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Ramon 13/01/2017 15:17
    Travessia Provincia - San Ramon

    Travessia Provincia - San Ramon

    Uma aventura de inverno nos Andes, independente e auto suficiente, baixo custo, baixo índice de mortes e com pegadas de puma no caminho.

    RESUMO RÁPIDO A QUEM QUER FAZER A VIAGEM

    Se você vai no Chile, Atacama, TDP, etc, bem... pare uns dias a mais em Santiago. Provavelmente seu aéreo nem vai mudar de preço, mas você vai adicionar uma aventura incrível em sua viagem.

    Eu fiz trekking nas montanhas dos andes, autossuficiente, sem guia e no meio do inverno. Não é coisa para inexperientes mas também não é destinado apenas a super heróis.

    Se você já fez trilhas na Mantiqueira, já teve contato com vento e frio fora do pais, como patagônia, Bolivia ou Peru e consegue fazer essas coisas sem guia, sozinho, você está totalmente preparado para os andes invernal. Apenas complemente preventivamente seu conhecimento com esses vídeos:
    http://www.youtube.com/watch?v=NQ_WsqrP6us
    http://www.youtube.com/watch?v=94QFImjdEAo
    http://www.youtube.com/watch?v=qa0MpRlcSFM

    Comprei crampons e não os usei em nenhum momento, para usar seria necessário uma neve muito dura ou gelo. Comprei piolet também e esse teve sua utilidade, mas teria sobrevivido tranquilamente sem. Mesmo que pareça que será apenas um peso morto, não vá lá no meio do inverno sem eles. Piolet e crampom DEVEM te acompanhar.

    Pessoalmente, eu já fiz uma meia dúzia de trilhas na américa do sul, (TDP, Chalten, Tierra del Fuego, Peru, Pucon, escalei o Villarrica guiado, Sudeste Brasil). Isso me rendeu experiência muito mais que suficiente para ir sem medo. Ainda que alguns achem que eu já sei tudo, tive meus novos aprendizados em campo.

    As dicas abaixo, são bem comprovadas, aprendidas durante o percurso. Se quiser entender a dica, algumas podem parecer estranhas, você terá que ler o relato.

    Abra os links abaixo. Essas informações foram as únicas fontes de informações efetivas que tive para planejar a viagem e foram suficientes.

    http://www.andeshandbook.org/senderismo ... a_de_Ramon
    http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=2218762
    http://www.yerbaloca.cl/

    DICAS
    - Tenha certeza que vai se hospedar em um local que aceita tomar conta das suas coisas enquanto você está na trilha.
    - Não leve comida do Brasil, apenas se for essencial por logística ou tempo. Supermercado chileno é sensacional, tem muitos produtos que os nossos mercados nem sonham.
    - Pegue busão para sair do aeroporto (centropuerto ou turbus). Barato e rápido te deixa no metro por muito pouco dinheiro.
    - Compre um BIP! no metro. BIP! é o cartão de transporte público chileno.
    - Melhor época é a primavera. No inverno também é muito bom, recomendo. NUNCA vá no verão ou outono, porque apesar de possível, não tem agua nenhuma e o calor deve ser insuportável.
    - Agua só se derreter neve. Leve um filtro de papel para tirar os detritos e use uma panela de inox ou titânio para melhorar o gosto horrível que o alumínio deixa.
    - Levar um funil para não desperdiçar agua.
    - Leve dinheiro para pagar o ônibus da volta baixando pelo Los Azules, não aceita BIP!
    - GPS para a descida do San Ramon via Los Azules, não é opcional. Sem GPS, você VAI SE PERDER. Não é impossível, mas vai ter sofrimento. Pelo menos foi assim no inverno, com a neve tampando caminho.
    - O Chile tem isenção de impostos em muitos produtos, como piolet. Pode comprar sem medo equipamentos de montanha, você vai ver que eles tem um preço muito semelhante aos EUA.
    - O rio do parque Yerba Loca é venenoso, pegue toda água do lado direito quando sobe (oeste), ou derreta neve.

    Previsão do tempo:
    http://www.windguru.cz/pt/index.php?sc=552853

    Agora vc já sabe tudo que precisa para ir pra lá. Apenas para diversão coletiva, vamos ao relato.
    AQUECENDO MOTORES

    Fui a Santiago do Chile em 21 de julho de 2015 e lá fiquei até 1 de agosto. Nesses dias, evitei a cidade de 5 milhões de habitantes que concentra quase um terço da população chilena. Permaneci o máximo que pude nas montanhas ao redor, mas bem longe das estações de esqui. Se quer saber algo de mercado municipal, museu, passeios.... você está no relato errado.

    Eu não optei ir em meio do inverno, em meio das férias e altíssima temporada, eu fui obrigado. Paguei um aéreo supercaro, não haviam opções boas nem baratas de hospedagem. Já que fui obrigado, abracei o capeta. Se quer ler um relato de alguém que foi e gastou pouco, vai dar dicas de hostel e restaurantes, sinto muito.

    Sai de SP a noite e dormi no chão do aeroporto do Paraguai. Tudo isso pra economizar uma grana no aéreo, que gastei apenas R$1500, acredite, esse preço super faturado, foi uma verdadeira pechincha. A fusão da LAN e TAM já mostra que o passageiro teve muito a perder.

    Cheguei em Santiago ao meio dia do dia 22 de julho. Perdi minha carne desidratada na chegada do aeroporto. Explico, eu desidrato comida em casa, só achei que não teria problemas, porque em experiência anterior, entrando no Chile de carro, foi permitido. Questionei, eles alegaram que a carne devia ter uma etiquetada pelo ministério bla bla bla, dizendo que foi cozida antes de ser desidratada. Era o caso, mas sem o carimbo ou etiqueta, era um produto caseiro.

    Ignorei todos os taxistas, atravessei a calçada fui para direita para pegar o busão. Eu já tinha pesos chilenos no bolso, troco das viagens anteriores. Paguei ~CLP1.000 (aprox. R$ 5). Não demora 15 minutos, o alvoroço ao lado de algo enorme como uma rodoviária deixa claro que cheguei em uma estação do metro (pasaritos).

    Comprei um BIP!, que é um cartão de metro/onibus e o abasteci. Achava que estava apenas economizando, sendo mão de vaca evitando pegar taxi ou alugando carro. Descobri depois que na verdade o transporte público em Santiago é surpreendente. O google maps me indicou com maestria as baldeações de metro e cheguei facilmente ao apartamento que minha namorada havia alugado e ficado com a mãe e sobrinha, que já haviam partido. A parte radical da viagem dela ia começar agora com minha chegada.

    Descobri que os locais compram apartamentos e alugam por dia para turistas. Bacana, um ap só pra vc, mas, eles não tomam conta das suas coisas quando vc vai pra montanha.... ganhei uma tarefa adicional para o dia seguinte: mudar para um hostel.

    Tirei o dia de chegada para comprar comida, gás e equipamento. Fiquei impressionado com a variedade de alimentos que encontrei nos supermercados comuns de Santiago, várias comidinhas prontas, muito, mas muuuito MUUUUUITOOO melhor que o Brasil.

    Fui na tatoo (tatoo.cl) comprei gas, piolet e crampom. Crampom, apesar de ter sido inútil pra mim, não recomendo ir sem, vc pode pegar dias mais frios e a neve ficar dura, impossibilitando sua locomoção. Já o piolet tirei ele da mochila, cheguei a usar tanto para coletar neve, como para segurança de apoio.

    Saimos pela manhã do apartamento e levamos a mala para um hostel em providencia (bairro de Santiago). Eu não estava com saco de pesquisar ônibus a partir do novo lugar, então fui no básico, metro e taxi. O bolso pagou pela minha preguiça. Foram CLP20.000 (R$100) de taxi. Se eu tivesse pesquisado, não teria gasto nem metade.....mas........ começou a aventura!

    TRAVESSIA PROVINCIA – SAN RAMON
    DIA 1 – 23/jul Distancia 5,3km Desnível +900 Tempo 4:00 horas

    A troca para pousada me forçou a começar a aventura mais tarde. Tarde demais. Não ia dar tempo de chegar no cume do província no mesmo dia, não queria pegar pesado nem caminhar a noite, assim a aventura ia ter que durar um dia a mais. Mais um dia na montanha. Que sofrimento!

    A idéia era subir até o tal do Alto del Naranjo, um morrinho anterior que ganhou destaque popular por ter uma enorme arvore onde o pessoal acampa. Lá, pegaria neve, afinal é inverno e passaria uma boa noite, com garantia de vista de cima da cidade. Ótimo plano!

    Cheguei na entrada do parque, um guardaparque muito atencioso deu várias dicas, me cobra CLP 10.000 (R$ 50) pelo número de dias que disse que ia ficar em duas pessoas. Passou um celular de contato para emergência e também para avisar minha saída. Por último me dá uma má noticia: NÃO tem neve no alto del Naranjo.

    Eu ia ter que levar desde lá da guarita, o máximo de água possível. Ok, mas eu não tinha nem garrafa suficiente pra isso. Falei minha pretensão e toma outra má noticia: NÃO pode acampar no alto del Naranjo. Estamos tentando preservar o lugar

    Ele me deu dois problemas grandes, mas uma solução matadora: - Anda mais 20 minutos, acampa em um local chamado valle Suiço, não está no mapa, mas quando chegar lá você vai reconhecer. Lá é mais provável encontrar neve e tem uma linda vista pra cidade.

    E assim começou as 14:40. É uma subida sem dó, bem inclinada. Carregado, primeiro dia de trekking, acusei o golpe: Sobreaqueci!!!

    Sim, inverno nos andes. Um calor infernal. Como eu sabia que a coisa melhorava lá em cima, continuei, senão juro que tinha voltado pra traz. Sem garantia de agua ainda? Nem suar podia. Carregava um absurdo de blusas! Subia a passos de tartaruga.

    Chegando no Alto del Naranjo via uma coisinha de neve aqui e ali. Você pegava ela, e via que ela estava totalmente suja de terra. Local bonito, agradável e fácil acesso. Mas pequeno. Não admira que todo mundo acampe lá. O resultado é impacto elevado, daí a proibição de acampar lá.

    Continuamos tensos até o tal do valle Suiço. Não tinha nos mapas oficiais do parque, mas o ponto estava marcado em meu GPS. Quando cheguei as 18:40 no local e vi que tinha neve na encosta, foi um alívio. O local, excelente mesmo para acampar e com uma incrível vista. Mas tem seus inconvenientes: lama e bosta de gado.

    Armei barraca em local mais seco possível e sem bosta. Fui coletar neve. Minha lembrança de agua da patagônia, que é degelo da neve e dos glaciares, com um gosto maravilhoso me dava a certeza que seria uma experiência maravilhosa beber agua feita de neve. Quanta inexperiência!

    sobre a foto:

    Acampamento no Valle Suiço, 1o dia de travessia.
    A casa estava pronta, tinhamos ampla vista da cidade de Santiago. Ela ficou no whatsup enviando as primeiras fotos e eu derrentia neve pela 1a vez na vida para ter o que beber. Peguei a neve naquela naquelas árvores a esquerda.
    Ao fundo, as montanhas começam a se iluminar com as luzes de todas aquelas estações de ski, Valle Nevado, etc.

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    Insetos, folhagem, terra. Tudo escondidinho dentro daquela coisa branquinha e impecável. O alumínio da panela não só derrete a neve, mas também deixa a agua com um gosto estranho (passe papel branco em panela de alumínio. Ele sai cinza, é normal alumínio se desgrudar e ir pra comida). Tirar agua da panela e colocar dentro da garrafa é outra manobra difícil para quem não pensou em levar um funil.

    Lições aprendidas.
    - Levar um filtro (talvez de papel) para tirar os detritos da neve derretida.
    - Aluminio é leve e barato, muito obrigado, mas estou aposentando essa panela. Minha próxima panela de camping será de inox ou titânio. No caso do titânio, aceito doações.
    - Levar um funil para não desperdiçar agua.

    Ainda estava claro e não via a cidade, só nuvens. Santiago é de fato uma cidade cercada por altas montanhas, a poluição e as nuvens ficam presas lá. Então começa o anoitecer e o milagre acontece. Da pra ver tudo! Durante o dia, a poluição, nuvens, são iluminadas pelo sol e a cidade some. A noite, tudo fica visivel. Mesmo efeito de usar farol alto em neblina, muita luz, tudo fica branco.

    Sobre a foto:

    Poluição, toda grande cidade tem, mas só Santiago é completamente cercada por grandes montanhas. A neblina/poluição fica presa e a cidade desaparece da vista.
    Eu via de minha barraca enquanto tomava meu chá o anoitecer. Vi a poluição sumir da cidade.

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    Curiosidade, durante a noite, dois corredores de aventura passaram pelo local. Foram até o cume e voltaram. Malucos.

    DIA 2 – 24/jul Distancia 4,2km Desnível +800 Tempo 4:40 horas

    Começa a pernada as 11:00. Durante a subida, ao longo do dia, fomos ultrapassados por 4 pessoas que faziam o cume do província em ritmo de bate-e-volta sem mochila. De cargueira, fotografando, demorava muito mais. Um dos caras na descida disse que faltava uma hora pro cume. Devo ter levado 3.

    A neve vai tomando conta a medida que sobe. Cavalos selvagens... o que eles faziam lá eu não sei. Mas pastavam em meio a neve. Águias e condores são comuns. Pegadas de bicho na neve em todo lugar. Que bicho? Sei lá qual bicho.

    Até que cheguei em um famoso ponto, que era minha preocupação desde os meus planos iniciais sentado no computador de casa: O paso de rocas.

    Sobre a foto: Paso de Rocas, é um dos pontos mais emocionantes da Travessia Provincia - San Ramon.
    Apesar da montanha se afinar a ponto de se ter precipicios de todos os lados, é menos perigoso do que parece.
    Ninguém escorregou durante as filmagens

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    A montanha se estreita, abismos em ambos os lados e você tem que “escalar” uma passagem entre rochas. Que medo! Posso falar? Fácil. Sem dificuldade, subi de um lado e sair do outro é realmente tranquilo. Claro, só não tropece. Caiu? Sei lá se o piolet segura. A visão da medo, mas a pratica é bem tranquila. Acredito que a canaleta do Marins deve ser mais perigosa que isso.

    Depois disso é uma subida nevada até o falso cume. Falso? Pra mim aquilo era o cume! O cume verdadeiro é bem sem graça! O falso tem poste com pinduricos, vista ampla da cidade, muito legal.... uma verdadeira sensação de conquista! O cume verdadeiro, uns 100 metros mais a frente é apenas numericamente mais alto. Tem placas de homenagem, mas é só. O falso cume é demais!

    Foi quando cheguei no cume verdadeiro, que vi o dommo. Dommo? Sim! Teoricamente, você pode fazer esse trekking sem levar barraca! Dommo para quem não sabe é uma barraca de formato meia bola, feita de aço e madeira. Só não me pergunte o que fazer se você não levar barraca e a coisa toda estiver lotada... mas cabem 8 pessoas lá dentro. Se houver amor, 10 ou 12.

    Sobre a foto: Aquilo a direita é um Dommo. É como uma barraca, mas feita de madeira e aço, onde pode dormir 8 pessoas.
    Seu acesso é público. Seu uso gratuíto. Ele fica a poucos metros do cume do Cerro Província e a 20km da cidade de Santiago onde vivem 5 milhões de pessoas.
    Ele já existe a anos, não foi depredado, não foi pixado e não abriga marginais.
    Existe, opa, existia um abrigo assim no Brasil na Pedra do Baú, feito de cimento. Hoje, de tão depredado só existe o chão

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    Eram 15:40 quando abri a porta e.... como os chilenos são porcos! Uma sacola plástica enorme com casca de banana, frutas podres e outros lixos aberta na porta! Uma maça, que estava até mole, bem no meio do dommo. Que porquisse! Limpei tudo, havia uma vassoura lá dentro. Era mais de 2 quilos de lixo orgânico ou não. Me dei ao direito de não ser bom samaritano e carregar lixo alheio montanha abaixo. Fechei a sacola e deixei do lado de fora, embaixo do dommo.

    Mas, acabaram minhas críticas. Dommo inteiro, praticamente sem pichações! Nada quebrado, bem cuidado. Se fosse no Brasil, bem, não existiria mais o dommo. Apesar de estar em Santiago, com 5 milhões de pessoas, nenhum vândalo sobe a montanha. Só um ou outro porco eventual.

    No quintal do dommo, haviam vários iglus! Sim, iglus! Estavam todos derrubados, derretidos, mas estavam lá. Acredito que um grande grupo subiu lá, treinou construção na neve produzindo iglus e.... deixaram o lixo lá dentro do dommo.

    Haviam 2 bujões de gás no dommo, um deles bem cheio. Quase que por brincadeira, peguei o bujão que estava mais vazio e o usei para derreter neve e cozinhar. Havia um pouco de instinto no ato. Dali a 2 dias meu gás ia praticamente acabar e sem ele, nem agua para beber eu teria. Esse furto de gás me salvou. Eu apenas não sabia, ainda.

    Subimos no cume e vimos o pôr do sol. Nos preparávamos para dormir. Estávamos felizes, o dommo era nosso não dividiríamos com ninguém. Saiamos para fazer o xixi antes de dormir e... de lanterna na cabeça chega um casal chileno. Conversamos pouco, era realmente tarde, já íamos dormir. Dormir, aliás, demorou, porque eles chegaram tarde, tinham que derreter neve, cozinhar, se trocar, etc...

    Perguntaram por onde eu ia baixar, respondi a verdade: - Não sei.
    Indignados, “como assim, não sabe”? Não sei.... não escolhi ainda. Mas acho que vou descer pelo Los Azules, mas ir pelo minillas também me agradaria, eu ainda não decidi. Conversando, eles disseram que o caminho mais longo era o Los Azules, mas era uma baixada tranquila. Qualquer outros caminho de baixada era bem mais abrupto, alguns lugares bem expostos, citaram que havia um lugar que as pessoas passavam sentadas porque ninguém tem coragem de ficar de pé em um pico ventando com abismo em todos os lados...

    Nessa hora, acabaram minhas opções. A minha namorada ouvindo isso disse imediatamente: - vamos descer pelo Los Azules.

    Sinceramente, foi a melhor escolha. Você fica muito andando na crista da montanha, vendo Santiago o tempo todo. Descer pelos Los Azules era uma opção de descer vendo algo diferente. Vi diversos coelhos correndo na neve, o lugar é bem mais selvagem, você se isola e esquece que tem uma metrópole ao seu lado. É mesmo a melhor escolha.

    DIA 3 – 25/jul Distancia 5,1km Desnível +240 Tempo 5:40 horas

    Acordamos, nos arrumamos e saímos bem mais cedo que o casal, saímos as 9:30. Já tínhamos conquistado o Província, agora tinha que atravessar a crista até o San Ramon. Eu sabia que hoje era o filé da viagem. Sabia também que a jornada podia ser longa, umas 8 a 10 horas. Eu tinha então uma preocupação. A minha namorada tinha quebrado em Bariloche devido uma caminhada longa demais. Assim eu planejava sabotar o dia longo e quebra-lo em 2 dias curtos. Mas a essa decisão não seria minha.

    Poucos passos após a saída do refúgio, a jornada é ladeira abaixo. 200 metros de desnível abaixo, começa a caminhada em crista de montanha. Tão desagradável caminhar com vista 360 graus o tempo todo.

    Segue então uma subida gradativa e mal marcada até o Cerro Tambor, cujo cume tem uma estação meteorológica. Ao lado da estação uma área de acampar de babar! Pena que a caminhada até lá é muito curta. Seguimos.

    Então em um ponto tinha uma crista com uma passagem por pedras. Tinha que ficar de pé passando pela pedra com abismos em ambos os lados (será que era aquele o ponto que os chilenos falaram?). O receio tomou conta da minha namorada. Ela ficou estimulada vendo algumas pegadas na neve, bem na lateral da montanha. -Vamos pelo lado, é melhor....

    OK, vamos pela lateral. Eu fui na frente. A coisa era estranha. A neve fofa demais, afundava até a cintura. Zero risco de avalanche, afundei o piolet e vi que não tinha mais do que um metro de neve. Minha lição de casa me ensinou que avalanches só ocorrem com mais de 5 metros de neve.

    Mas as pegadas eram espaçadas demais e com pés juntos. Montanhista canguru.... estranho. O tamanho não batia. Não eram pegadas humanas, mas de algum animal grande. Cavalo? Impossível. Após contornar a montanha na lateral, seguindo essas pegadas, começou uma crista, com neve bem mais firme. Agora descobri. As pegadas eram de puma.

    Sobre a foto: SIM! Pegadas de Puma na neve.
    Você deve imaginar que estou em algum lugar muito selvagem, longe da civilização.
    Estou entre o Cerro Provincia e o Cerro San Ramon. Para se localizar, em linha reta, são 20 km do centro de Santigo do Chile.
    Lá, vivem mais de 5 milhões de pessoas, quase 1/3 da população de todo o Chile.
    A presença de um predador, demonstra a saúde de todo o ecosistema.
    Então, estou a 20 km de arranhacéus e 5 milhões de pessoas.
    ISSO SIM É PRESERVAÇÃO.
    Ao fundo, temos o oeste, vemos a mesma cadeia de montanhas que abriga Valle Nevado e todas as estações de Ski que a brasileirada adora.

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    Pouco mais a frente, acaba a crista e temos uma forte descida. Não parecia que o caminho era por ali, mas, era uma crista, por onde mais seria? Era continuar ou continuar. E o GPS confirmava isso. Essa descida era algo realmente assustador. Eu não sabia se devia descer pela direita, lado mais rochoso pedrinhas pequenas e bem escorregadio ou pela esquerda onde era totalmente nevado, ambos lados estavam apimentados com um precipício. Não sabia se aquilo na neve eram pegadas ou neve se desprendendo indo para baixo do barranco.

    Optei pela neve. Piolet na mão. Foi bom viver, estava preparado para o meu fim. Mas depois de caminhar 10 metros, afundando até a cintura, estava claro que aquele era o caminho, e ele era muito fácil e seguro e como eu estava exagerando no cagaç, opa, no receio, que sentia a poucos segundos atrás.

    Sobre a foto: Coloquei a máquina no tripé, programei o timer para 2 horas e fui até o cume. Difícil foi voltar para pegar a máquina, totalizando 6 horas de caminhada.
    Acreditou?
    Era um casal chileno, que saiu do refúgio 2 horas depois da gente.

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    No meu GPS existia um ponto chamado “pirca donde acampamos”. Esse ponto, baixado do wikiloc era a aventura de dois chilenos que fizeram a travessia em dois dias. Secretamente, eu planejava dormir lá.

    Chegamos lá as 15:00, descansamos comemos, olhamos pra frente e para o GPS. Seria mais uma subida com uma travessia em neveiro. Calculamos mais 2 a 3 horas de caminhada. Era cedo demais para parar, mas poderia forçar e quebrar. Deixei ela decidir e decidiu por parar.

    Havia um lindo muro de pedras que poderia servir de abrigo de vento a uma barraca, mas só se ele não estivesse totalmente coberto por neve. Procurei outro ponto e tive que limpar o chão sujo com pedrinhas de todos os tamanhos e descobrir que as estacas da barraca não entravam no solo, muito pedregoso. Ventava forte e eu tinha que ancorar a barraca. Usamos pedras ancorando a frágil barraca chinesa. Sobre a barraca, comentei em outro fórum.

    http://www.mochileiros.com/post1101219.html#p1101219

    O casal chileno apareceu depois que nos instalamos. Seguiram em frente, nos despedimos. Dormimos bem, apesar de ter ventado toda a noite.

    Hoje tive uma certeza. Minha bota marca Hightech, estava entrando agua. Pé molhado a zero grau. Não é a primeira vez que isso acontece, acho que descobri um padrão. Fica uma dica: Nunca guarde uma bota goretex no armário. Comprou, USE. Eu “poupava” bota, afinal, para trilhas no fim de semana não preciso de bota goretex, eu uso botas assim apenas em grandes viagens..... mas já vi que a estratégia é falha, bota guardada é bota molhada.

    DIA 4 – 26/jul Distancia 4,4km Desnível +278 Tempo 3:20 horas

    Mochila quase pronta, passa por nós meia dúzia de chilenos fazendo a travessia no fim de semana. Foram na frente, tinham pressa. Eu não. Estou de férias!

    A coisa começou preguiçosamente as 11:00 em um neveiro. Um sobe e desce leve, mas 100% em neve fofa. Quando a neve acaba, começa uma subida de respeito para o ataque final. Ventava muito, vento gelado, coloquei o cortavento. Apenas quem realmente me conhece sabe o que isso significa: Estava frio pra burro.

    Peguei o GPS e botei “cume San Ramon”. Isso foi um erro estupido, digno de troféu. Só descobriria o erro quando fosse tarde demais.

    Após uma subida brusca, entre terra deslizante neve, chegamos em um platô.Trilha? Que trilha? O caminho estava correto mas nada indicava. Então começa uma subida leve mas em terreno irregular e mal marcado. Assim se conduz ao cume do San Ramon. Conseguimos! Santiago estava aos nossos pés!

    Abrigados em um murinho, lanchamos e procuramos o caminho. Botei no GPS “Dommo San Ramon”... e olhei...bem, eu queria me matar. Burro! Estupido!

    Sobre a foto: Estava abrigado dentro do dommo. Percebi que ia anoitecer. A vista do cume do San Ramon estava lá fora, no frio.
    Me sentia preguiçoso. A temperatura era negativa, acompanhada de fortes ventos. Essa era minha justificativa para ficar dentro do saco de dormir.
    A paisagem, com céu vermelho em plena hora mágica, foi minha justificativa para calcar a bota literalmente congelada.
    O vento era forte e meu tripé estava quebrado. ISO 800 foi minha salvação

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    Eu tinha carregado a mochila até o cume. Estava pesado. O imbecil passou pelo dommo e foi até o cume com a cargueira! Podia ter feito cume leve, sem preocupação, mas não... teve que ser estupido. Volta tudo. Vamos dormir no Dommo..

    Quando eu cheguei no Dommo, o casal de chilenos estava saindo. Saiam tarde, era 14:30! Iam descer pelos Los Azules, disseram que chegariam na estrada depois das 23. Que encrenca...

    Entramos no Dommo e não parava de ventar. Estava frio de verdade. Havia, sei lá como e porque, um pedaço de gelo no interior do dommo, do tamanho maior que um tijolo baiano. No dia seguinte fomos embora e ele não derreteu uma gota, mostrando que no interior do dommo a máxima temperatura estava bem menos que zero grau.

    Sobre a foto: É o dommo San Ramon

    Eu derreti neve, cozinhava... inacreditável, o bujão de gás congelou e grudou no chão! Eu puxei com força e ele não saia de lá! Apenas no dia seguinte, após o café da manhã consegui tira-lo do chão. Estava vazio, ainda bem que roubei gás no Dommo do Provincia. No dia seguinte, ligaria o bujão no hostel, para ver apenas um minuto de chama.

    DIA 5 – 27/jul Distancia 21km Desnível -2.300 Tempo 10:20 horas

    O agradável seria quebrar o dia de hoje em dois dias. Era uma distância longa com descida pesada, mas sem gás, o que significa sem agua, quebrar em dois dias não era exatamente uma opção. Mesmo antes da descoberta do “estamos sem gás” falávamos em descer de uma vez. É uma travessia de 3 dias, e hoje era o 5º dia..... muita moleza né? Pelo menos hoje, vamos pegar pesado.

    Acordamos muito cedo e saímos junto do amanhecer as 9:00. Achei que seria uma navegação fácil, basta ir para oeste e depois que descer, ir para o sul até chegar na estrada, tudo bem marcado, bem tranquilo. Que engano! Até o refúgio Los Azules eu ia dar graças a deus por ter um GPS em minhas mãos. Eu não teria baixado daquilo de jeito nenhum sozinho, ou pelo menos ia me perder dezenas de vezes e levaria horas a mais.

    No alto da montanha, saindo do refúgio via algumas marcas e trilhas sentido oeste. Fui seguindo, sempre montanha abaixo, sem subidinha nenhuma, aguentando um fraco vento patagônico. Sim, tinha que parar, o vento me desequilibrava, pedras voavam. Só não fui derrubado no chão, mas faltou pouco.

    Conforme baixava, engraçado, as marcas e trilhas iam sumindo! Pior. Muitas vezes via caminhos bem marcados que iam para lugar errado. A geografia não ajudava, várias montanhas, as dezenas, sem a menor chance de olhar e sequer imaginar qual o caminho seria o correto. Acho que somando tudo, já fiz mais de mil quilômetros de trilhas diferentes mas ali, eu não fazia ideia, não por instinto, qual seria o caminho correto.

    Vendo o traçado no mapa, o caminho é oeste, mas tem um contorno pelo norte depois de ir em direção sul de olho, no instinto, não fazia ideia. Santo GPS! A pernada que ele deve ter me poupado pagou seu custo nesse dia. Cheguei no refúgio Los Azules e apenas a partir de lá a navegação por instinto, fácil e segura seria possível.

    Eu disse refúgio Los Azules mas na verdade, não sei bem o que é aquilo. Primeiro você vê as ruinas de uma casa de pedra, sem teto e com paredes a “meio mastro”. Depois, algo que parece ser uma fazenda, mas sem gados, sem plantação, toda coberta por meio metro de neve. Não sei se havia alguém ou se poderia acampar. Caminhada longa, apenas continuei descendo.

    Caminho óbvio, lama incrível. Grudava na bota, a ponto da bota ficar pesada. Eu digo pesada mesmo, levantava o pé e era tanta lama grudada que a bota havia dobrado de tamanho! Isso vai, até você chegar próximo do rio El Manzano.

    Depois fica ainda mais fácil, sempre beirando o rio, que cruzávamos várias vezes. Cruzamentos fáceis, do tipo que você passa o rio e sai de bota seca.

    Começa então uma estradinha de terra. Estava quase no El Manzano (acho que é o nome de um bairro). Cheguei junto com o pôr do sol. Ficaria escuro em poucos minutos. Para minha surpresa, a estrada de terra acabava em um portão intransponível fechado por cadeado! Leia de novo a palavra intransponível. Não era possível, pular cerca, passar por baixo, nada.

    GPS não dava a menor pista, nada daquilo estava no mapa. Mas o GPS ajudava a não andar em círculos. Tinha que encontrar um local para pular a cerca. Fui caminhando sentido leste, ora beirando cercas cheias de cachorros bravos em propriedades particulares, ora contornando geografia natural, como arvores. Até que achei um buraco para fuga!

    Pulamos a cerca, voltamos por uma rua inexistente no GPS. Escureceu, encontramos um ponto de ônibus. Acabou! Era 19:20, arrumamos a mochila, guardamos bastão, piolet, etc. Um cara local que estava no ponto explicou tudo, era um ônibus azul e branco (bem cordial, ele mesmo deu sinal pra ele parar). Seu ponto final era no metro, erro zero, baldeação gratuita. Esse busão não aceita cartão de transporte BIP! apenas grana, CLP 1.000 (R$ 5).

    Fim da aventura, comemos em um restaurante giratório, isto é, o chão roda dando uma vista 360 graus da cidade.

    Ramon
    Ramon

    Publicado em 13/01/2017 15:17

    Realizada de 23/07/2015 até 30/07/2015

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