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Travessia das Fazendas
Travessia pelo Ibitiraquire. Entrando na montanha na sexta-feira da paixão e ressuscitando no domingo de Páscoa.
Montañismo Trekking AcampadaA Serra do Ibitiraquire apresenta combinações sem fim para quem quer se aventurar. Desde trilhas menos exigentes até desafios consideráveis. As combinações são tantas que é até injusto falar de Travessia das Fazendas sem dizer por onde exatamente se anda entre uma fazenda e outra.
Essa travessia, realizada no feriado prolongado da Páscoa de 2022, já começou com emoção no tumulto da rodoviária Tietê em São Paulo, na dificuldade de se locomover pela multidão com uma cargueira pesada. E em parar lá em Curitiba para dar um jeito de "voltar para trás" de olho no posto Túlio na BR 116, e chegar na famosa Fazenda do Bolinha. E aí que o jogo virou. Do caos nasceu a paz de, enfim, andar no meio do mato. Só não sabia o quanto essa paz iria durar!
A Sexta
Fazenda do Bolinha - Camapuã - Tucum
Apesar do mês de abril não ser o melhor para subir montanhas no Brasil, a época de chuvas já havia dado uma trégua e a chegada na Fazenda do Bolinha foi marcada por um dia bonito, com tempo aberto. A ideia era começar a caminhar logo cedo, mas os atrasos com a viagem de São Paulo ao Paraná fizeram que o start acontecesse só por volta das 10 da manhã. Rápido cadastro na fazenda, até para existir um controle de quem está na trilha e acionarem resgate em caso de emergência, pagamento de uma taxa de R$ 10,00 (na época) e início da subida por uma trilha de mais ou menos 1 hora por mata sombreada, passando pela famosa árvore bifurcada, alguns riachos e subidas por valas repletas de lama (as águas de março que fecharam o verão deixaram sua marca na minha bota) e a chegada nas famosas placas que fazem a divisão dos que querer subir rumo ao Camapuã, ou os que querem quebrar em direção ao Siririca
Árvore bifurcada no início da trilha saindo da Fazenda do Bolinha. Marco da região.
Bifurcação entre os que vão para Camapuã e os que vão para Siririca. Três destinos da travessia: Camapuã, Tucum e Cerro Verde.
Apesar da quantidade de lama absurda, a disponibilidade de água também era farta, no entanto, é interessante abastecer tudo o que pode antes das placas para não precisar desviar muito ao fazer a dobradinha Camapauã x Tucum. A subida para Camapuã é realizada em parte na mata fechada, até alcançar cara de montanha: ganhar vegetação rasteira e uma rampa com grau de inclinação generosa e, que apesar de ao primeiro olhar parecer infinita, o peso da subida se dilui com uma vista panorâmica sensacional para a Serra do Ibitiraquire e faz ser um prazer encarar a pequenos passos, seja para recuperar o fôlego, seja para apreciar a vista, seja para fazer um deles com a desculpa do outro.
Barro no pé e vista para o Ibitiraquire. Durante a subida inclinada do Camapuã.
E quando menos se imagina, está lá o Cume. Alcançamos as 15 horas do mesmo dia. Tempo bonito. Enorme! Espaço generoso para camping e os vestígios do que foi um dia um livro do cume, mas que tinha sido totalmente destruído pelas chuvas. Camapuã vem do tupi-guarani com o significado curioso de "seios erguidos" devido ao formato quando visto de longe. Dos seus 1720 metros é possível ter uma vista privilegiada do Pico Paraná e do Itapiroca. Olhando para o outro lado, seu irmão, Pico Tucum com seus 1733 metros. Então, cargueira nas costas pois a chegada no Tucum envolvia bem mais que os 13 metros de subida que diferencia os dois...
Cume Camapuã - grande area para camping.
Cume Camapuã.
Livro do cume Camapuã - 1/4 livros da travessia.
...Mas nada muito complicado. A descida do Camapuã pela outra face não é tão íngreme. Entre ele e o Tucum existe um ponto de água, mas como estava carregado, não precisei usar. A subida para o Tucum também não é tão complicado. Basta seguir a trilha por entre as pedras que fazem parte da montanha e quanto menos se vê, alcançamos o cume do que, ao meu ver, é a vista mais bonita entre as montanhas que estive no Ibitiraquire.
Camapuã com destino a Tucum.
Alcançamos o Pico do Tucum às 16 horas do mesmo dia. Assim como o Camapuã, ele oferece um espaço bem grande para acampar, porém cheio de vegetação rasteira de um tipo bem familiar às montanhas do Paraná. No dia que estive fui brindado com um mar de nuvens sensacional que aparecia cobrindo parcialmente o Pico Paraná e em baixo de um céu extremamente azul. Apesar do fim de tarde do Tucum ser sensacional, pensamos sobre seguir em frente, afinal, o objetivo do dia era o Cerro Verde!
Cume do Tucum. Vegetação típica campestre. Pico Paraná coberto pelas nuvens a frente.
Livro do cume Tucum. 2/4 livros da travessia.
Era... no passado mesmo. Os atrasos que enfrentamos na viagem resultaram em começar a trilha mais tarde do que o previsto. Isso associado a uma neblina que começou a subir a partir das 17 horas nos fez repensar essa decisão. Era a primeira vez na trilha, eu sabia que o cume do Cerro Verde podia não ter tanto espaço para acampar quanto o Tucum e a neblina que levava a visibilidade quase a zero nos fez recuar e montar o acampamento onde estávamos mesmo.
E por dois motivos, essa foi a decisão mais acertada da travessia.
O Sábado
Tucum - Cerro Verde - Itapiroca
Apesar da pouca visibilidade na noite anterior, o Tucum proporcionou um belo pôr do sol, mas uma noite fria com uma ventania que fazia tremer a barraca. O frio e os ventos persistiram pela manhã, tornando fazer o café uma tarefa bem mais difícil do que o usual. Mas, quando a neblina ainda tampava o Pico Paraná, e eu achei que ficaria no 0x0 naquele cume, o sol começou a aparecer, vencendo a neblina e proporcionando uma das mais bonitas experiências que já tive em montanhas. Era como uma bola de fogo gigante ao lado do Pico Paraná. Esse foi o primeiro motivo que fez valer a pena passar a noite naquele lugar...
Nascer do sol em Tucum.
Vista para o Pico Paraná. Manhã bonita com o tempo mais aberto.
... o segundo motivo foi a decida que encaramos pela frente. Descer o Tucum pela face oposta não foi uma tarefa tão simples assim quanto a subida. A descida é extremamente íngreme, com o "para baixo" sendo a única direção possível. Cada passo tem que ser dado com calma para não pisar em falso e experimentar uma queda bem feia. Em alguns trechos, cordas fixadas (e não tão confiáveis) estavam a disposição para auxiliar, em outros trechos a gravidade dava conta do recado. Para piorar um pouco, o excesso de lama deixava a trilha para baixo mais escorregadia, e portanto, mais perigosa. Foi um alívio terminar a descida e um alívio maior ainda não ter encarado o trecho mais desafiador da travessia durante a noite. Pronto. Motivo número dois.
Há um ponto com bastante água ao final da descida e extremamente útil para relaxar e fazer um lanche.
Tucum visto de longe. Trilha da descida quase em linha reta.
Após a descida do Tucum, é só seguir uma trilha bem demarcada, mas com a vegetação um pouco fechada até chegar na bifurcação que separa Cerro Verde de Itapiroca. Para o Cerro Verde é só uns cinco minutinhos de subida. Assinei seu livro do cume as 13:00 horas do dia 2.
Livro do Cume Cerro Verde. 3/4 livros da travessia.
O Anfiteatro do Ibitiraquire, ou simplesmente Cerro Verde. Uma montanha que possui localização privilegiada na serra paranaense. O apelido de anfiteatro não vem atoa. Com seu panorama de 360° é possível admirar as principais montanhas da região, inclusive o gigante Pico Paraná, o K2 paranaense Siririca e a subida do Itapiroca que seria o próximo desafio do dia.
Cume do Cerro Verde. Vista para o Siririca.
Cume do Cerro Verde. Vista para o Pico Paraná.
No Cerro Verde não deu para ficar muito tempo, porém o suficiente para o gosto de quero mais. A saída de lá foi na hora certa, pois a subida do Itapiroca deu conta de ceifar o resto das horas de luz que existiam no dia. A trilha para chegar no Itapiroca foi a região mais confusa de toda a travessia. O início da temporada de montanhas e o pouco trânsito de pessoas faziam a mata ficar bem fechada. Nesse ponto foi importante ficar atento nas marcações que apareciam de forma mais sútil. E a subida rumo ao cume foi o trecho que mais subestimei enquanto estive programando a travessia.
Com a via branca na cabeça, que se sobe pela Fazenda Paraná, achei que a subida por esta outra face seria mais tranquila do que realmente foi. A vantagem são os inúmeros pontos de água, que servem de pretexto para paradas estratégicas em uma subida que parece não ter fim. Alguns trechos de trepa pedra são necessários, outros se faz importante desviar de lamaçais, mas o que realmente mais incomodava eram as caratuvas, tão típicas do lugar, que davam cabo de agarrar na cargueira constantemente nos puxando para trás ou para baixo. Alguns trechos eram complicados de atravessar com a mochila nas costas. Quase chegando ao cume eu pensei que nunca imaginaria que a maior prova de paciência que teria nesses dias seria por conta da vegetação típica do lugar. Acontece!
Por esse caminho, primeiro se passa pelo cume mais elevado (bem pequeno), e depois chega na região onde está o quarto livro do cume dessa travessia.
Livro do cume Itapiroca. 4/4 livros da travessia.
Assinei correndo. Sem tempo para muitas fotos, o tempo de abril já se mostrava impaciente e não tão agradável e começava a fechar de forma bem rápida. Desci rapidamente para a área bem grande de acampamento. O tempo fechava cada vez mais. Avistei as barracas, pensei feliz no dia que aconteceu desde o nascer do sol do Tucum até aquele momento no Itapiroca. O tempo cada vez mais impaciente. Mirei a área de camping e fui sem pensar em sua direção. Pisei em um lamaçal aparentemente inofensivo. Afundei na lama até o joelho. Começou a chover!
O DOMINGO
Itapiroca - Fazenda Paraná
Quando mencionei que a noite do Tucum foi castigada por ventos fortes, eu não imaginava o que seria a noite no Itapiroca. Já não bastando montar acampamento debaixo de chuva e todo cheio de lama, a noite toda acordava achando que a minha Azteq não ia dar conta de segurar aquela ventania e a chuva forte que insistia em cair durante toda noite. De dentro da barraca ouvia alguns colegas aventureiros chegando de tentativa abortada de acampar na base do Pico Paraná para acampar no Itapiroca. Todos encharcados. Na manhã seguinte os relatos eram muitos: barracas que desprenderam e começaram a voar, barracas que não seguraram a água que caía, barracas que alagavam de baixo para cima (no charco que aquele cume virou) e pessoas que foram procurar abrigos em barracas vizinhas.
Faz parte do jogo!
Dizem que do Itapiroca é possível ver toda a dimensão da serra verde em volta: do Pico Paraná na parte oeste ao Caratuva ao norte. Do Camapuã e Tucum ao sul até o Siririca mais distante. Com boa vontade se vê até o famoso Marumbi. Da minha parte eu via apenas alguns palmos na frente da mão. A manhã chegou sem chuva, mas com o tempo ainda de ressaca da noite anterior. Nublado e pouco receptivo. Era hora de levantar acampamento para terminar de vez a travessia.
Aparência do Itapiroca no domingo pela manhã. Reflexo da chuva pesada na noite anterior.
A descida do Itapiroca até alcançar a via branca parecia mais um aquatrekking. Os pés iam imersos em correntes de água fraca que seguiam para o mesmo sentido. Quando ficava mais estável, charcos de água impossíveis de serem desviados apareciam. Assim foi toda a descida também pela via branca, que, mais simples do que a subida pelo outro lado, ainda assim se mostrava um teste de paciência ao cobrar pular raizes, abaixar de troncos e trepar em árvores a todo momento (seis meses depois encarei a via branca na descida do Pico Paraná, dessa vez totalmente seca e a experiência foi outra. Relato para uma próxima vez).
Ao fim desse trecho de pouca quilometragem, mas que rende algumas horas, chegamos novamente às famosas placas da região. Só que dessa vez sinalizando que a Fazenda Paraná estaria se aproximando e que o trecho mais tranquilo de toda a trilha estaria chegando (em qualquer expedição para o Ibitiraquire é sempre um prazer encontrar com essas placas).
Quase fim de jogo. Placas marcando os últimos quilômetros da travessia.
De fato, em uma trilha ainda um pouco longa, mas nem um pouco complicada, passando pelo Morro do Getúlio, um pouco depois já foi possível avistar a fazenda e vislumbrar bem o pastel com a coca-cola bem gelada que merecidamente apareceria na minha frente.
Para a maioria esse é o fim de trilha. A nós ainda restávamos caminhar os 7 km da Fazenda até a BR 116. De lá conseguir um ônibus na estrada até Campina Grande, para pegar outro ônibus até Curitiba e por fim um último ônibus até São Paulo. Nos apresentamos em sociedade sujos, cheios de lama e da melhor forma que três dias sem banho no meio do mato podem oferecer. Na cabeça a sensação de felicidade pensativa em ter encarado essa travessia magnífica.
Desmaiei no ônibus a viagem toda de volta para São Paulo, mas no dia seguinte, pensando em tudo que foi e como foi, um pouco alegre, um pouco melancólico.
Poderia evitar esse mal tempo no Itapiroca de diferentes formas. Mas não me culpo. Ninguém ressuscita das montanhas no terceiro dia sem passar por algum drama.
Ao Ibitiraquire que voltaria a frequentar tantas vezes depois dessa! Um orgulho.
que maneiro o pico do Camapuã. Um dia ainda acampo ali !