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Marcelo Lemos 01/03/2023 21:31
    Rwenzori - a 5000 metros de altitude no coração da África

    Rwenzori - a 5000 metros de altitude no coração da África

    Oito dias em total desconexão com o mundo no mais espetacular local que visitei.

    Montanhismo Trekking Escalada

    “O Rwenzori é um dos locais mais inacessíveis da Terra”.

    Esta frase lida em um livro que descrevia a cadeia de montanhas do Rwenzori sempre me acompanhou. Confesso que me trazia uma espécie de atração, ainda mais se situando no coração da África. Eu queria sair do mundo convencional e ela se moldava às minhas mais profundas aspirações aventureiras quando planejava o retorno ao continente por volta de 2013.

    Flora e fauna exóticas, cavernas, florestas, rios, lagos, chuva, neve, gelo, sol, nuvens, raios, trovões, ventanias, lama, precipícios, caminhada, escalada em rocha e na neve. Parece que o Criador escolheu um pequeno pedaço do planeta para manifestar toda a Sua capacidade inventiva e exigir nele toda sorte de movimentos para se alcançar seus pontos mais recônditos.

    Lago Kitandara, avistado durante o quinto dia de caminhada.

    Assim é o mundo do Rwenzori. Pouco citado e conhecido no Brasil, infelizmente. Acredito que seja um dos locais mais preservados do mundo, mas também por uma infelicidade, que o deixou intocado por vários anos: a atuação beligerante de grupos rebeldes opositores aos governos de três países: República Democrática do Congo, Ruanda e Uganda. A cadeia montanhosa serve de fronteira entre a RD Congo e Uganda e foi por este último que eu a acessei na companhia de minha ex-esposa.

    O exótico está em todos os seres do Rwenzori, como nesta planta de folhas prateadas.

    Não é uma cadeia de montanhas extensa, possui pouco menos de 1.000km2. Entretanto, por estar a maior parte do tempo envolvida por nuvens densas, aquele pedaço no coração da África parece um lugar de ilusões e divindades. Curiosamente, Cláudio Ptolomeu o idealizou no início da era cristã ao ouvir estórias de navegadores vindos de Azânia, ao citarem que o Nilo era formado de uma cadeia que reluzia o luar. Ptolomeu acreditou que poderia ser neve e que, ao derreter, formaria o Nilo. E ele não estava errado (apenas seu raciocínio estava incompleto, mas eu precisaria me estender muito aqui). Assim, o Rwenzori tomou a alcunha de “As Montanhas da Lua de Ptolomeu”. Abriga o terceiro ponto mais alto do continente. A 5.109 metros de altitude, o Pico Margherita, pertencente ao Monte Stanley, parece rasgar as nuvens juntamente com seu irmão menor, o Pico Alexandra, a 5.098 metros.

    Esta ascensão foi precedida por uma aclimatação do outro lado de Uganda (o leste), no monte Elgon (4.321 metros de altitude), o vulcão mais antigo da África, cujo relato já deixei aqui no AventureBox.

    Foi utilizada a Rota Kilembe, possuindo 73 km, ida e volta, percorrida entre os dias 18 e 25 de janeiro de 2015. Oito dias em que me desconectei da realidade. Jamais experimentei tamanha sensação de isolamento.

    O primeiro dia teve seu início na vila de Kilembe, no extremo oeste de Uganda. No grupo havia dois guias e mais onze carregadores. Ao fim do dia, alcançamos o acampamento Sine, a 2700 metros de altitude.

    Visão do acampamento Sine ao fim do primeiro dia. Observa-se pelo filete de água no rio, contrastando com sua largura, que era a estação seca.

    No segundo dia, deixamos a floresta exuberante e chegamos até o frio acampamento Mutinda. O abrigo ficava em uma pequena reentrância na rocha. Estávamos a 3680 metros de altitude para um pernoite com temperatura negativa.

    No segundo dia a visão começou a alcançar maiores extensões, marcando a saída da floresta para os campos de altitude.

    No terceiro dia, a paisagem abriu completamente, mas o terreno ficou úmido e pesado. Isto porque era a “estação seca”. O Lago Bugata nos recebeu no meio da tarde e, pouco mais adiante, o acampamento de mesmo nome. A altitude agora era de 4050 metros. A visão deste lago do acampamento era magnífica e a sensação era a de que se estava em um anfiteatro.

    O Lago Bugata cercado de montanhas por todos os lados. Uma visão esplêndida!

    No quarto dia passamos por um passo a 4450 metros, o Bamwanjara. Foi neste local em que houve a primeira visão dos picos nevados de 5000 metros da cadeia. Uma grandiosa cena. Despencamos cerca de 500 metros entre lama e lagos. Atolei até o joelho em um lance e, mesmo usando bota plástica, a profundidade com que afundei fez com que eu molhasse minha canela e pé direitos. Alcançamos o acampamento Hunwick a 3970 metros.

    A visão do passo Mamwanjara. O Monte Stanley surgiu adiante como que por uma magia, revelado por uma divindade.

    O quinto dia nos colocou no ambiente alpino, quando alcançamos os primeiros traços nevados. Chegamos ao acampamento Margherita a 4485 metros justamente no início de uma nevasca.

    O acampamento Margherita. Meia-hora de nevasca deixou uma camada de gelo no solo.

    Sexto dia, o mais especial, o dia do cume. Eu praticamente não dormi, apesar de ter travado uma luta com meu subconsciente para fazê-lo adormecer. Começamos tão ansiada caminhada perto de três da manhã a fim de chegar com o nascer do sol. O céu continha estrelas nunca vistas devido à altitude e ausência da lua. O Cruzeiro do Sul não tinha apenas cinco estrelas. Contei mais umas cinco dentro da constelação.

    Ainda que as lanternas iluminassem alguns metros adiante, a neve mais acima era percebida. Não havia como negar a contribuição de cada pequena estrela na abóboda celestial. Somadas, suas luzes eram refletidas pela neve. Enquanto eu caminhava, divagava naquela imensidão cósmica acima de mim, dos mistérios que só quem observa atentamente uma noite estrelada sabe do que estou escrevendo.

    Atravessamos os glaciares Stanley e Margherita, sendo este último o mais íngreme, e cujo fim já marcava o final da ascensão. Poucos metros acima e avistei a placa do cume, o que me trouxe uma alegria indescritível. Arrastei-me por rochas escorregadias devido à fina camada de gelo em sua superfície até que cheguei ao cume. O sol havia acabado de nascer. A placa de cume indicava ser o ponto mais alto de Uganda, mas não havia similar para a República Democrática do Congo. Um lugar de pureza etérea.

    No cume, ao lado dos guias Ralben (à esquerda na foto) e Samuel. A altitude era 5.109 metros.

    A visão do cume. Uma bruma envolvia o Pico Alexandra, separado do Pico Margherita pelo glaciar de mesmo nome deste último, que se projetava por um vale à esquerda da foto. À direita havia um precipício que se projetava para a República Democrática do Congo.

    Na descida, o degelo da neve era intenso. As águas mais altas do Rio Nilo estavam sendo formadas, justamente como pensou Ptolomeu dois milênios atrás. Fizemos uma breve pausa no acampamento Margherita e descemos até o Hunwick para o pernoite.

    A neve escura no processo de degelo.

    O glaciar Stanley ao centro da foto, avistado durante a descida com o término do glaciar Margherita. Ele seria percorrido minutos mais tarde.

    O sétimo dia foi o mais longo e fomos até o Kalalama, que fica entre o Mutinda e o Sine. Neste acampamento o Rwenzori mostrou por que é chamado de o “produtor da chuva” no dialeto local. Uma forte ventania foi o prenúncio de uma forte tempestade tropical. Quando ela caiu, felizmente já estávamos abrigados.

    A acampamento Kalalama, a 3.147 metros de altitude.

    Completamos a jornada no oitavo dia. Foi realmente difícil voltar à sintonia do mundo material. Só usar o que realmente foi essencial à subsistência nos desenvolve uma capacidade incrível de identificar o que é supérfluo. E, naquele momento, muito mais do que imaginamos se enquadrava neste adjetivo. Fiquei por alguns minutos com o pensamento divagando na porção visível das montanhas do Rwenzori e na proteção que Kitasamba, o deus da tribo Bakonzo (habitantes da base do Rwenzori) em que se credita a ele os cuidados àquele ambiente, exercia em todos os locais daquela porção (quase) inacessível do planeta. Então, um demorado banho foi o que realmente me trouxe ao mundo dos humanos.

    Acreditem, esta é a foto relacionada ao montanhismo de que mais gosto. Simboliza o desapego. Eu não sabia como voltar ao mundo de ilusões humanas. Melhor o mundo de divindades na natureza.

    Obs.: este relato está muito, muito resumido. O mais detalhado está em meu livro "História de Savanas e Glaciares Africanos" (2019).

    Marcelo Lemos
    Marcelo Lemos

    Publicado em 01/03/2023 21:31

    Realizada de 18/01/2015 até 25/01/2015

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    2 Comentários
    Reh 19/07/2023 15:13

    Perfeito!

    1
    Marcelo Lemos 19/07/2023 18:23

    Muito obrigado, Reh. Abs.

    Marcelo Lemos

    Marcelo Lemos

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