, combinamos um transporte para nos deixar no início e nos apanhar no final da aventura.
Começamos a caminhar às 05h 30min e o rio estava quase seco. Ótimo para o progresso! Antes de 7 horas já estávamos na base e fomos recebidos por uma florada de rabos de galo, uma linda planta endêmica nas montanhas da região de Araras e Secretário. Fizemos um lanche e às 07h 30min já estávamos escalando. Um mês antes, começáramos duas horas mais tarde!
O sol havia acabado de nascer quando chegamos à base da via...
... e fomos recebidos pelos belos e floridos rabos de galo.
Aderência é a regra nesta via. As primeiras enfiadas exigiam a procura atenta por cavidades côncavas na rocha para lances de domínio (a palma da mão na cavidade, com a posição do braço perpendicularmente ao eixo principal do corpo e, com isso, projetar o corpo para cima ao flexioná-lo) enquanto se confia na sapatilha.
Segundo esticão, basicamente feito em aderência. Em plano abaixo de mim (na foto, está acima) e seguindo para o canto superior esquerdo, há uma plataforma rochosa que marca a parte final do rio por onde subimos para acessar a via. Foto: Jeferson Costa.
Após o quinto esticão, seguimos à francesa, ou seja, em progressão mútua, mas ainda unidos pela corda, que passa ao menos em uma costura intermediária, pois a inclinação diminui, o que permite acelerar a escalada. Cruzamos com a via de conquista da Maria Comprida no décimo terceiro esticão, a via da Canaleta (aberta em 1932 sob a liderança de Emérico Ungar e que marcou o início da escalada em rocha em Petrópolis) e seguimos neste ritmo até o final do décimo quarto, justamente o ponto alcançado na tentativa anterior e paramos para um lanche. O dia permanecia aberto, apesar das nuvens de uma iminente frente fria começarem a envolver montanhas dentro de Petrópolis e ao sul de onde estávamos, mas nada que nos ameaçassem.
Pausa para descanso e lanche no fim do décimo quarto esticão.
Hora de iniciar o trecho inédito para mim, com maior inclinação, e que termina após o lance de transposição de um pequeno teto, protegido em móvel, um dos cinco lances classificados em quinto grau na via. Jeferson comentou que ali seria o crux (o lance mais difícil da escalada). Ele foi transposto sem maiores problemas, felizmente.
Visão do décimo quinto esticão. Jeferson está ancorado acima do pequeno teto. Era minha vez de encarar o trecho, cuja inclinação aparentava algo em torno de 70°.
Estávamos na mesma posição da foto anterior, mas agora eu era visto instantes antes de iniciar o esticão. Na foto ainda é possível ver um trecho de floresta na parte centro-esquerda da foto, que marca o rio por onde passamos. O paredão rochoso no centro é uma parte do João Grande. Subindo na foto está o Joãozinho e, na parte superior e com o cume cortado, está o Morro da Mensagem. Foto: Jeferson Costa.
Nos esticões finais apareceu uma vegetação que atrapalhou um pouco o progresso em alguns momentos (tinha aparecido no segundo também). Infelizmente, gera algum impacto. Tentamos minimizá-lo, mas é praticamente impossível não encarar alguns trechos em que a corda fica atritando na vegetação e há o aumento do arraste. Em um ponto, passei por um vegetal que soltou uma resina na minha mão e na mochila. A resina tinha uma cola tão forte que passei a me sentir o homem-aranha! Até hoje, meses depois, há manchas permanentes na minha mochila provocadas por ela.
O alcance visual se ampliava e a paisagem se tornava cada vez mais bela à medida que completávamos mais um esticão e eu mentalizava um a menos na contagem. Até que finalizamos o penúltimo, que termina em uma confortável plataforma horizontal. Ainda havia um lance de quinto grau na pequena e lisa parede a nossa frente.
Jeferson tomou a liderança. Passou como se tivesse levitando, alcançou o cume de Vossa Majestade e passou a dar segurança de ombro, pois nem existia mais grampo para montar uma parada.
E ali eu estava, estudando as passadas. Na verdade, para mim, ali era o crux. Por que, meu Deus, tinha que ser justamente na última enfiada? Já não me sentia mais o homem-aranha! Entrei no lance, cuja inclinação devia ter algo em torno de 80°. Mas algo estava errado, os pés estavam trocados. Ainda tentei impulsionar o corpo para cima na aderência, mas escorreguei e voltei à base. Na próxima tentativa, entrei com os pés trocados, segurei com os dedos da mão direita em uma mini-agarra, mas onde agarrar com a esquerda? Então olhei para uma cavidade. Era ali, o tudo ou nada. A gravidade conspirava novamente para me puxar para baixo. Então, dei mais um passo e fiz esforço com a perna direita, confiando cegamente na aderência das sapatilhas. Bendito atrito! Lentamente, fui subindo até conseguir pôr a palma da mão esquerda onde em queria ao mesmo tempo em que elevei o pé esquerdo pisando lateralmente para aumentar a área de contato, o que melhorou meu equilíbrio, aumentou minha tração com a mão direita e aliviei a carga sobre os pés. Eu havia vencido a gravidade e me emocionei por isso. Não só pelo lance, mas por toda a via que exigiu sete horas e quinze minutos de ascensão, pela primeira tentativa abortada, pela paisagem que pude olhar ao meu redor, pelo sabor do objetivo cumprido, pela comunhão com o ambiente de pureza.
A inclinação diminuiu consideravelmente como um prêmio por ter chegado até ali e arranquei eufórico para a finalização. Após uma curva para a direita, visualizei o Jeferson já expressando os cumprimentos por mais uma grande escalada e pelo cume.
A cordada no cume da Maria Comprida, a 1.926 metros de altitude. Missão cumprida!
Foto: Jeferson Costa.
A frente fria estava próxima, mas não nos atrapalhou. Ao contrário, ajudou nas fotos. Mais tarde eu ficaria sabendo que estava chovendo onde eu moro!
Visão do cume voltada para leste. À esquerda, no sentido do afastamento, são vistas a Pedra de Itaipava e o Taquaril. A partir das nuvens no centro, indo para a direita, são vistos o Cantagalo e, no canto direito, o Pilatos.
Assinamos o livro de cume e permanecemos no local entre 14h 45 min até 16h 15min, quando iniciamos a descida pela via normal. Por volta deste horário de saída do cume, iniciávamos a descida na primeira tentativa. Que diferença!
O entardecer de inverno e a espessa camada de nuvens da chegada da frente fria no horizonte serviram de tema para belas fotos. Às 19h 40min terminávamos a descida. De fato, a estratégia havia sido perfeita!
O crepúsculo, visto do lance do Camelo, na descida da Maria Comprida (sua silhueta é vista à esquerda).
A visão clássica da Maria Comprida na rota principal de acesso à montanha. Os últimos raios de sol a deixaram com belos tons acobreados. Foto: Jeferson Costa.
Comentário final: dois dias depois da escalada, de forma inesperada e atendendo a um convite de meu amigaço Fábio Fliess no dia seguinte, subi pela primeira vez ao João Grande, vizinho à Maria Comprida, e de onde se tem uma impressionante visão da crista em que está a via Maria Nebulosa. Com as imagens da escalada bem nítidas na lembrança, fiquei me imaginando como um pequeno ponto galgando lentamente aquela parede bruta. Consegui avistar claramente o pequeno teto que marcou o final do décimo quinto esticão de corda. Mas, acima de tudo, fiquei imaginando como eu era diminuto frente à grandeza da montanha.
Dois dias depois da escalada, eu tinha uma visão privilegiada da face da Maria Comprida que contém a via Maria Nebulosa durante a subida do João Grande. A parede é tão grande que fica difícil visualizar exatamente o traçado da via Maria Nebulosa. Não é perceptível na foto, mas havia um grande e profundo vale entre mim e a Maria Comprida.
O(A) leitor(a) pode procurar na foto um traço vermelho que fiz e que marca toda a extensão do décimo quinto esticão de corda. Um pequeno traço perdido na imensidão do paredão e que se inicia na parte não visualizada no fundo do vale.
Agradecimento: Jeferson Costa, guia Aguiperj (@jefclimbing) pela guiada e fotos.
Texto e demais fotos: Marcelo Lemos (@marcelo_lemos_13)
Belo relato amigaço. A montanha chama, a montanha decide... Cabe a nós aceitarmos o convite com as regras postas! Tirou de letra... Parabéns!
Sempre com excelentes relatos! Essa tá na minha lista de desejos para 2022. Parabéns!!!
Obrigado Juliana. Obrigado, mesmo. A Maria é sensacional!