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Rafael Lage 15/07/2022 18:54
    Trilha dos Capãozeiros e a terrível Fenda da Chaminé

    Trilha dos Capãozeiros e a terrível Fenda da Chaminé

    Antiga trilha do garimpo na Chapada Diamantina que conectava o Vale do Capão à Andaraí ou Lençóis, passando pela Fenda da Chaminé

    Longa Distância Montanhismo Trekking

    Preâmbulo da Trilha

    Apresentação

    Meu nome é Rafael, sou guia de montanha e fotógrafo, morador do Vale do Capão, pequeno povoado encravado no Parque Nacional da Chapada Diamantina. Esse é um relato acontecido em 2019, que escrevo agora em 2022, como forma de não deixar a memória se perder.

    Ressalva

    O relato que segue é o de uma aventura exploratória (significa q existe uma margem para erros), feita por uma pessoa com larga experiência e muita responsabilidade. Não encare a história a seguir como um relato convencional. Como guia, eu jamais colocaria um turista em situações como as aqui descritas.

    Motivação

    Nessa época, eu já conhecia praticamente todas as trilhas convencionais do Pq. Nacional e vinha me convencendo de conhecer algum novo desafio. Coincidiu q nessa época, havia o burburinho de q um guia antigo aqui do Vale havia conseguido resgatar uma antiga trilha, conhecida como "fenda do sucesso" e que agora era rebatizada de "fenda da chaminé". Os boatos davam conta de ser a trilha mais difícil da Chapada Diamantina.

    Fiquei instigado. E o caminho natural seria abordar esse guia e na brodagem, pedir pra ir com ele em algum momento, que é uma prática corriqueira entre os guias, de um estar levando o outro para conhecer as novidades. Porém, eu q sou uma pessoa em geral de boa com todo mundo, particularmente com esse guia, eu tinha um desentendimento. Uma situação q me levou a nem mesmo cumprimentar ele, mesmo q quase todo dia nos víamos nessa vila pequena em q moramos, já fazia uns 2 anos que não nos falávamos. Enfim, a única pessoa que sabia a trilha que eu queria fazer, não poderia me levar.

    O caminho

    Para chegar na "fenda da chaminé", a partir do Vale do Capão, eu teria uma longa trilha de aproximação. E eu poderia fazer ela por dois caminhos distintos. O primeiro era mais longo, mas envolvia trilhas já conhecidas e bem marcadas, que seria atravessar a "Fumaça por Baixo" e pelo rio Capivara acessar o rio Capivari, em direção a cachoeira do Mixila, passando pelas Lajes, rio Caldeirão e por fim o Ancorado, que era o meu objetivo. Dava uns 35, 40 km de distância até a Chaminé.

    Por outro lado, havia a histórica e ao mesmo tempo desconhecida "Trilha dos Capãozeiros", tbem chamada de trilha do garimpo, pq conectava o Vale do Capão as zonas garimpáveis, uma vez q no Capão mesmo nunca teve diamante e portanto, aqui se desenvolveu na produção de alimentos para abastecer as regiões do entorno. Essa distinção entre a cultura garimpeira de Lençóis e a cultura do plantio de subsistência, agropecuária e tropeirismo do Capão é bem marcado na fala de Maria Salete Petroni, em seu livro "Garimpo, devoção e festa":

    "Quanto à indumentária, os habitantes de Lençóis eviden-
    ciam grande discrição, usando roupas que pareçam melhor adap-
    tadas ao seu modo de viver, aqui e ali aceitando alguma novidade,
    quando ela significa de fato um jeito mais fácil ou cômodo de
    vestir.
    ...Dentro dessa quase uniformidade, a indumentária só distingue
    o pessoal do Capão, lugarejo próximo, que vem vender em Lençóis
    nos dias de feira, usando roupa do sertão; colete de couro trabalha-
    do, botas de cano alto, chapéu mateiro de couro com franjas; a este,
    cada um dá o formato que bem entende, arredondando ou quebran-
    do as abas."

    Observe como a narradora destaca o impacto estético e identitário da presença dos Capãozeiros em contraste com a cultura garimpeira de Lençóis. A ausência do diamante no Capão se dava por questões geológicas, ligado aos depósitos diamantíferos estarem concentrados no lado leste da serra do Sincorá, o que fez com que o Capão construísse uma outra identidade, aproveitando das características férteis de seus solos e os amplos campos gerais para a criação de gado vacum. A ausência do diamante, forçava os poucos garimpeiros que ali moravam à um grande deslocamento q se dava principalmente pela trilha aqui citada.

    Em desuso a mais de 60 anos, a trilha dos Capãozeiros vem sumindo, perdendo suas marcas, ora ou outra sendo cortada apenas pelos "antigos" garimpeiros, gente como seu Delí, Seu Daí, moradores já na faixa dos 70 anos de idade, mas que de tempos em tempos, costumam reunir familiares e reviver essa trilha, como forma de contar sua própria história e relembrar o tempo do garimpo.

    Já fazia uns 2 anos que eu estava estudando a sério essa trilha, conversando com os "antigos", recolhendo todos os detalhes possíveis, pontos da trilha, acesso a água, indicadores naturais, fatos históricos, tudo eu anotava, sabendo que cada detalhe poderia me ajudar a identificar o traçado. Em paralelo, estudei bastante os mapas de satélite e a partir disso, me senti seguro de tentar a travessia.

    Preparação para a trilha

    Marquei a saída pro dia 6 de junho, planejava 3 ou 4 dias de trilha. Convidei alguns amigos, mas as datas não batiam, por fim, vi que eu teria de ir sozinho mesmo. Embora bastante acostumado a caminhar sozinho na natureza, sei que é uma questão bem delicada, pq andar sozinho envolve riscos a mais, ainda mais no contexto de fazer uma trilha tão difícil como a da Chaminé e a trilha dos Capãozeiros, ambas desconhecidas por mim e sem trilha definida. Conversando com um amigo, ele disse: "Vc já viu marinheiro ir sozinho pro mar? Então, com a trilha é assim tbem". Eu comecei a enfraquecer a ideia, nessas horas vc pensa no filho, nas responsabilidades, já não é como antes né, na juventude. A Chaminé por si já era um enorme desafio e somar a ela a trilha dos Capãozeiros, me pareceu demais. E decidi mudar o roteiro e optar pelo caminho q eu conhecia bem e decidi ir pela "fumaça por baixo", descartando a trilha dos capãozeiros, mas ainda focado em chegar na fenda da chaminé.

    Mas aí, na véspera, no meio da tarde do dia 5, já com a mochila toda pronta, começa a chegar a noticia:

    É uma questão delicada, não vou entrar em detalhes, a gente lamenta muito e tem sido fato recorrente na cachoeira da Fumaça. Resultado foi que fecharam o acesso da cachoeira da Fumaça, para realizar o resgate e eu não podia mais fazer o roteiro.

    Pensei muito no simbólico de todos esses acontecimentos, quase desisti da caminhada. Mas com a chegada da noite, me acalmei e tive clareza q no dia seguinte eu ia trilhar. E já que não dava pra ir pela Fumaça, iria ser pela trilha dos Capãozeiros, desafiando a trilha e a mim mesmo, em condições adversas, sozinho e pronto para o que viesse. E cogitando fortemente a ideia de que seu eu conseguisse atravessar a trilha dos Capãozeiros, já estaria de bom tamanho e poderia deixar a chaminé para um outro momento.

    Em casos de trilhas assim, que vou sozinho, eu tenho um protocolo: eu descrevo detalhadamente o roteiro que eu pretendo fazer (e as possibilidades de alteração no roteiro) e a data de retorno, deixando alguém encarregado de conferir a minha volta e caso eu não apareça ou dê noticias 24h após a data de retorno, essa pessoa deve acionar um amigo guia experiente, que é uma pessoa que confio muito na capacidade em lidar com situações assim. Esse amigo deve avaliar o contexto e pode optar por acionar imediatamente o Icmbio, providenciando um resgate ou ele mesmo pode mobilizar um grupo e fazer a busca, sob os meus custos né. Meu retorno deveria ser dia 8 de junho, por volta das 18h, sabendo que mesmo com alguma alteração no roteiro, eu poderia chegar até o dia 9, sem problemas.

    A trilha

    1 Dia

    Como a trilha começa no meio do Vale do Capão, um amigo prometeu uma carona pra adiantar meu lado, mas acabou atrasando e cheguei apenas as 10 da manhã no Bairro Doce Mel, onde fica o inicio da trilha dos Capãozeiros. Isso já não era o ideal, pois na verdade eu não sabia exatamente quantos quilômetros eu gastaria até chegar na toca das Lajes, q é onde começam os garimpos. Eu estava supondo q era algo entre 10 e 15km. Considerando q a trilha não seria óbvia, já imaginava gastar mais tempo que o normal para uma distância dessas. Mas tudo bem, se eu tenho água comigo, sou autossuficiente pra parar em qualquer ponto da serra onde o cansaço batesse.

    Comecei a subida dos "Araújos", trecho de 1,5km de subida íngreme e forte. Eu já conhecia esse trecho e gastei 50 minutos até o mirante no pé do Morro Branco.

    Vista para o vale do capão a partir do mirante no pé do Morro Branco

    No rastro da trilha

    A partir desse ponto, eu não conhecia nada. Esse mirante fica em um lajedo, então sem marcas da continuidade. Comecei a sondar e gastei uns 30 min pra localizar a subida rente a um paredão do morro Branco, a entrada é pouco intuitiva, mas uma vez q vc encontrou, a subida vai bem marcada. Encontrei alguns sinais como um risco na pedra com a data de 11/07/14:

    No fim da subida, uma pequena pedra colocada sobre uma fenda, permitia a passagem:

    No alto, me deparei com um lajedo, andando nele, as marcações de trilha surgiam e desapareciam, foi necessário muita atenção pra não me perder. Até que num ponto, vi q as marcas sumiram. Logo deduzi q havia passado algo. Voltando uns 50 metros, havia uma fenda gigantesca a minha direita, q me impedia de ir para o outro lado, por isso havia passado reto. Mas examinando bem, tinha um único ponto de passagem, me aproximei e vi as marcas, era ali. Esse trecho é uma pegadinha boa, pq a trilha tem de fazer um z, meio q vc vai pra tras e depois volta a seguir adiante:

    Depois disso a trilha foi mais de boa, alternando sempre entre lajedos sem marcas e pequenos pontos de terra e mato que denunciavam a passagem de pessoas. Esse trecho contornava a parte de trás do morro Branco e é chamada especificamente pelos antigos de "Volta do Rosário". Praticamente concluído o contorno da parte traseira, a trilha parecia se bifurcar. A saída da direita bem menos marcada, supus (e depois confirmei) que seria o caminho para o mirante no topo do morro Branco, optei pela esquerda, que ia mais a leste, a direção q eu estava buscando. Foi quando surgiu o primeiro ponto de água, bem fraco o fluxo, preferi não pegar ali, já q ainda tinha água suficiente pra mais umas duas horas.

    Ferro de Pedim

    Uns 20 min após a água, passei por uma escadinha de pedras feito por mão humanas, mas que pela falta de uso, vem sendo absorvida pela natureza:

    Após a escada, fui me encurralando num pequeno vale e do nada a trilha sumiu. Olhei ao redor e não vi mais nenhum sinal. Resolvi seguir em frente e tbem parecia tudo mato fechado. Voltei a escadinha, o último ponto onde havia certeza de estar no caminho e acionei meu protocolo "perdido na trilha", que nada mais é q parar de andar e fazer um café. Liguei o fogareiro, deixei a água fervendo e relaxei. Quando estamos perdidos, é preciso dar um reset na mente, sair do fluxo que te levou ao equivoco e mudar a percepção, uma parada as vezes é suficiente. Quando o café ficou pronto, resolvi andar um pouco ao redor e reparei que havia um paredão, com algumas ranhuras. Escalei sem a mochila um pouco e vi que no alto, havia um pedaço de ferro cravado na pedra, como um apoio de mão e matei a charada, era o ferro de Pedim:

    Pedim era morador do Capão e gerente do garimpo da ilha grande, que ficava entre o rio Ancorado e o Caldeirão. Os antigos me contaram q houve um desmoronamento na trilha e Pedim fez uma rota alternativa, sendo necessário cravar esse ferro, para favorecer a subida desse paredão. Botei a mochila e com um pouco de dificuldade consegui escalar e graças ao ferro concluí a ascensão. Daí a trilha seguiu, como sempre, alternando entre lajedos, sumindo e aparecendo, com muito esforço pra não perder o traçado.

    Matinha

    Eis que foi aparecendo um pequeno vale a minha esquerda e a trilha me jogando pro final dele, onde deduzi que seria a parte mais fácil para atravessar. Nesse ponto ouvi uma água mais forte, mas ficava um pouco distante da trilha, não fui. Segui as indicações e a trilha contornou o pequeno vale, que identifiquei sendo a "Matinha", um outro nome dado a esse trecho da trilha pelos antigos. Ao fim do contorno, a trilha deu em outro platô e seguindo, um outro vale maior apareceu a minha esquerda e a trilha seguia no mesmo design, me jogando pro final do vale, onde poderia ser atravessado.

    Matona

    Identifiquei o q era chamado de Matona e contornando em seu final, caia uma água do alto dos seus paredões, esse contorno mereceu mais atenção, pois íngreme e com pedras escorregadias, dava trabalho. Ao fim do contorno uma pequena toca que permite uma ou duas barracas de camping e uma fenda no paredão ao lado, causado por uma água engrunando do buraco. A água parecia boa, a melhor que havia encontrado na trilha e a indicada para o consumo pelos antigos, com um alerta, de que essa seria a ultima água até o rio das Lajes, num trecho longo e seco. Mesmo com boa aparência, eu sempre esterilizo a água com o hipoclorito a 2,5%, a famosa água sanitária, 1 gota para cada 500ml e aguardando de 15 a 20 minutos para o consumo. Recarreguei as garrafas e segui, sem saber o que ainda me esperava.

    Na imagem, detalhe do contorno dos vales da Matinha e o da Matona. Essa trilha é uma das obras primas da engenharia de trilhas dos garimpeiros antigos na chapada.

    Rampa do Gato e o "Mete Língua"

    Do platô da Matona, havia uma disfarçada escadinha de pedra que subia para outro platô, esse trecho é chamado de Rampa do Gato, que remete a Gato Calixto, antigo garimpeiro já falecido. A partir daí, comecei a avistar a face leste do Sincorá e todo o sertão q se estende em direção a Itaberaba. Uns trechos do pantanal do Marimbus apareciam tbem. Após 1 hora nesse alto, a trilha chega em um grande cânion, que é uma das nascentes do Rio Caldeirão, embora totalmente seca estava. Contornei o cânion seguindo as poucas marcas visíveis e caminhei por um lajedo por mais uns 40 minutos, até sentir que havia sumido os sinais. Voltei uns 50 metros, até o último ponto de pisada mais evidente e comecei a sondar. Observei que o cânion estava acabando e que eu deveria ter de subir a esquerda, no que me parecia um paredão instransponível. Por fim achei uma corrida de água nas pedras, embora estivesse seca e imaginei q se tinha um caminho, deveria ser por ali. Sem trilha, me aproximei do paredão e aí achei a subida, q utilizava do desgaste natural da água no paredão e umas pedras colocada pelo homem para tornar possível a passagem pelas fendas, era a subida do "Mete Língua", que os antigos haviam me alertado. Ao chegar no topo, consegui visualizar um enorme declive e um rio lá embaixo, coisa de 2km. Imaginei ser o Rio Lajes.

    A noite se aproxima

    Pensei que eu talvez estivesse perto da toca das Lajes, porém, o tempo era implacável, pois se anunciava o por do sol, por volta de umas 17:30h da tarde. Comecei a descer rapidamente, a trilha nunca me deixava confortável, sempre sumindo e aparecendo, sendo necessário gastar muita energia mental para manter o foco, mas nesse ponto, os sinais começaram a enfraquecer, horas não sabia exato se estava na trilha ou no leito de um córrego. A escuridão se chegava e fui até o limite do olho enxergar algo, até q parei pra pegar a lanterna.

    No lusco fusco do crepúsculo, no meio daquele nada, sem saber exato onde estava, nem pra onde ia, com a noite a porta e a trilha sumindo cada vez mais, me surgiu um sentimento de enorme liberdade, uma descarga de sentidos de prazer pelo desafio e pela aventura. E tbem muita calma, de que eu saberia lidar com a situação. Peguei minhas perneiras de couro, ajeitei a lanterna e bebi o ultimo gole de água na garrafa. Segui descendo e a primeira impressão é q com o breu da noite e a luz da lanterna, minha visão melhorou e era mais fácil rastrear os quase imperceptíveis sinais da trilha, eu estava mais aguçado que antes. Em contraste, a trilha foi fechando, muito capim navalha enroscando por todos os lados. Nessa hora, precisei usar as mãos, hora afastando os capins, noutras literalmente rasgando o mato. A esperança se mantinha pq abaixo do matagal eu conseguia perceber um leve rebaixo no solo, coberto de musgo, mas que denunciava o rastro da trilha.

    Ver vídeo da trilha fechada no caminho para as Lajes: https://youtu.be/-5ZYdm299xo

    Quando a descida terminou, dei num pequeno rio, era o Lajes. A trilha terminava em sua margem direita e resolvi atravessar, do outro lado, um leve rastro q me levou a uma pequena toca, coisa antiga, mas não era a toca das Lajes. Resolvi seguir e com pouca andada, a trilha sumiu. E o mato ficou diferente, arvores de médio porte, uma matinha quase. Mesmo sem trilha, resolvi romper, sempre buscando reencontrar na frente alguma marca e achava. Em determinado momento, perdido nessa mata, encontrei uma carcaça de Tatu, que foi utilizada por cupins, como se fosse uma casa, achei bem interessante:

    Essa foi a parte mais fechada da trilha e de difícil travessia, após quase 1 hora nisso, dei em um lajedo amplo, onde o rio Lajes corria bonito e mais forte. 19:30 apontava o relógio. O lugar era agradável e resolvi ficar ali. Um barulho forte de cachoeira a frente me fez supor q seria a cachoeira das Lajes um pouco rio abaixo. Mas tá bom, tava tudo lindo e seguro naquele local para passar a noite.

    Ovnis, epifania e desilusão

    Eu estava cansado, mas tbem vibrante e pleno. Um sentimento contraditório, mas perfeitamente compreensível para os que tem gosto por trilhas, muitos que aqui leem, sabem do que falo. Comecei a fazer um café (sim, eu tomo café a noite e tomo café até pra dormir hehe) e desembalei uns pães de queijo que havia pego na padaria Licuri, lá no capão. É comum q no primeiro dia de trilha eu não faça um jantar, quase sempre por não sentir fome no primeiro dia, mas tbem pela conveniência e praticidade. Tava de boa, super feliz com aquele momento de conquista e uma comida gostosa, quando algo no céu me chamou a atenção. Eu não vi diretamente, mas como um movimento percebido no canto do olho, vi algo passar e quando olhei para o céu, não via nada. A não ser, uma pequena mancha branca e circular, não como um farol ou um brilho de estrela, mais como uma pequena nuvem, meio opaca, parada em um canto do céu. Fiquei olhando alguns segundos, estranhando, tentando identificar o q seria, quando de repente, em um movimento extremamente veloz, essa mancha correu pelos céus e sumiu no horizonte. Parei, respirei, falei q estranho, mas abstrai, como se nada tivesse acontecido. Vida q segue, pq ali não era assim o lugar ideal pra ficar viajando na maionese, afinal, um famoso ufólogo do Capão sempre disse q a parte de trás do morro Branco era uma base alienígena e essas coisas a gente não acredita né, mas tbem não duvida dos mistérios. E eu tava bem ali na reta da parte de trás do morro branco e a luz parecia ter ido na direção dele. Minha paz durou poucos segundos, a luz voltou e dessa vez vi ela chegando, em um movimento bem rápido e por fim parando no céu, estática. Logo outras 3 surgiram, em seu redor. Todas como manchas refletidas. Nessa hora comecei a imaginar, dentro do meu acervo de experiências, o q poderia ser aquilo, antes de chegar numa conclusão, as 4 luzes correram pelo céu, em uma velocidade absurda e sumiram no horizonte. Ainda dentro de uma perspectiva racional, tentando achar uma explicação lógica, mas já sentindo uns calafrios e um certo formigamento pelo corpo, comecei a cogitar seriamente se o q eu estava vendo poderia ser algo além do meu alcance e foi nesse momento, que surgiram 8 luzes, da mesma forma, vindo de algum lugar em um movimento muito rápido e parando, de forma estática no céu. Se até aquele momento eu estava cético, a partir dali eu perdi o prumo, comecei a sentir um misto de medo pelo que não podia explicar, mas tbem de uma intensa euforia por estar presenciando algo daquela intensidade. Meu corpo tremia e eu sentia muita energia, alegria e medo, tudo junto. Tempos depois, contando pra uma amiga, ela me disse que experimentei uma epifania, dá um google ai pra descobrir. Bem, eu tava lá, total estado alterado de percepção, olhando para as 8 luzes paradas, quando todas elas correram pelo céu, num movimento incrivelmente veloz e sumiram na linha do horizonte. Ufa, foi bem emocionante e aí parou, não apareceram mais luzes. Eu fui me acalmando, meu corpo se reestabelecendo, até q por fim, voltei a normalidade.

    Era umas 20:30 quando tudo isso aconteceu. Comecei então a arrumar meu isolante, o saco de dormir, decidir dormir no lajedo, a noite estava muito aberta e não parecia q ia chover, por via das duvidas, deixei a lona ao lado, para alguma emergência.

    Entrei na água fria da noite para me banhar e só então senti os cortes do capim navalha e tantos outros arranhões que sofri ao atravessar a trilha, ardia, muito, principalmente nos braços, mão e rosto. Uma dor leve, mas prazerosa em algum sentido.

    Por volta das 22h, a luz voltou. Todas elas, mas não mais paradas no céu, estavam se movendo aleatoriamente, hora se cruzando uma entre a outra, um lindo espetáculo, como em movimentos circulares. Antes q a emoção voltasse, percebi uma leve vibração no ar, não conseguindo identificar exatamente o q seria. Com um pouco mais de atenção, como algo bem distante e ao fundo, passei a ouvir: Tunts, tunts, tuns. Parecia um som mecânico, lembrando aqueles "paredões" de som, típico das cidades do interior baiano, incrédulo, tive de admitir, era uma festa, provavelmente em Andaraí e canhões de luz projetavam as luzes no céu. Andaraí deveria estar longe, uns 20km em linha reta, mas dava pra ver o clarão de uma cidade e o som e as luzes pareciam vir de lá. Bem, desculpe frustrar vcs, mas é isso, assim foi.

    Dormi pensando quanta coisa é tida como experiência ufológica, sendo que tem explicação racional. Não me entendam como uma pessoa fechada e descrente, de fato, se não há vida lá fora é um enorme desperdício de espaço e eu creio sim que deve haver vida externa. E até mesmo já presenciei diversas vezes situações de ovnis que não encontrei explicação, inclusive tenho um registro filmado durante o dia, algo impressionante e sem explicação, um dia posto algo sobre, mas por enquanto, me restou dormir pensando nessas coisas.

    2 Dia

    Com os primeiros raios da manhã, meus olhos se abriram e só então entendi onde eu estava. Era uma espécie de platô, como um mirante para a parte baixa da Chapada, onde fica o pantanal do Marimbus, lá embaixo. Foi maravilhoso, o sol raiava dourado e laranja, uma fina camada de nevoeiro nas partes baixas contrastava e refletia o brilho. Fantástico e pensei: "Vale a foto". Mas estava tão cansado e sonolento q apaguei, então não tem foto pessoal. Acordei umas 8, me sentindo bem. Tomei um café e resolvi descer o rio Lajes, pra ver essa cachoeira q estava a frente de onde eu acampava. Segui por dentro do leito uns 50 metros e quando cheguei na cabeceira da cachoeira e olhei pra baixo, pensei: Com certeza, essa não é a cachoeira das Lajes. Era uma queda grande, de uns 25 metros, reta, bem diferente das fotos q eu já havia visto da cachoeira das Lajes. Rápido percebi q não havia um caminho pelas bordas e descer pela cachoeira seria impossível.

    Confusão e vacilo

    Voltei para o local onde dormi, q era no lado esquerdo do rio e comecei a sondar um caminho. Não encontrei nada, gastei 1 hora nessa busca. Embora não fosse intuitivo, resolvi explorar a margem direita do rio. Não tinha caminho. Nessa hora, eu cometi um erro grave. Eu julguei q como não havia encontrado caminho, eu deveria ir na tora, cortando mato. E por essa margem direita, achei q parecia mais fácil ir descendo por uma pedras, com pouco mato. Comecei a descer uns lajedos, ora pulando uns degraus grandes. De repente, eu teria de pular de uma altura considerável, do tipo q se eu precisasse voltar, não conseguiria, tipo um ponto de não retorno. Pulei. Quando pousei na pedra, imediatamente pensei: que merda q eu to fazendo? Já tava nessa viagem a uma meia hora, todo errado, me achando o Indiana Jones. Parei, tirei a mochila e sondei o caminho a frente e constatei, tava piorando, não seria por ali q eu chegaria nas Lajes. Decidi voltar, cheguei na pedra q eu havia pulado e de fato, não dava pra voltar. Tive de fazer umas manobras muito ousadas, me colocando em alto risco e consegui contornar essa parte e fui retornando para o ponto onde tudo havia começado, onde eu havia dormido, na margem esquerda.

    Entrando nos eixos

    Comecei a refletir. De fato eu não conseguia encontrar a trilha. Mas, até aquele ponto, eu tinha certeza q estava na trilha, eu só não encontrava a continuidade dela. Esse era um caminho clássico, tradicional, embora apagado, a trilha estava ali, em algum lugar. Os garimpeiros sempre faziam os melhores caminhos, a técnica deles era botar fogo, suprimir a vegetação e a partir disso, visualizar o melhor desenho. Não fazia sentido eu querer inventar um caminho. Comecei a me sentir muito burro, de ter abandonado a ideia de achar a trilha original e ter entrando naquele emburrado de pedras sem sentido. Com calma, voltei até a ultima marca visível na trilha, q era um raspado de pisadas no lajedo, comecei a intuir a sequência, observando a geografia e fui me levando até umas fendas, de repente, tava lá, uma descida na fenda, a certeza veio com algumas pedras colocadas como degraus entre os paredões. Tá bom, não tava fácil, acertar essa entrada é muito difícil, me perdoei um pouco.

    E o tracklog?

    Eu tenho e não vou disponibilizar. Com 24 anos de trilhas e 15 só de chapada, não recomendo a ninguém fazer esse roteiro sem uma pessoa que conheça. Embora longa, não é uma trilha difícil, comparada a outras da chapada, porém, por estar apagada, há vários pontos q podem levar ao erro, mesmo com um wikiloc. Mas se vc se considera experiente o suficiente pra tentar, me consulte, posso ajudar.

    A toca e a cachoeira das Lajes

    Não deu meia hora descendo essa fenda e cheguei na toca das Lajes. Por fora, bonita a toca, por dentro tava bem suja, restos de coisas, possível de algum garimpeiro solitário e sazonal ocupar ali.

    Uma trilhinha entre bromélias descia, senti que era o caminho da cachoeira. Deu num lajedo e ali lembrei que era uma bifurcação, a esquerda desse lajedo iria para o Rio Caldeirão, a direita para a cachoeira das Lajes. Subi o rio uns 3 minutos e encontrei a cachoeira das Lajes:

    Bonitinha, mas sem poço, um pouco sem graça talvez...

    Momento da decisão

    Nesse ponto, eu havia concluído a travessia do garimpo. Agora eu tinha de decidir, se tomaria o rumo do rio Caldeirão e subiria o rio Ancorado em busca da trilha da chaminé. Já era 11h da manhã, eu havia perdido boa parte da manhã na busca da trilha. Fisicamente eu estava bem, mas decidi q já tinha sido demais pra mim, não iria seguir me colocando em risco, já tava bom ter feito até aquele ponto. Estava satisfeito. Eu sabia q da toca das Lajes, tinha uma trilha q ia em direção ao rio Capivari, onde ficava a cachoeira do Mixila, já era uma região q eu conhecia e estava a 1h de caminhada. De lá, eu podia descer até o rio Capivara e voltar ao Capão pela trilha da Fumaça por Baixo, ia ser lindo fazer nesse sentido. Voltei pra toca e decidi ir pro Mixila e abandonar a ideia da Chaminé.

    Brejo da Bala e toca do Aílton

    Nesse caminho a trilha era mais aberta, mas ainda assim, meio varamato. Ela só abriu quando cheguei num amplo lajedo de pedras, que logo associei ao que os antigos chamavam de "brejo da bala":

    Nessa região, foi retirado mais de 6 metros de altura da cobertura do solo, até alcançarem o lajedo. A chamada "piçarra", uma mistura de barro e latossolo, é ali q fica os diamantes. Entre eles, esses seixos rolados. Depois de dissolver com água esse barro e depurar o diamante, ficavam os seixos espalhados.

    Uns 20 min depois do brejo, cheguei na toca do Aílton. Aílton é um antigo garimpeiro de Lençóis, ele trabalhou até recentemente nessa área. A toca não tem nele sua origem, ela é mais antiga, ele remodelou, mas é coisa mais antiga. Eu gostaria de trazer mais info sobre essa toca, mas eu estou estudando os sítios arqueológicos dos antigos garimpos, em breve atualizo esse relato com mais info. É a toca mais sofisticada que já vi na chapada, ela tem uns jardins de pedra, meio Gaudí, coisa linda:

    No caminho e ao redor da toca tem muitas marcas do garimpo, aqui uma "muntueira", resto de uma lavagem:

    Mais próximo do Rio Capivari, tanques e canais para redirecionamento da água, para garimpar em partes secas:

    Por fim, cheguei na cachoeira do Poção, no Rio Capivari:

    Linda demais!!! Tomei um banho e fui na área que o pessoal costuma acampar. Eu não gosto desse camping, muito perto da água (questão de mínimo impacto) e costuma estar sempre sujo, pois essa região recebe um turismo frequente, pela proximidade com a cidade de Lençóis. Pra minha surpresa, não tinha ninguém, eu estava sozinho nessa área tão frequentada.

    Plot Twist

    Por volta de umas 17h, ao longe, vi duas pessoas chegando. Elas não vieram para o camping, atravessaram o rio e se alojaram numa pequena toca, na outra margem do rio Capivari. É normal usarem essa toca, mas ela é no nível do rio, se chover e encher já era, inunda mesmo. De longe forcei a vista, tentando ver se era alguém conhecido. Um deles acenou, cumprimentando. Devolvi a saudação. E então percebi, que era Mão, o guia do Capão que havia redescoberto a trilha da fenda da Chaminé e com quem eu tinha um desentendimento.

    Putz, pensei. Que ironia. E que coincidência. Essa situação me fez repensar todos os passos que levaram ao nosso desentendimento. Já tinha dois anos q a gente tava nessa vibe ruim. Eu não vou tratar do tema em questão, pq não vem ao caso. Mas Mão em si, era uma pessoa boa. Eu tinha muitas provas disso. Tinha esse questão entre nós, mas não era uma pessoa má, só tinha cometido um erro comigo.

    A noite me veio o pensamento e um sentimento, de q essa raiva q eu tinha dele, era um veneno pra mim. Não é bom nutrir esses sentimentos. Eu não fui até ele e nem ele veio até mim, mas no meu coração, decidi perdoar ele. Não q eu fosse virar um grande amigo, mas estava disposto q se ele viesse falar, tentaria me aliviar dessa questão. E também um pensamento me passou pela cabeça, afinal, pra onde Mão estaria indo?

    3 Dia

    A noite uma leve chuva, quase uma garoa persistiu, vacilei, pois tinha deixado a bota em uma área descoberta, resultado, a bota estava completamente molhada.

    Pela manhã, estava fazendo o café da manhã e percebi que Mão começou a vir em minha direção. Quando ele estava ainda longe, mas q eu seria capaz de ouvir sua voz, ele parou a distância e com muito jeito e tato, disse:

    - Olá Rafael, mais uma vez, só posso te pedir desculpas pelo acontecido e eu queria falar com vc.

    Eu fiz um sinal para que ele chegasse mais e antes q ele falasse algo, eu disse que tudo bem, que já havia durado muito tempo esse desentendimento, que da minha parte, essa treta tava resolvida e que eu não queria mal a ele.

    Ele abriu um sorriso e disse:

    - Que bom, pq eu quero te fazer um convite.

    - Qual convite?

    - Eu estou indo fazer a trilha da Chaminé. É a primeira vez que faço ela guiando com turista. To levando aquele rapaz ali. Vc não quer vir com a gente? Eu tenho bastante comida e vou cozinhar pra vc, como se vc fosse meu cliente, é o mínimo q posso fazer. E vai ser importante vc ir, pq se acontecer algo, um de nós pode ficar com o turista, vai ser bem mais seguro.

    Nossa, minha cabeça deu várias voltas. Quanta coincidência, quanta sincronicidade. Tudo pareceu perfeito naquele momento. Mas...

    O protocolo

    Eu já estava no terceiro dia de trilha, teoricamente, eu deveria chegar no capão nesse dia. Eu tinha 24h além, como margem de segurança e se eu seguisse o plano de ir pela Fumaça por Baixo, dava certinho. Mas essa mudança, de ir pela Chaminé, eu sabia q levaria mais tempo. Perguntei a Mão, em quantos dias ele pretendia chegar no Capão e ele falou q no mínimo 3 dias a mais. Desanimei total, pq se eu não desse sinal em 48h, seria acionado um plano de resgate. Expliquei pra Mão a situação, agradeci o convite, mas disse q não poderia seguir com eles. Mão teve uma ideia e disse:

    - Vamos esperar alguém chegar. Sempre vem gente de Lençóis aqui pro Mixila e se essa pessoa voltar amanhã, ela pode ligar para o seu contato e desarmar o protocolo.

    Não tinha pensado nisso, parecia uma boa ideia. Mas não poderia ser qualquer pessoa.

    1 hora depois chegou um grupo de turistas, a frente deles, Diamantino Filho. Ele era filho do falecido garimpeiro Diamantino. Diamantino pai havia sido um dos primeiros guias da chapada diamantina. Conversamos, ele entendeu a situação, o peso da responsabilidade, mas se comprometeu em assim q chegasse em Lençóis no dia seguinte, avisaria meu contato que eu demoraria mais dias e que agora estava acompanhado. Pareceu boa a solução, passei os números de contato e as pessoas que ele deveria avisar. Tudo certo, segui com Mão e o seu turista, que aqui vou chamar de Barauna*.

    *Barauna, Mão e Diamantino são nomes inventados. Como eu não os consultei sobre esse relato, prefiro deixar os nome fictícios.

    De volta para a toca das Lajes e além

    Voltamos pelo caminho q eu havia feito no dia anterior. Passamos pela toca do Aílton, o Brejo da Bala e chegamos na cachoeira das Lajes. Na esperança de secar as botas molhadas, fiz esse trecho de sandálias havaianas, não é recomendável, mas eu tinha esse hábito. Eu senti que o capim navalha tava dando umas lapada, mas fui q nem um trator. Em determinado momento a sandália rasgou, fui descalço mesmo. Lá na cachoeira das Lajes, Mão preparou um lanche muito bom, ao longo dos dias q viriam, eu iria comprovar q ele era ótimo cozinheiro. Passei a observar Barauna, pra sentir a vibe. Ele era jovem, com 20 e poucos anos, não parecia ser muito experiente, mas também não era a primeira trilha dele. Ele parecia bem forte, mas em trilha, mais q a resiliência física, é importante ter resistência emocional. Eu já tinha ouvido alguns horrores sobre a trilha da chaminé, de guia experiente arregar. Numa hora q Barauna se afastou pra banhar na cachoeira, chamei Mão de lado e perguntei se ele achava q o jovem ia aguentar a Chaminé. Mão fez uma expressão séria, confirmando o grau de dificuldade, mas se mostrou confiante, que saberia instruir e segurar qualquer barra que rolasse. Ok, confiei e seguimos para o Rio Caldeirão. Foi menos de 1h até o Caldeirão, lá chegamos numa toca muito ampla e muito bonita, no topo da cachoeira do Caldeirão (não confundir com a cachoeira da Entocada, que tbem fica no rio Caldeirão). Mão fez um jantar maravilhoso. Os dois juntos, Mão e Barauna, tinham uma química muito boa, resenhavam o tempo inteiro, faziam piadas, sempre com o astral lá em cima. Eu sou mais sério e introspectivo, gosto do silêncio dos homens e dos sons da natureza, mas tbem adorei a vibe dos dois juntos, ria bastante deles.

    Hora de ver o estrago que andar descalço me causou, com vários cortes e também fazer um reparo na sandália, sempre carrego um fio de arame para esses momentos:

    Mas a bota estava seca, bom demais.

    A toca não tem um chão muito liso, nem mesmo horizontal, busquei me ajeitar numa fenda e acabei dormindo sem muita dificuldade.

    4 Dia

    Pela manhã, Mão fez um cuzcuz de tapioca e enquanto isso, eu e Barauna descemos por uma trilha lateral pra conhecer a cachoeira do Caldeirão. Estava seca:

    Imaginei que com água deve ser uma cachoeira bem bonita. No alto da foto vc pode observar a toca onde dormimos e Mão sentado em uma pedra.

    Um dia do caçador, o outro da caça

    O Rio Caldeirão corre paralelo ao rio Ancorado, distantes uns 4km um do outro. Começamos a trilha q conecta os dois rios, cheio de antigos garimpos no caminho. Inclusive, foi nesse trecho que faleceu o pai de Neneu. Neneu é nativo do Vale do Capão e dono de um dos supermercados do Vale. Seu pai era caçador, ocasionalmente nos tempos de dificuldade alimentar, descia para o Vale do Ancorado, em busca dos "mocós", que é um pequeno roedor, tipo uma capivara pequena. A caça do mocó segue um ritual, que em geral, deve ser executado por dois caçadores em conjunto. Por ser muito arisco e com uma grande capacidade de se esconder nas pedras, quando um mocó é avistado, precisa q um dos caçadores não tire o olho dele, não o perca de vista. O outro caçador então deve guia-lo, escorando e alertando sobre obstáculos. Ninguém sabe direito o q aconteceu com o pai de Neneu, pois ele estava sozinho, mas foi encontrado dentro de uma fenda, já morto. Se supõe que na caça do mocó, sem tirar o olho do alvo, tenha caído nesse buraco. Como costume da época, ali mesmo foi enterrado, apenas tendo seu corpo coberto por outras pedras.

    A cachoeira do Samuel

    A travessia entre os rios durou 1 hora mais ou menos. Chegamos no rio Ancorado e Mão propôs que fossemos até o rio Roncador, onde fica a cachoeira do Samuel. Ele não parecia muito familiarizado com a região e disse que a trilha q ele conhecia, q conectaria o Ancorado ao rio Roncador era fechada, que nos preparássemos. Eu alertei q além dessa trilha, havia outra, q eu não conhecia especificamente, mas já havia lido relatos delas aqui nesse site do aventurebox, de um trilheiro q escreve boas histórias, chamado Peter Tofte. Disse a ele q deveria haver uma toca, conhecida como toca do Ancorado e era junto a uma barragem de pedras. Decidimos descer o rio Ancorado e em 15 minutos leito abaixo, encontramos a represa e a toca. Sondando o local, achei o inicio da trilha mencionada, estava bem pisada e aberta. Em 25minutos já estávamos na parte alta da cachoeira do Samuel. Resolvemos descer pela fenda e chegar no poço da cachoeira. Essa fenda é difícil, muita pedra solta, areias e escorregadia. A descida foi rápida, nem meia hora e já estávamos no poço:

    Depois de curtir o poço, retornamos pela mesma fenda até a parte alta. Mão então propôs de dormirmos ali em cima. Eu olhei para um lado, olhei para o outro e além de não identificar um local plano q fosse, observei q o tempo vinha mudando e q se chovesse forte, ali não era um local seguro. Não quis questionar abertamente a escolha do guia, mas chamei ele num canto, fiz minhas ressalvas, ele insistiu que ali era possível e seguro. Eu então perguntei se ele se importava q eu fosse dormir na toca do Ancorado. Ficava a meia hora dali e eles teriam de passar lá no dia seguinte de toda forma, pra seguir em direção a fenda da Chaminé. Ele não viu problema e deixei eles lá, me encaminhando para a toca. No caminho lembrei q minha comida havia praticamente acabado. Encontrei um resto de arroz apenas, mas deu pra janta.

    5 Dia

    A noite choveu regularmente, não foi forte, mas seguiu pela manhã. Eu fiquei aguardando a chegada de Mão e Barauna.

    Eles demoravam, devem ter chegado por volta de umas 10h da manhã. Isso me preocupou, pois o caminho até a cachoeira da Engrunada, onde começaria a trilha da Chaminé, consiste em umas 6 horas sem trilha, pulando pedras no rio Ancorado. Estávamos no limite pra chegar lá, onde deveríamos dormir no pé da cachoeira e no dia seguinte chegar no capão, atravessando a fenda.

    De repente o tempo abriu, o céu azulou e parecia um bom sinal para iniciar a trilha.

    Estávamos prontos, coloquei a mochila nas costas e na hora q clipei a barrigueira da mochila, ouvi um barulho ao longe, como pedras batendo.

    Olhei para o rio e tudo parecia normal. Continuei ouvindo o barulho de pedras e resolvi olhar ao longo do curso do rio e lá no fundo, uns 500 metros a minha frente, vi uma mancha branca vindo em nossa direção. Chamei Mão e alertei: "Acho q vem uma tromba d'água". Nos assustamos, não fazia sentido, a chuva q sentimos não poderia ter causado isso.

    Veja o vídeo da tromba d'água chegando: https://youtu.be/_8Y_DjbfTQc

    Compare o antes e o depois da barragem:

    Chamei Mão e disse q era uma boa hora pra mudar o roteiro e descer por Andaraí. Se em condições normais teríamos seis horas pulando pedra de rio, com essa tromba, a situação ficava imprevisível. Ele concordou, mas disse q ainda assim era possível. Eu disse q tudo bem, q eu me garantia, mas q ele deveria deixar bem claro para Barauna o q iriamos enfrentar. Mão concordou, chamou Barauna e botou o terror hehe. Relatou todas as dificuldades q enfrentaríamos e se ele estava disposto a enfrentar, Barauna nem balançou e disse: Vamos lá. E fomos.

    Lembrei de um amigo guia, já citado aqui, q gosta de parábolas náuticas: "Marinheiro bom, se conhece é na tempestade".

    De saída, tivemos de improvisar um caminho pela lateral da toca e Mão q ia na frente, foi atacado por uma nuvem de marimbondos. Mau sinal, mas seguimos. O avanço era lento. Muito lento. Mão seguia uma estratégia de ir pelas margens do rio. Eu comecei a vislumbrar q dava pra se afastar do rio e seguir por dentro da mata, cortando umas curvas. Fiz a proposta, mas ele não aceitou. Eu não quis desautorizar, afinal, ele era o guia. Mas depois de 1 hora nesse processo, fiquei bastante entediado. Então perguntei se ele se importava q eu fizesse outro caminho e nos encontrássemos no rio a frente. Ele não se opôs. Eu então larguei a margem do rio e fui pra dentro da mata, ali senti o caminho se abrir e avancei bem rápido, no varamato. Andei bastante e resolvi ir para o rio novamente, pra ver se localizava eles. Esperei por uns 20 minutos sentado, até q eles surgiram. Expliquei pra Mão q estava fluindo melhor pela mata, mas ele insistiu q iria pela beira do rio. Em respeito a sua liderança, desisti de insistir, me posicionei atrás e segui eles. O avanço seguiu bem lento, não havia nenhuma trilha e não dava pra ir pelo leito, íamos pelas beiras, nos arrastando. De repente, o sol começou a se por, já era mais de 17h. Estávamos longe, talvez a metade do caminho até a cachoeira da Engrunada. Notamos q o rio subiu mais, como uma segunda tromba chegou. Era hora de parar, improvisamos um lugar bem fora de contexto, mas é o q tínhamos. Mão fez um jantar muito bom, mesmo sob as condições adversas. Eu nunca tinha trilhado com ele, até então. Foi uma grata surpresa ver sua técnica como guia, ele é um bom guia. Experiente, carismático, bom cozinheiro, grandes talentos para um guia. Peca nos conceitos de mínimo impacto, não q faça nada absurdo, mas na média dos guias da chapada, muitas práticas danosas ao meio ambiente estão normalizadas, com ele não é diferente. Mas toda vez q vi ele fazer algo, eu orientei e ele se mostrou super aberto a aprender, diferente de outros guias, q já se encontram engessados nessas práticas e costumam debochar quando alguém alerta sobre as más práticas.

    Um detalhe curioso, do nada, deu um sinal de 3G da Vivo, fiquei de cara, pq estávamos muito longe e encravado no vale do Ancorado. Resolvi ligar pra mãe de meu filho, pra dar noticias, mas a ligação não pegou. Mandei então uma mensagem:

    - Oi, está tudo bem por aqui, encontrei um amigo e mudei a rota da trilha, chego amanhã no Capão. Pedi pra Diamantino Filho avisar vcs. Tudo bem com vcs aí?

    Com muito custo a mensagem foi, apareceu as duas barrinhas de visualizado e logo depois, chegou uma mensagem dela:

    - Tudo bem por aqui, ele avisou mais ou menos, quando vc chegar a gente conversa.

    Estranhei o tom, fiquei meio tenso, mas logo o sinal sumiu. Relaxei, não havia o que fazer e amanhã eu já estaria em casa.

    6 Dia

    A noite choveu forte e o rio subiu mais. Refleti com Mão o q teria acontecido na primeira tromba. Lembrei que a nascente do rio Ancorado ficava no gerais do Rio Preto, dali descia pro gerais do Vieira, isso dava duas calhas grandes de captura de água. Supus que havia chovido forte no Capão, nos dias anteriores, enquanto onde estávamos, o tempo estava mais seco. Ao chegar no Vale, confirmei essas informações.

    Tomamos um café, a comida havia acabado, tínhamos de chegar no Capão hoje ainda. Começamos a caminhada cedo, umas 6 da manhã, pois sabíamos q estávamos longe. Por volta do meio dia, depois de pular muita pedra, chegamos na cachoeira da Engrunada. Ao todo, gastamos 13 horas entre a toca do Ancorado e a cachoeira da Engrunada.

    É uma cachoeira muito bonita e impressiona pelo detalhe da água sair de dentro do paredão. Talvez a foto engane, mas a queda não vem de um rio que corre pelo lajedo e sim de uma fratura na rocha. Na parte alta, em algum momento o rio engruna, que é o termo utilizado na região, q seria semelhante a um sumidouro. O mesmo acontece no Cachoeirão do Pati e outros vários trechos de rio na chapada diamantina. Por isso o nome de cachoeira da Engrunada. Agora, pausa para um assunto importante que evitei até aqui:

    Zonas Intangíveis

    Em 2019, eu já sabia que haviam zonas intangíveis dentro do parque nacional da chapada diamantina. Eu já sabia que a Engrunada estava inserida em uma das zi's do pncd (parque nacional da chapada diamantina). Eu tbem já sabia que a visitação nessas zonas era proibida. Em minha defesa, com a mesma sinceridade que assumo q eu conhecia a proibição, devo afirmar que eu não sabia exatamente pq era proibido. Em minha ignorância, acreditava q o intangível fazia referência a dificuldade de andar nesses locais, mas eu estava equivocado. Foi após essa trilha que eu me interessei por estudar com profundidade esse tema e hoje compreendo a importância de não adentrarmos essas regiões.

    Pra começar, recorro ao plano de manejo do PNCD e sua definição:

    "Zona Intangível – é aquela onde a primitividade da natureza permanece intacta, não se tolerando quaisquer alterações humanas, representando o mais alto grau de preservação."

    Mas vamos além, essas zonas são importantes locais de pesquisa, recortes de pureza, utilizados como laboratórios vivos por pesquisadores. No PNCD são 3 ZI's, a do Machobongo em Ibicoara, do Cotinguiba em Mucugê e a do Roncador, onde eu estava. Embora elas não sejam interconectadas, elas funcionam como corredores da vida silvestre e a nossa presença atrapalha e muito, pq muitos animais são hipersensíveis a nossa presença. Hoje a minha reflexão é q existem tantos atrativos com visitação permitida no PNCD, tantas coisas maravilhosas, q não faz sentido a gente arriscar a integridade das ZI's. Logo, chamo vcs a reflexão de q embora tentador, devemos respeitar esses espaços, não os visitando. Os trechos das Lajes, do Caldeirão, da toca do Ancorado e Samuel estão fora da ZI, logo, aproveitemos. Mas adentrar sentido a engrunada, devemos evitar. Posteriormente, descobri que na trilha do garimpo, entre o ferro de Pedim e a subida do Mete Língua, tbem atravessei um trecho da ZI Roncador. Tecnicamente é proibido. Mas considerando q utilizamos apenas como passagem, sem pernoite, por ser um trecho rápido e também por ali ser uma trilha histórica, que poderia inclusive ser considerado uma servidão de passagem, no meu julgamento, pensando prós e contras, acho q seria uma boa ideia o PNCD em algum momento reconsiderar esse trecho e criar uma brecha na ZI Roncador. Mas isso é o q eu acho. Saiba q se vc insistir em andar nas ZI's, isso vai ter consequências, para a natureza e para vc tbem.

    A fenda da Chaminé

    Era 12:30, estava frio e chuvoso, ninguém animou de entrar na cachoeira. Mão propôs que ficássemos por ali e só no dia seguinte subíssemos a fenda. Barauna não concordou, acho q ele tinha algum compromisso, tinha de chegar no vale hoje ainda. Mão então foi bem incisivo e disse:

    - Se é pra chegar no Vale do Capão, tudo bem, mas temos de ir direto, sem pausa e sem distração, pq o tempo tá contado. Vcs estão de acordo com isso?

    Eu e Barauna concordamos, sem ressalva. Imediatamente Mão botou a mochila nas costas e começou a buscar o inicio da trilha. Num primeiro momento ele se confundiu e demorou uns 5 minutos pra achar a entrada. Eu preciso lembrar aqui q essa trilha não tinha marcas e havia sido recentemente redescoberta pelo próprio Mão, então era natural que houvesse alguma busca do rastro, em alguns momentos. Chegamos em um buraco, q só passava uma pessoa. Não era uma fenda nas pedras, era literalmente um buraco no solo. Do nada ele entrou no buraco e falou: "Venham!". Eu estranhei muito a trilha começar daquele jeito, mas por outro lado, me excitou bastante, q inusitado! Lembrei q eu estava carregando uma câmera Go Pro, com uma cinta para a cabeça. Ainda não havia utilizado ela na trilha e resolvi colocar. Eu poderia tentar explicar esse inicio da trilha, mas melhor que vcs vejam por vcs mesmos:

    Vejam o início da fenda da Chaminé: https://youtu.be/g9_ZYIqUOzA

    Após o buraco, a trilha passa entre fendas, até chegar num despenhadeiro e tínhamos de passar rente ao paredão, com não mais do uma área de 30cm para pisar. Nesse momento, vc pode ver no vídeo, Barauna para, olha para baixo e se vira para Mão e faz a pergunta:

    - Isso aqui tá muito perigoso. E se eu escorregar?

    Eis q Mão, já do outro lado da travessia, responde com tranquilidade:

    - Se vc escorregar, vc morre.

    Barauna então olhou pra mim, eu orientei q ele usasse a mochila como uma ancora e fosse passo a passo. Ele tomou confiança e foi. Mal sabíamos q tinha mais 3 passagens como aquela, ou até piores. Aqui, cabe destacar uma outra grande qualidade de Mão, ele tem uma metodologia de apresentar o desafio que iremos enfrentar em cada trecho da trilha, ele explica o que devemos fazer para superar determinado obstáculo e algo que de repente parecia instraponível, se torna viável. De fato, ali constatei, era a trilha mais perigosa do PNCD, sem comparação com nenhuma outra. Cachoeira do XXI e fumaça por baixo pareciam um passeio perto daquilo e olha, era só o começo.

    Ressalva Importante

    Imagino que alguns dos que aqui lêem, podem se sentir instigados a fazer essa trilha e eu quero ponderar dois pontos sobre isso. Primeiro, como guia, eu não conduziria ninguém em um roteiro desse. A chance de um acidente é enorme, ainda mais sendo dentro da ZI, um acidente ali, além do acidente em si, seria um fim de carreira do ponto de vista moral para um guia. Importante lembrar, um guia é responsável pela segurança dos seus clientes, mas também, ele é responsável pela integridade da unidade de conservação.

    Agora, como trilheiro, a minha conclusão é q nunca mais pretendo fazer essa trilha. Não vale a pena se colocar em tanto risco.

    Tipos de Trilhas

    Na chapada diamantina, vc identifica basicamente 3 tipos de trilhas. As trilhas de tropas e gado, que permitem a passagem de mulas, cavalos e bois. Um outro tipo clássico são as trilhas de garimpeiros, em geral, não permitem a passagem de mulas, mas é de fácil transposição por humanos, com carga, como ferramentas e alimentos. O terceiro tipo, é as trilhas de caçadores. Vc já deve ter visto um carreiro de formiga, em geral no tempo das chuvas, as formigas se movem de local e o volume delas chega a fazer uma trilha no solo. Acontece q o deslocamento de outros animais, tbem fazem trilhas, é possível identificar caminhos de mocós e outros animais. As trilhas de caçadores, em geral seguem esse padrão, eles andam em trilhas já abertas por animais que eles caçam. A fenda da Chaminé, obviamente era uma trilha de caçadores, um garimpeiro com suas tralhas não passaria ali.

    Pq o nome de Chaminé?

    De repente, chegamos em uma fenda. Não parecia ter saída. Mão então começou uma sequência de movimentos que me lembrou minha infância, quando eu brincava de escalar os batentes da porta. Ele então pôs um pé em uma das paredes e o outro na outra parede da fenda e começou a subir...

    Eis a fenda da Chaminé. Após subir uns 4 ou 5 metros, escalando como se estivesse dentro de uma chaminé, passamos por entre duas pedras e saímos em outro local. Absurda essa trilha, pura engenhosidade e malabarismo.

    Ao todo gastamos 2 horas e meia subindo essa fenda, que conecta da parte baixa, até o alto da cachoeira da Engrunada. Chegamos no topo quase as 16h. Dali, ainda tínhamos umas 3h de trilha até o Capão. Aliás, não tinha bem uma trilha, era mais rastros e picada, mas Mão conhecia bem e fomos sem erro.

    Treta

    Nesse trajeto, Barauna resolveu parar em alguns momentos para fazer fotografias. Na primeira, observei que Mão tinha uma expressão de desaprovação, mas não falou nada. Quando Barauna parou de novo, Mão falou q não tínhamos tempo pra isso. Barauna não gostou e se iniciou uma discussão, que foi evoluindo pra uma situação mais tensa. Os dois estavam alterados e eu em dúvida se deveria interceder. Aí Barauna soltou um: "Eu que tô pagando, faço o que eu quiser". Essa parte me pegou fundo, é doloroso ouvir isso de uma pessoa que a gente guia. De fato, nós somos pagos pela disposição do nosso tempo, por nossa experiência e outras coisas, mas sinceramente, pra entrar numa aventura como essa, vc tem de ter prazer e paixão no que faz. Então o dinheiro é importante sim, mas vc não está ali só por isso, não mesmo. E não meus amigos, não é pq vc esta pagando, q vc manda. Quem manda é o líder, o guia e quer saber, vc paga pra isso, paga pra uma pessoa conduzir e liderar vc em uma situação adversa. Em uma situação especifica, vc pode até questionar a liderança de um guia, mas ele tem de ter feito por merecer essa desconfiança e não pq vc está pagando. Mas compreendi q estávamos sob pressão, por vários fatores e essa discussão era comum de acontecer, independente do motivo e da razão. Interrompi os dois, alertei Barauna que Mão havia avisado na parte de baixo da cachoeira, que se quiséssemos chegar no Capão, nada deveria nos distrair. Ponderei que entendi o desejo dele em fotografar, mas q ambos havíamos firmado um acordo com Mão e deveríamos cumprir. Barauna compreendeu o argumento, guardou a câmera e seguimos.

    Enfim, a chegada

    A noite chegou e estávamos na ultima descida, para chegar no povoado do Bomba. É uma descida íngreme e cabulosa, mas já havíamos passado por tanta coisa, q foi de boa. Chegamos no Bomba umas 19h e demos sorte de pegar a lanchonete aberta. Comemos uns pastéis de palmito de jaca, curtindo aquele momento da chegada e da conquista. A vila do Capão estava a 7 quilômetros e fui providenciar um carro pra nos levar nesse último trecho. Bati na casa de um nativo e ele aceitou nos levar pelo preço de 50 reais, justo. Mas quando ele me olhou direito, perguntou meio assustado, pois eu devia estar com uma aparência assim, digamos, desgastada heheh:

    - De onde vcs estão vindo?

    Eu fiquei na dúvida de explicar tudo e resumi dizendo q vínhamos da cachoeira da Engrunada. Ele estranhou e disse:

    - Vc está falando da cachoeira do Ancorado?

    Aí entendi que Engrunada é um termo mais recente, q para o povo local, aquela cachoeira se chamava Ancorado. Eu fiz sinal q sim. Ele então abriu um sorriso e disse:

    - No tempo da fome, eu e meu pai descíamos por uma trilha, até a parte baixa dessa cachoeira, pra caçar mocó.

    Eu pedi q ele me descrevesse a trilha e era exatamente o caminho do q hoje chamamos fenda da Chaminé. Para ele, essa trilha nunca teve nome, era só um caminho, dentre tantos. Perguntei se os garimpeiros desciam por ali, ele disse q nunca, q havia pelo outro lado da cachoeira outra descida, mais fácil, porém mais longa, mas q hoje o rastro sumiu.

    Vc acha que acabou? Achou errado!

    Entramos no carro e fomos para a Vila. Mão e Barauna desceram no caminho, nos despedimos com a cúmplicidade dos q partilham uma aventura.

    Cheguei na vila e entrando na rua principal, dei de cara com um amigo guia da ACV-VC, a associação de guias do Vale do Capão. Ele arregalou os olhos e falou:

    - Cara, te acharam? Vc está bem?

    Eu estranhei demais a reação dele e disse:

    - Como assim? Estou ótimo, está tudo bem comigo.

    - O pessoal tava te procurando aí, disseram q vc estava perdido!

    Busquei o primeiro Wi-fi, liguei para meu contato e perguntei o q estava acontecendo. Só então soube que Diamantino Filho havia simplesmente esquecido de ligar avisando no dia combinado. Apenas no dia seguinte ele se tocou e entrou em contato, mas nisso, o alerta já havia sido dado e algumas pessoas subiram o morro branco atrás de mim. Com a noticia que Diamantino deu, a noticia de q eu não estava perdido de fato estava se espalhando e naquela altura, alguns sabiam e outros não. Liguei pra mãe do meu filho e tomei uma dura daquelas, pela demora de Diamantino, por algumas horas, as pessoas pensaram q eu estivesse sumido...bem, acontece né, no dia seguinte mandei uma mensagem pra ACV-VC, explicando o ocorrido e pedindo desculpas. Um grande amigo da ACV disse:

    - Ah Rafael, quando disseram q vc estava sumido eu ri, falei aki pra ninguém se preocupar, q vc ia aparecer.

    Fiquei feliz pela confiança de uns e pelo cuidado de outros q foram atrás, acaba q nessas horas vc vê como as pessoas reagem a vc.

    E é isso pessoal, tá aí essa história cheia de voltas e reviravoltas, erros e acertos, encontros e desencontros. As vezes uma trilha é só um caminho entre dois pontos, noutras, uma profunda jornada, cheia de mistérios e auto conhecimento. É importante estar capacitado, bem equipado e prevenido, embora a gente nunca tenha um controle total...e noutras, é importante se jogar, com a confiança de que tudo vai fluir, afinal, a vida é cheia de mistérios e a natureza uma grande mãe.

    Se vc curtiu essa história, deixa seu comentário, de repente me instigo a contar outras. E se vc pretende vir a chapada e precisa de um guia, com conhecimentos da história local, práticas de mínimo impacto e q sabe contar boas histórias, fala comigo, no instagram procure por @chapadavelha e conheça um pouco do meu trabalho.

    Axé e boas aventuras a tod@s!

    Rafael Lage
    Rafael Lage

    Publicado em 15/07/2022 18:54

    Realizada de 07/06/2019 até 11/06/2019

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    6 Comentários
    André Deberdt 21/07/2022 06:48

    Muito bom o relato, Rafael! Que aventura!

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    Rafael Lage 23/07/2022 12:30

    Valeu André, grato pelos seus relatos tbem, me fez reviver os tempos que caminhava pelo espinhaço mineiro.

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    Danilo Fonseca 20/09/2022 00:06

    Parabéns pelo relato Rafael! Há de ter sido um privilégio caminhar por esta região, mesmo com as ressalvas que você faz em relação às ZI’s. Seria legal ver mais fotos, se você as tiver! Muito legal a experiência enfim!! Abraço! *Ps. Só o lance dos ovnis que foi um banho de água fria! 😅

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    Rafael Lage 29/09/2022 20:08

    Valeu camarada, poxa, o lance dos ovnis foi frustrante mesmo, mas tinha de relatar hehe. Sobre as ZI's, não tem muito o q mostrar, é um pequeno trecho apenas. Na verdade, eu pensei muito se deveria tornar público esse relato, por ter conteúdo da ZI, justo pq pode despertar uma curiosidade. Mas, vi nele a chance de explicar um pouco o que é uma ZI, quase ninguém fala sobre isso e quem sabe, ajudar a fortalecer o conceito de que devemos deixar elas lá, o mais intocadas possível.

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    Danilo Fonseca 03/10/2022 21:02

    Boa!! Acho que cumpriu seu objetivo!! Abraço amigo!!

    Peter Tofte 09/07/2024 16:54

    Parabéns Rafael! Excelente relato. Fiz esta trilha Morro Branco do Capão - Cachoeira das Lajes alguns anos atrás. Mas voltei para Lençóis descendo o Piçarras, passando pela toca do Ailton. Embora conheça a cachoeira do Ancorado, a fenda da Chaminé nunca ousei subir.

    1
    Rafael Lage

    Rafael Lage

    Vale do Capão/Chapada Diamantina/BA

    Rox
    34

    Fotógrafo, documentarista e guia na Chapada Diamantina

    Mapa de Aventuras
    www.instagram.com/chapadavelha


    Mínimo Impacto
    Manifesto
    Rox

    Peter Tofte, Fabio Fliess e mais 451 pessoas apoiam o manifesto.