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Ricardo Feres 26/03/2022 22:14
    El Chaltén (segunda visita)

    El Chaltén (segunda visita)

    Relato do circuito Vuelta al Huemul, uma linda trilha de 4 dias ao redor do Cerro Huemul, com vista para o Campo de Gelo Continental Sul.

    Trekking Montanhismo Acampamento

    Esse é o relato da segunda trilha que fiz em El Chaltén, dois meses depois da minha primeira visita, durante a viagem que rendeu o livro . Apenas uma ou outra foto desse relato faz parte do livro, para ver mais fotos que fazem parte da publicação, clique aqui.

    Essa foi minha terceira ida pra El Chaltén na mesma viagem. A primeira parada, no fim de outubro, foi boa, pois fiz o circuito do Fitz Roy em 3 lindos dias de sol e fotografei os lagos ainda congelados por conta do longo inverno. Isso depois de ter que esperar apenas dois dias pra que as nuvens liberassem a vista pras montanhas. A segunda parada foi frustrada por um vidro do carro quebrado durante a noite, não posso dizer se pelo vento ou vandalismo, só sei que precisei deixar a Argentina e ir pro Chile pra trocar o vidro, em vez de fazer a Vuelta al Huemul. Agora, dois meses depois, os lagos já estavam descongelados e eu poderia finalmente refazer o Circuito Fitz Roy e a Vuelta al Huemul, só precisava combinar com o clima, que estava ainda mais instável que o normal.

    Logo ao chegar na cidade, minha primeira parada foi no Centro de Informações da APN, o órgão que controla os Parque Nacionais Argentinos, e a conversa com o guarda-parque foi assim:

    -Queria saber como está a previsão, já que vou fazer os dois circuitos do Parque.

    -Quanto tempo você tem livre?

    -O quanto for preciso, pela sua pergunta a previsão está ruim, certo?

    -Por pelo menos 10 dias as montanhas estarão encobertas pelas nuvens, com uma ou outra abertura, mas insuficiente pra fazer a Vuelta al Huemul. Depois eu não sei porque nossa previsão é de 10 dias.

    Já imaginou a minha frustração ao ouvir isso? Ainda bem que novamente eu tinha hospedagem grátis, pois era quase Ano Novo e não sairia barato ficar parado por 10 dias esperando as nuvens irem embora. Gastar dinheiro mas estar produzindo é bem diferente de pagar e não poder trabalhar, o que me deixa agoniado e ansioso.

    Depois de 3 dias na Hostería Fitz Roy apenas editando fotos, a previsão disse que haveria um dia com céu limpo. Apenas um dia, então me planejei pra sair às 3 da manhã, pegar o nascer do sol no caminho pro Fitz Roy, subir até a Laguna de los Tres, descer até a Laguna Sucia, ir no mirante do Glaciar Piedras Blancas e também na Laguna Capri. Ufa… Plano ambicioso, com 34 km de caminhada, mas seria o modo de fazer as fotos que me faltavam desse circuito, já que da Laguna e Cerro Torre eu tinha todas as fotos que queria.

    Nascer do sol na trilha para a Laguna de Los Tres

    Pra resumir um longo dia em uma pequena frase: deu tudo certo! Cheguei no começo da noite na pousada e pude passar os dias seguintes dando descanso aos joelhos, que ficaram bem doloridos. O que causou as fortes dores eu não acho que foi a distância nem a elevação, já que por várias vezes nessa viagem eu andei mais que 30 km em um dia e, pior, carregando a mochila cargueira com 20 kg, sendo que nesse dia eu levava pouco peso. O meu estilo de andar é lento e fazendo paradas rápidas pra fotografar, nunca paro pra descansar nem pra comer. Deixo à mão as comidas que posso comer enquanto ando, assim não perco tempo e os joelhos não esfriam, mas nesse dia eu tive que andar bem rápido e ficar parado por períodos longos, esperando a luz que eu queria, então imagino que esse tenha sido o motivo das dores.

    Laguna de los Tres finalmente descongelada e, ao fundo, o maciço do Fitz Roy

    Laguna Sucia (esquerda) e Laguna de los Tres (direita)

    Nove dias depois, outra previsão de bom tempo mas para apenas um dia. De qualquer forma eu já estava mofando e resolvi que tentaria fazer a Vuelta al Huemul. Esse é um circuito de 4 dias que deixa o trilheiro de frente para o Glaciar Viedma, mas que tem trechos no segundo e terceiro dias que não devem ser feitos com tempo ruim, tanto pelo perigo como porque não haveria vista pro Campo de Gelo Continental, então qual o motivo de estar lá?

    O primeiro dia de trilha foi lindo, com bastante sol e algumas nuvens escondendo o cume do Cerro Huemul, mas nada que meia hora de espera não resolvesse até ter uma boa visão, fotografá-lo e seguir em frente até o acampamento da Laguna Toro. Depois de uma tarde agradável lendo sob o sol, fui dormir cedo, torcendo pra que a previsão estivesse errada e o dia seguinte não amanhecesse com nuvens baixas. Sabe aquela previsão do tempo que vive errando quando você planeja passar o fim de semana na praia? Pois bem, aqui na Patagônia ela está quase sempre certa: o dia amanheceu sem vista alguma pras montanhas e resolvi voltar pra cidade. Valeu a tentativa, ao menos passou o tédio de ficar 9 dias sem trilhar.

    Lendo um pouco e aproveitando pra me esquentar

    Outros seis dias editando fotos em El Chaltén até que aparecesse uma previsão boa. Ainda bem que nesse tempo conheci alguns paranaenses e tive alguém pra conversar em português, e no dia 29 de dezembro fui novamente pro Huemul.

    Não saí cedo pois já tinha as fotos que precisava e o clima não prometia ajudar no primeiro dia, mas foi melhor do que o previsto. Outra vez dormi cedo pra poder madrugar, e qual foi minha alegria ao ver o nascer do sol quase sem nuvens, enquanto fotografava uma raposa sonolenta, que deve ter passado a noite procurando por comida deixada fora de alguma barraca.

    Raposa perto do acampamento da Laguna Toro

    Logo no início da trilha é preciso atravessar um rio, o que pode ser feito em um trecho em que ele é pouco profundo, ou em um pequeno cânion, onde há uma tirolesa. Não me incomodo de colocar os pés na água fria, mas já que eu estava carregando cadeirinha e mosquetões, resolvi usá-los. Quando atravessei, conheci o Thibaud, um francês que havia atravessado há pouco e logo em seguida veio um casal de ingleses, que acabei conhecendo também, mas saí andando sozinho, como prefiro.

    Primeira tirolesa do circuito

    A trilha segue por uma encosta de pedras soltas, desde pequenas pedras a grandes blocos de rocha que, ao pisarmos, deslizam e levam junto as pedras que estão acima do trilheiro. Tem gente que prefere andar na beira da geleira que está abaixo dessa encosta, mas eu quis ir um pouco mais pelo alto pra poder fotografar melhor o Glaciar Rio Tunel. Trecho chato de andar e com boas chances de ter uma perna quebrada se não tomar cuidado com os deslizamentos causados por nossos próprios passos, mas ao chegar no alto do Paso del Viento, a vista impactante do Campo de Gelo Continental Sul foi de arrepiar! Meus amigos chilenos que me desculpem, porém essa vista foi ainda mais impressionante que a do Paso John Gardner, em Torres del Paine.

    Campo de Gelo Continental Sul visto do Paso del Viento. Para ver as fotos mais bonitas do campo de gelo, acese o link no início desse relato.

    Fiquei um bom tempo por ali, conversando com o Thibaud e o José, um argentino que estava fazendo um bate-volta até o Paso e, claro fotografando e admirando a paisagem, que infelizmente não transmite o mesmo impacto nas fotos porque não dá pra passar a dimensão da geleira. Momento de contemplação terminado, saí junto com o Thibaud rumo à Laguna del Refugio. Infelizmente, apesar da trilha seguir paralela à geleira, não há vista pois a trilha anda por um vale. Como fomos os primeiros a chegar no acampamento, pudemos escolher os melhores lugares pras barracas e nadar um pouco em sua água gelada pra tirar a sujeira dos dois primeiros dias de caminhada.

    Não é fácil entrar em um lago de degelo, mas é revigorante.

    O terceiro dia de caminhada segue paralelo à geleira, mas à medida que se ganha altura para atravessar o Paso Huemul, passa-se a ter vista pro Campo de Gelo. Não sei se porque hoje o dia estava ainda mais ensolarado, mas achei a vista mais impressionante até mesmo que a do Paso del Viento. Quando cheguei no alto do Paso, fui com o francês até um mirante, por uma caminhada de apenas 40 minutos (só ida) que é imperdível, já que de lá se pode ver o fim do glaciar e o início do lago Viedma. Como as pessoas costumam chegar cansadas e querem descer logo até a praia, mais ninguém foi até o mirante, mas recomendo muito que faça isso, pois se essa não é a vista mais bonita dos quatro dias, está perto de ser.

    Então veio a tão famosa descida do Paso Huemul, que todo mundo diz ser muito íngreme e perigosa, que é necessário se segurar nas árvores e pedras para não cair, blá blá blá. Não sei se foi porque já havia ouvido relatos terríveis desse trecho, mas pra mim, o que foi pior foram as incontáveis mutucas que ficavam me rodeando. Como eu tinha que usar as mãos pra me apoiar nos bastões, de tempos em tempos eu parava pra que pousassem e eu pudesse matá-las. Só durante a descida, 17 mutucas descobriram se há vida além da morte, e isso passou a ser uma constante nas trilhas da Patagônia durante o verão, então venha psicologicamente preparado porque não tem repelente que as espante.

    O acampamento no Lago Viedma é outro lugar que ninguém esquece, não tanto pela praia em si, que é de pedras, mas pelos inúmeros icebergs, de todos os tamanhos, que chegam até a praia. Por ser um dia de sol e sem vento, entrar na água foi tranquilo até mesmo pra um brasileiro que não gosta de água fria, afinal, quando terei outra chance de nadar rodeado de icebergs? Já a Heather, namorada do Barney, o casal que eu conheci na tirolesa, ficou nadando como se estivesse em uma piscina aquecida por pelo menos 15 ou 20 minutos, impressionante! Sem dúvida foi um bom jeito de terminar o último dia de 2019, já que ninguém ficou acordado pra comemorar a virada do ano, estava todo mundo dormindo pesado.

    Os braços tensos mostram que, novamente, não foi fácil entrar na água, mas logo o corpo se acostumou. Foto feita pelo Thibaud.

    Essa foto é claro que foi feita pra brincar com os amigos que ficam postando fotos pegando sol nas praias brasileiras, mas acreditem, não é tão frio como parece. Foto feita pelo Thibaud.

    O primeiro dia de 2020 começou cedo, já que eu queria estar, antes do nascer do sol, em uma península com vista pro Glaciar Viedma, pois da praia não se vê a geleira. Outra vez o sol estava lindo, sem nuvens pra atrapalhar seu nascer, então fiz minhas fotos e logo comecei o longo e entediante caminho de volta pra El Chaltén. Depois de tantas paisagens impressionantes, andar 30 km com poucas vistas bonitas, já com as pernas um pouco cansadas, foi realmente desgastante. Nesse dia há mais uma tirolesa, sobre um rio que eu tentei atravessar a pé mas desisti no meio, pois é mais fundo e caudaloso do que aparenta, e eu fiquei com medo de molhar os equipamentos de foto.

    Assim que cheguei em El Chaltén, um dos paranaenses falou que eu estava com cara de muito cansado, já o outro foi mais direto e disse que eu estava acabado. Amigos, né… E no dia seguinte, o administrador do camping falou “acho que te vi ontem na estrada, quase se arrastando pelo acostamento, era você?”. É, acho que eu comecei o ano meio cansado, mas felicíssimo por ter feito as fotos das duas travessias.

    No dia seguinte fui comemorar a virada do ano e o sucesso da trilha comendo um bom cordero patagonico junto com o Thibaud, Heather e Barney. Eu ainda queria fazer uma trilha bate-volta, que não é parte do projeto mas que dizem ser muito bonita, mas como não tinha previsão de melhora, mesmo depois de 3 dias de espera, resolvi seguir em frente, rumo ao Parque Nacional Patagônia, no Chile.

    Ricardo Feres
    Ricardo Feres

    Publicado em 26/03/2022 22:14

    Realizada de 19/12/2019 até 01/01/2020

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    2 Comentários
    Frank 25/10/2022 08:28

    Olá Ricardo Feres , belíssimo relato. Estou indo em janeiro próximo a El Chaltén. Vc sabe dizer se a administração do parque permite o acesso a famílias para a volta ao Huemul? Meus filhos adolescentes também já têm experiência em travessias, filha de 12 e filho de 16anos.

    Ricardo Feres 30/10/2022 07:51

    Oi Frank, agradeço o elogio. Acredito que não terá problemas, eu conheci um casal de argentinos que estava com duas crianças, de 8 e 10 anos. Eles não fizeram o percurso todo, foram até o primeiro acampamento e dormiram duas noites lá, mas o pessoal do parque não teria como controlar se eles fossem em frente.

    Ricardo Feres

    Ricardo Feres

    São Paulo

    Rox
    120

    Fotógrafo de natureza e autor do livro As Mais Belas Trilhas da Patagônia

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