Travessia Das Fazendas - com Bônus
Travessia entre a Fazenda da Bolinha e a Fazenda Pico Paraná, com ataque ao Ciririca por cima e pernoite no Ovos de Dinossauro e Itapiroca.
Montañismo Trekking AcampadaTravessia das fazendas com bônus
Que fazer quando o verão parece se estender, interminável, com suas chuvas e trovoadas? Planejar os “que que eu tô fazendo aqui” da temporada, lógico.
O convite veio pelo Douglas Garcia, que sofrera comigo perrengues memoráveis nas várias vezes em que a Serra Fina Full fora desenhada, a passos suados, nas montanhas da Mantiqueira. Subira também a face sul da Pedra da Mina, numa expedição em que a beleza cênica inesgotável faz par com o risco de morte a cada passo. Entenda: digo isso literalmente. Não é fingira de linguagem. Com a tranquilidade que me é usual, aceitei imediatamente, para depois procurar entender em que “roubada” me metera.
A proposta era a clássica travessia das fazendas, entre a Fazenda do Bolinha e a Fazenda Pico Paraná. Iríamos todos de van, permitindo descansar na ida e na volta, enquanto o responsável motorista contratado dirigia pelas pelas perigosas estradas que ligam SP ao sul maravilha. Os grupos teriam liberdade para expandir a pernada, sempre de forma autônoma e responsável, à seu bel prazer.
De forma que caí para dentro do planejamento de uma pernada à altura da temporada de montanha de 2022, pós Pandemia de Covid-19, que fez de 2020 e 2021 anos de imensas alegrias, porém com poucas montanhas.
Como o papel tudo aceita, e subestimar dificuldades e superestimar capacidades é um esporte do qual sou muito afeito, montei um roteiro supimpa, com km de alegrias e centenas de metros de “buscar-o-céu”pelas próprias pernas.
Plotei mapas, verifiquei (várias e várias vezes) a previsão do tempo, acabando por aceitar que, caso a Fortuna não nos brindasse com seu olhar, faríamos uma pernada molhada, lamacenta e mais curta. Pelo menos sede não passaríamos. Com o aproximar da data, pudemos ter certeza de que não teria tempestade elétrica, um grande receio meu, quando o tempo ainda está meio que instável.
Como nossa pernada pretendia ser mais extensa, buscamos com o grupo validação para anteciparmos a saída de SP, conseguindo ganhar duas cruciais horas de luz no primeiro dia, em que estaríamos mais distantes do grupo principal. De forma que não sairíamos mais à zero hora do dia 16, mas às 22h do dia 15. Agradeço enormemente a compreensão e gentileza do grupo nessa mudança.
Arrumei a mochila algumas vezes, como de hábito… revi o planejamento, testei as refeições que pretendia fazer, completei o kit de medicamentos e de primeiros socorros. Na quarta à tardinha, subi pra SP, para pernoitar na casa dos meus pais, trabalhar de lá em home office e minimizar o e risco de algum imprevisto me tirar do rolê.
Na quinta, madruguei ansioso e trabalhei, não nego, com um olho no relógio. O ponto de encontro, bem escolhido, era uma padaria em frente ao Metrô Butantã. Aos poucos o pessoal foi chegando e se apresentando. Turma animada, cada um com seu jeito. Uns menos dispersos, outros mais. Éramos 16: eu, que escrevo este, o Douglas Garcia, o Denis Bento, o Rafael Soares, o Rodolfo Soares, o Carlos Renato, o Rodrigo Ramos, o Dan Garcia e o Bruno Oliveira, que acabou por abrir mão da pernada, na 25° hora. Representando o universo mais forte e encantador, tínhamos: Lenka Rejfirova; Viviane Batalha; Paola de Mello; Artemisa; Liane Curioso; e a Denise Bento. Na chegada encontraríamos a Beatriz Miano e a Vanessa. Ali mesmo começamos a aliciar o Denis para a nossa roubada. Ele por sua vez tentava nos dissuadir.
Dia1.
A viagem transcorreu bem sossegada e como de costume dormi quase que o tempo todo, só levantando para esticar as pernas nas paradas e voltando a dormir em seguida. Chegamos na fazenda do Bolinha, arrumamos de forma bem expedita nosso material e saímos à frente do grupo principal, pois nossa jornada seria mais longa e menos sensata. Combinamos de encontrarmos no cume do Cerro Verde, na primeira noite ou no Itapiroca, na segunda.
Seguimos em passo apertado, e logo encontrei o primeiro bônus da pernada: pendurado sob uma árvore que passamos, lindos espécimes de auricularia desafiavam a gravidade… parei rapidamente, conferi a identificação, e confiante, ingeri um bocado, para desconcerto dos meus colegas de trilha…. kkk … pequenas e bobas alegrias tão contrárias ao mainstream… em seguida, tocamos em frente, cuidando de não errar o cruzo onde deixaríamos a trilha no vale para buscarmos o ombro do Camapuã, por onde subiríamos até o cume.
O receio era devido, pois eu nunca havia trilhado ali, e, por afoiteza, seguia à frente. Sei o quanto é comum que, mesmo conhecendo o caminho, os trilheiros que estão para trás seguirem o da dianteira, por suporem que esse também conhece o caminho, que é “apenas impressão” ou pelo constrangimento de se posicionar. Esse é um dos motivos que em lugares de navegação mais delicada, acabo por preferir fazer a posição de “fecha-trilha”, assim, ajudo na navegação de forma mais eficaz e segura.
A descrição de que, no cruzo haveria uma área plana, com placa e dois caminhos bastante batidos, me tranquilizou a ponto de permitir que desse vazão à ansiedade de acelerar um pouco a pernada, buscando ganhar minutos preciosos de luz do dia.
Chegamos ao cruzo às 7:20 e depois de breve pausa pra fotos, tocamos pra cima, buscando as primeiras vistas das montanhas. Havia outros trilheiros compartilhando a subida, porém todos praticantes de corrida de montanha com os quais fomos alternando passar e deixar-passar encosta acima até alcançar o ápice do Camapuã, às 8:20, para descobrirmos que o livro de cume estava imprestável, pois não havia sido protegido da água, ao que parece algum mau-montanhista, ou para ser mais preciso, um vagabundo qualquer, não fechara adequadamente a caixa de cume. O caderno estava fora da sacola plástica que existia para protegê-lo… certamente esse pessoal nunca levou um caderno de cume montanha acima, por horas, para permitir a alegria de outros em fazer seu registro e auxiliar em eventuais buscas. Essa é, na verdade, uma das, senão a principal, razão de ser desses cadernos. Permite à equipe de busca e resgate “calibrar” as variáveis de busca, tornando o processo de resgate muito mais efetivo: delimita a região mais provável (por onde se começa a busca), dá referência do condicionamento físico do sumido, permite inferir a condição climática e identificar trilheiros que estiveram “próximos” ao buscado. Adicionalmente, propicia informações cruciais quanto ao afluxo de montanhistas, sua origem, etc… utilizados em estudos e estatísticas acadêmicas ou não, de forma a melhor balizar a gestão da trilha pela sociedade. De forma simplificada, ima trilha que “ninguém” vai não justifica investimento em sua manutenção… por outro lado, também gera reduzidíssimo impacto ambiental. Uma trilha mais batida, como essa em que estávamos, exige que se façam obras de engenharia para que a erosão seja minimizada. Não é por luxo, ou nutelagem, como é frequente supor, que são feitos os degraus e as canaletas para desviar as águas para fora da trilha em intervalos meio que regulares.
Como nessa pernada, não tínhamos conosco nenhum caderno de cume (planejamento, sempre se esquece de algo, rsrs), fechamos a caixa e seguimos em frente, buscando agora o Tucum, nosso segundo cume do dia. Entre o Camapuã e o Tucum, a pernada é curta, nos permitindo alcançar seu cume em pouco mais de meia hora de caminhada, às 9:05. Foi um alívio constatar que, nesse cume, o caderno estava intacto. Fiz o breve registro, verificamos rapidamente quantos montanhistas haviam passado por ali, colocamos o adesivo do grupo ao lado dos LDI, no qual temos amigos e deixamos o cume, iniciando uma das descidas mais íngremes do dia. Dizer que a descida é intensa é minimizar a coisa, rsrs. Basicamente, ali se desescala a maior parte do tempo, com ajuda de raízes, de bambus e capins. Trechos em que esses não estão tão disponíveis foram dotados de cordas para auxiliar na transposição. Sempre sou mais cuidadoso nesses trechos, pq a abrasão e as intempéries danificam a corda, que um dia/hora irá romper… se não for substituída antes, logicamente. Procurando ter uma queda menos grave em caso de ser o “premiado”, desço rapidamente esses trechos, parando para aguardar os amigos e fazer um ou outro registro fotográfico dessas passagens mais técnicas.
É interessante observar qual solução outros caminhantes dão nessas passagens, principalmente se vc apanhou muito dela e o seguinte passa “de boa”, rsrs. Passo por uma pequena nascente, à esquerda da trilha e aproveito para repor a água consumida, porém evitando o peso desnecessário, uma vez que ainda teríamos vários pontos de água, antes de pegar a crista mais exposta ao sol, e por conseguinte, mais seca. Note, prezado leitor, a preocupação inicial com as tempestades. Estávamos no início da temporada, de forma que as águas, nesse momento são abundantes… situação que certamente não se repete no final da estiagem. Tenha isso em mente, ao planejar a tua pernada.
Desescalando com calma e cuidado, chegamos ao vale e, após cruzar alguns peguemos cursos d’água, sem ganhar ou perder altitude relevante, alcançamos o segundo cruzo do dia. Em frente (para cima) estava o caminho que leva ao Cerro Verde e, à direita, em nível, o caminho que nos levaria, se déssemos conta, ao Ciririca. Como os corredores de montanha com o quais revezamos o sobe e desce até ali haviam informado, o cruzo ocorria numa área aberta, de campo de altitude, com capins e escassos arbustos. Realmente, era simples de identificar… mas eu passara direto, poderia dizer que foi apenas para alcançar uma posição mais elevada e fazer um registro fotográfico mais simpático, “de cima”… poderia dizer que foi erro mesmo, para valorizar a navegação, rsrs… mas não; a explicação é um pouco mais ladina: ao chegar no cruzo, optei por subir uma vintena de metros para ter registrado no GPS o ponto do cruzo, permitindo que na volta tivéssemos claro o ponto de desvio, se fosse necessário.
Enquanto aguardava os colegas fiquei curtindo a vista e pensando sobre o quanto a água é basilar para a vegetação, para a vida mesmo… no colo que havíamos cruzado há pouco, a unidade impera, as árvores crescem recobertas por musgos, liquens e epífitas. Bromélias e orquídeas estão por toda parte, tornando a pernada de quem as admira mais lenta. Não é difícil entender porque essas áreas muitas vezes recebem a alcunha de “mágicas”, quando as comparamos com a aridez dos extensos campos de capins onde a gramínea amarela no estio e mesmo os valentes bambuzinhos apenas sobrevivem, baixos e retorcido pelos ventos.
Com a chegada dos amigos, faço uma foto deles no cruzo às 10:20 e desço para seguirmos a pernada até o Ciririca… eu havia planejado que fosse feita de ataque, mas a incerteza quanto à conclusão exitosa, e o clima que não assegurava estabilidade, fez com que tanto o Douglas quando o Denis me acompanhassem com as cargueiras, pesadas e enormes. De qualquer modo, eu faria de cargueira, pela segurança do kit de PS, agasalhos, etc… de qualquer modo, minha mochila estava tão otimizada, que não havia o que retirar mesmo, rsrs. Motivados pelo desafio iniciamos esse trecho num passo forte, mas a trilha logo mergulhava numa florestinha e ali se perdia… adotamos o clássico processo empírico e com algumas tentativas, farejamos a sua correta direção… confesso uma pequena maldade de me divertir com a apreensão do Denis quanto à possibilidade de êxito se já “apanhávamos” da Serra, nos primeiros metros… afinal, nossa previsão era de que faríamos a volta daquele trecho certamente à noite … atravessamos a florestinha com seus dois pequenos cursos d’água e iniciamos a subida do do primeiro Pico “extra” do rolê: Pico da Lua.
A inclinação da subida não chega a ser intensa, mas os arbustos que tomavam a trilha tornavam o avançar mais árduo que muita pirambeira por aí… feliz e infelizmente, essa seria a normalidade do caminhar desse dia: vencer a vegetação morro acima… vencer a vegetação morro abaixo… e para variar, vencer a vegetação nos cumes, kkkk. A dificuldade do avanço nos fez refletir sobre o quanto é árduo e desgastante a abertura de trilhas nessa macega. E o quanto deve ser desesperador estar perdido, varando mato sem avançar quase que nada, por mais que esforce e se desgaste. Tiro o chapéu e agradeço aqueles que abriram essas veredas.
O avançar com as cargueira era tão penoso, que a ideia de deixá-las e seguir de ataque era recorrente, e muito antes de supúnhamos, adotamos essa estratégia, deixando as cargueiras do Denis e do Douglas num lance de pedra bem pronunciado, que não poderia ser evitado, na descida. O Douglas rapidamente arranjou a sua mochila de ataque, com um fleece e uma capa de chuva do Denis. Esse seguiu com a água, lanterna e lanches de trilha nos bolso. Eu permaneci de mochila, de forma a garantir um mínimo de segurança com o kit de PS, condição para acampamento, etc caso algo mais grave nos impedisse de retornar até as cargueiras. Libertos da carga extra, prosseguimos mais céleres pela encosta do Morro da Lua e após alcançar seu cume, quedamos para suldeste por uma trilha pouco marcada que nos levou ao cume do morro Ovos de Dinossauro, onde identificamos boas áreas para acampamento, para umas 3 barracas, em caso de necessidade.
Fizemos algumas fotografias, e retomamos o caminho, passando novamente pelo cume do morro da Lua e buscando o colo entre esse e o nosso próximo o objetivo, o Morro Luar. Em função da proximidade, cumeamos esse morro sem dificuldades adicionais ao enfrentar da vegetação que, valente, busca retomar a trilha. Uma pausa rápida para hidratação e seguimos pela longa caminhada em declive até a florestinha na base do Sirizinho. Nessa florestinha, à exemplo da primeira, os rastros estavam pouco confusos, demandando algum tempo para identificarmos o ponto de passagem correto. Com um trabalho em equipe bem azeitado, rapidamente verificamos as direções mais prováveis e encontramos a sequência da trilha, descendo ao longo das margens de um pequeno riacho antes de permitir a ascensão, pela face sul da encosta do Sirizinho. Já habituados com a constante resistência imposta pela vegetação que, aos pouco retoma a trilha, alcançamos o antepenúltimo cume do dia 13:50. Após uma pausa para contemplação e recuperarmos o fôlego que o visual (e a subida) nos privara, iniciamos a descida, seguindo alguns rastros antigos, à esquerda do cume. A descida ali passava por uma greta escondida pelo capim, para a qual fomos alertados pelo Douglas, que seguia à frente. Ali havia uma bifurcação à direita, ortogonal, que, por se apresentar perpendicular ao nosso intento, preterimos. Pouco depois, descendo uma ou duas vintena de metros, entramos num trecho de florestinha, onde as gretas se multiplicavam em tamanho e profundidade, nos obrigando a andar por entre pontes de raizes e folhas. O perigo envolvido naquele trecho, bem como a ausência de sinais de passagens recentes, nos alertaram de que o caminho atual não deveria ser por ali, de forma que, cautelosamente, fizemos meia volta e tocamos para cima, buscando a bifurcação que havia sido preterida pouco antes. Virando à esquerda, o rastro nos campos seguia em suave declínio até uma segunda bifurcação, na qual tomamos à esquerda novamente, e passamos a perder altitude de forma mais intensa até alcançar o vale, onde havia um pequeno riacho correndo para esquerda, faixas do Élcio, de quando abrira Alfa-Crucis Express, bem como uma trecho de corda, do outro lado do cruzo do rio, indicando que o caminho agora seria ora pelas suas margens, ora pelo seu leito. Assim fizemos, atentos ao ponto em que a trilha teria que deixar de seguir o curso do rio e começar a subir buscando o cume do Siri, penúltimo do dia (na ida). Nesse momento, por uma distração, pensamos estar mais atrás do que realmente estávamos, e a dúvida quanto a nossa capacidade de concluir a subida começou a se fazer mais presente. Não era apenas uma questão de chegar ao cume do Ciririca, mas de conseguir fazer o retorno, com segurança até onde havíamos deixados nossos equipamentos. Ainda que eu mantivesse comigo a cargueira, os equipamentos ali seriam “suficientes” para uma a pernoite de nos 3, mas em emergência, o que não era nossa intenção, de forma alguma. Decididos a alcançar o último cume antes do Ciririca (Siri), para ao menos, vermos o quanto faltava, prosseguimos a subida pelo ombro do *próprio Ciririca*. Quase no cruzo com a trilha pela parte baixa, o Douglas avistou o Gean, amigo de infância do Jorge Nentwig (que apelidáramos de 4 pulmões quando o conhecemos na Serra Fina) e descobrimos, aliviados, que estávamos num falso cume do próprio Ciririca, a cerca de meia hora do cume. Ocorrerá que, como a proeminência do Siri, a partir do colo com o Sirizinho não era tão expressiva, acabamos por não dar conta de que o alcançamos, distraídos com a questão das gretas dos campos de altitude.
Animados com as boas novas, tocamos para cima e, convicto que, em caso de necessidade, os equipamentos estariam alcançáveis, deixei minha cargueira no falso cume e subi apenas com uma garrafa de água e lanche nos bolsos. Pensando melhor, foi uma imprudência… além de ter deixado o celular (portanto sem fotos), ficaram junto o sinalizador e rastreador GPS e todos os itens de PS… ou seja, na necessidade teríamos que contar com o material dos amigos q estavam no cume. Erro a não repetir.
Sem o peso extra da cargueira subi acelerado até a primeira placa e, dali para a segunda, onde nossos amigos estavam acampados, foi um pulo. Cheguei até ampla área de camping 15:47, logo alcançado pelo Douglas e pelo Denis. Conversamos um pouco, trocando impressões sobre a trilha, a beleza, os planos e o clima. Por todos os lados, antigos tambores utilizados durante a obra de instalação das antenas de rádio despontam, semi cobertos pela vegetação e já bastante consumidos pela ferrugem. Mais uma vintena de anos e seus restos serão pouco reconhecíveis.
Aproveitamos a alegria do reencontro com os amigos, fizemos novos amigos que haviam acessado o Ciririca por baixo e seguiriam para o Marco 22, após cruzar a inter-Agudos e vibramos com a conquista do cume pretendido. Não seria correto afirmar que relaxamos, pois aquele ponto era como que “metade” da pernada extra do dia, faltava a volta e depois alcançar o Cerro Verde onde o restante do grupo estava. No mínimo, teríamos que caminhar até o ponto onde havíamos deixado as cargueiras, para utilizar os pontos de acampamento identificados no cume dos Ovos de Dinossauro. A principal dúvida, nesse momento era a oportunidade de tentar o pernoite no Cerro Verde, chegando lá tarde da noite, em um feriado e em início de temporada. A probabilidade de não dispormos de bons locais para o acampamento era consideravelmente elevada. O Jorge afiançou que o nascer do sol, visto daquele ponto não ficava a dever nada para a vista a partir do Cerro Verde, o que nos fez alternar os planos e decidir por pernoitar no acampamento mais próximo das cargueiras. Economizaríamos pelo menos duas horas de caminhada, a noite e por trechos de navegação um pouco confusa, pelo menos na vinda. Decisão tomada 16:13 nos despedimos e começamos o retorno, agora com a altimetria a ser menos madrasta, fomos vencendo um a um os pontos de navegação mais delicada, já com as lanternas de cabeça posicionadas. Andamos em passo apertado, buscando aproveitar ao máximo a claridade do dia que findava. Passamos pelo cume do Siri às 17:15, pelo Sirizinho 17:30 e terminamos de vencer a longa subida pela encosta do Luar às 19:10. Mantendo o passo célere, porém seguro, alcançamos o cruzo que dá acesso ao Morro dos Ovos de Dinossauro, às 19:40. Deixei minha cargueira ali e desci com meus companheiros de trilha até as cargueiras deles, pouco mais de uma vintena de metros abaixo, para depois voltarmos todos e escolhermos o ponto de acampamento, onde chegamos 20:20. Rapidamente tratei de montar acampamento, pois o frio noturno, aliado ao vento constante, me fazia bater os dentes. Com a medição da glicemia um pouco alterada, optei por não jantar, apenas vesti as roupas secas de dormir, entrei no saco de dormir e depois no saco de bivaque. Acredito que 20:40 eu já ressoava, abrigado do vento e relativamente aquecido. Devo reconhecer que a minha montagem do acampamento não foi das melhores (para ficar no mínimo) e, provavelmente subestimei o frio úmido da Serra do Mar… de forma que, na madrugada, optei por colocar um adesivo de aquecimento no peito, cujo efeito foi imediato e revigorante. Melhor aquecido, ponderei sobre as vantagens e desvantagens do bivaque, e devo dizer que, para aquela aplicação, naquele momento, as desvantagens superavam em larga medida, o peso e volume reduzidos. Em função do cansaço e do frio, o acampamento mal montado permitiu que o chuvisco que tivemos durante a noite molhasse um bocado as roupas de trilha. Confesso que invejei a barraca confortável que abrigava o Denis das intempéries… apesar de que com o vendaval ele precisou sair para recolocar os espeques, enquanto meu sarcófago, apesar de úmido e desconfortável apenas drapejava sob os fortes ventos.
Dia 2.
Acordamos cedo, mas a névoa matinal, aliada à baixa temperatura e ao vento constante não motivavam ninguém a sair do abrigo noturno. O Douglas também relatou que o bivaque não havia sido o sucesso esperado, pois a condensação umedecera sei saco de dormir. Torçi minha calça de trilha e as meias e as deixei esticadas para secarem ao vento. Felizmente o sol logo despontou, nos trazendo novo alento para enfrentar a tarefa pouco grata de desmontar acampamento, reordenar as coisas dentro da mochila e - a pior delas - vestir as roupas de trilha, molhadas e geladas. Posso afiançar que é um despertar violento… felizmente a blusa eu guardara abrigada e como não sinto (tanto) frio nas pernas e pés, vesti calça e meias do jeito que estavam, geladas. Mas nada que o calor do sol e do corpo humano em movimento não dê conta. Denis e Douglas fizeram café, eu tomei meu desejam frio mesmo, estava meio moído pela noite mal dormida pelo frio. Não fosse o adesivo de aquecimento, teria sido uma noite bem desagradável.
Sol brilhando, foi uma grata surpresa conseguirmos nos comunicar com o grupo principal, que seguirá e acampara no Cerro Verde. Saberíamos depois, que mais que apenas nos ouvir, a Liane, com seu super celular Samsung S22 dotado de poderosíssimo zoom (até 100 X, nas fotos) conseguira flagras hilários, de nosso desfazer de acampamento e arrumar de cargueiras… ao estilo 1984, tínhamos uma Grande Irmã naquela serra… as fotos ficaram muito legais, mesmo… particularmente, amei as imagens… minha mochila, com a discreta capa de chuva, contrastava com a vegetação e permita o rápido identificar do grupo.
Esperançosos de logo nos reunirmos, terminamos de desmontar acampamento, arrumar cargueiras e nos colocamos em movimento. Agora, nosso planejamento era retornar ao cruzo da véspera, virar à direita/oeste e buscar o Cerro Verde. Ali pela progressão, decidiríamos se atacaríamos o Taquaripoca antes de enfrentar o Itapiroca. A noite enregelante e a previsão de chuva para o final de tarde/noite tornava esse ataque algo a ser considerado com cuidado. Não queríamos montar acampamento em condições ruins novamente.
Começamos a caminhada do segundo dia pouco antes das 8:30 descendo até a primeira florestinha, cruzando as duas nascentes dela, identificando com mais facilidade o ponto em que a trilha fica confusa, subimos para os campos de altitude e descemos novamente, agora já nos aproximando do cruzo. Apesar da precaução da véspera em marcar a posição do cruzo, com o cansaço e friagem, eu não havia recarregado o relógio, de forma que ele que seguia dentro da mochila, carregando para caso tivéssemos uma dúvida mais séria, e assim buscando manter a passada rápida, acabamos passando direto pelo cruzo, e avançamos por uma vintena de metros a mais, quando a mudança de inclinação, ao começarmos a descida para a florestinha seguinte alertou o Douglas, que deu o comando de voltar. Subimos um pouco logo encontrando a bifurcação correta, à nossa esquerda, subindo suave e passamos agora a trilhar por trechos novos para nós, à caminho do cruzo para o ataque ao Cerro Verde.
Quando chegamos a ele, combinamos de fazer uma rápida incursão ao cume e, em seguida retornar a caminhada para o Itapiroca. O Denis preferiu aguardar no cruzo, de forma que sobrei para fazer dupla com o Douglas no ataque. Subindo sem forçar muito o passo, alcançamos o cume 11:30, fizemos um rápido registro no livro de cume e enquanto o Douglas avaliava a área de acampamento, eu iniciei a descida, apreensivo que o Denis não nos esperasse e tocasse em frente. Quando o cansaço e a ansiedade começam a se fazer mais presentes, o potencial de decisões temerárias cresce substancialmente. Nesses casos, procuro sempre ser conservador e supor que as decisões tomadas não serão as melhores. Felizmente tudo estava tranquilo, e com o retorno do Douglas retomamos a caminhada. Com a imponência da face suldoeste do Itapiroca a se erguer 400 m acima do colo de travessia, acabamos por abrir mão do ataque ao Taquaripoca. Faremos noutra oportunidade. Descemos até o colo entre as duas montanhas, passando por grandes e profundas gretas de escoamento de água entre as rochas anciãs e começamos a subida, dosando as forças e controlando a ansiedade. Nossa previsão era de subir em até 3 horas, chegando no cume próximo das 15h e deixando uma estimativa de duas horas de luz antes da chuva de final de tarde. A decisão de não atacar o Taquaripoca decorria de não querermos consumir essa margem de segurança para ter o acampamento bem montado e, por conseguinte, uma noite de sono bem confortável. Mantendo um ritmo tranquilo, fazendo breves aradas para contemplar a vista e recuperar o fôlego, alcançamos o cume às 14:16. Registramos o feito no livro de cume, colocamos o adesivo dos MDA e tomamos a direção da face noroeste, onde as áreas de acampamento se encontravam. A descida até ali foi tranquila, com muitos trechos de lama e algumas desescaladas curtas, que nos levaram a encontrar o restante do grupo pouco antes das 15h, como previsto 😀😀. Rapidamente escolhemos os lugares de bivaque (eu, num remanescente de tosseira de capim, que supus q me ajudaria a ter menos condensação dentro do bivaque), o Douglas numa pedra abrigada do vento e o Denis escolheu uma ampla área ajardinada para instalar sua mansão. Alternei a direção dos arranjos de bastoes para a segurança do arco principal do bivaque (na verdade, único, rsrs) colocando os bastões ortogonais ao eixo do bivaque. Ancorei o saco de bivaque nas duas extremidades. Extendi o isolante lá dentro e também já expandi/afofei o saco de dormir, deixando que a unidade da condensação da véspera se dissipasse. Deixei o saco de bivaque com o mosquiteiro para evitar que ocorresse a entrada de qualquer animal. Coloquei a mochila no saco plástico que trouxera com a dupla intenção de abrigar a mochila e de servir para transporte dos lixos meus e daqueles encontrados ao longo da trilha e fui cozinhar. Se na véspera pelo frio eu não tivera apetite, hoje ele estava compensado: iniciei os trabalhos com um risoto de funghi, porção de 250 g que sumiram como um passe de mágica. Os grãos de arroz não se hidrataram totalmente, mesmo assim estava bem saboroso.
Com o acampamento armado e a Ingrata acalmada, passei para os preparos mais complexos: primeiro, as postas de bacalhau da semana santa, com alho, tomate e pimentões … essas posso dizer que ficaram espetaculares, entraram pro cardápio, da mesma forma que o bacalhau desidratado foi aprovado como lanche de trilha.
Em seguida duas porções comezinhas de purê de batata, com molho de tomate, legumes e queijo ralado. Para fechar a conta uma boa porção de chá quente, adoçado com stevia. Não devia ser 19h quando cai pra dentro do bivaque e adormeci.
Não posso deixar de registrar que havia um grupo com caixinha de som… parece que é uma praga universal… ainda que alguns ritmos batessem com meu (mau) gosto musical, certamente não propiciam nada de integração com a montanha em si… claro que a tom das conversas ali era alto, como se a montanha fosse particular… sem que eu quisesse, tomava ciência das piadinhas, dos planos e histórias trocadas… triste mas comum, a falta de respeito com o próximo… quanto mais simples o acesso, mais comum… penso que porque sendo % da sociedade, quanto mais gente, maior a probabilidade e também porque uma coisa é levar caixinha de som por 5 horas montanha acima, outra, fazê-lo por 16, 17h … me lembrei do caderno de cume destruído no Camapuã… da ausência de cadernos de cume em outros cumes, certamente por vandalismo. Apesar de péssima atitude, não deixo de reconhecer que abaixaram (um pouco) o volume quando nosso grupo solicitou. Talvez , só talvez, haja esperança.
Dia 3
Dormi espetacularmente no bivaque, quase que mudei totalmente de opinião…. Para dormir, funciona! Mesmo com uma tempestade, me mantive quente e seco dentro. Claro, que houve condensação, o segredo é garantir que seja algo que o saco de dormir possa lidar, e deixar uma toalha absorvedora de fácil acesso. Assim se e quando acordar no meio da noite, sempre pode dar uma boa secada e dormir de consciência tranquila. O arranjo prévio, deixando a roupa para descer e a mochila dentro do saco plástico, com a boca em direção em direção à entrada da minha toca, permitiu que pegasse/colocasse as coisas dentro da mochila, sem ficar apertado no bivaque. Ter ancorado ele em dois pontos o manteve sobre a região que eu havia pensado e a condensação foi bem menor, ainda que as horas de uso tenham sido sensivelmente majoradas. Acaba aqui as melhorias percebidas. Uma vez acordado, ainda é um ambiente meio q claustrofóbico, onde não se consegue sentar e qualquer mudança de posição só é possível pela rotação do tronco. Ou seja, há 4 posições possíveis: decúbito dorsal, ventral, lateral esquerda e lateral direita. Uma hora cansa, e se vc, como eu, tem o hábito de acordar cedo… não havia nada a fazer, apenas levantar e encarar com galhardia o cinzento dia que nascia.
Apelando às graças do santo dos trilheiros, Santo Antônio, do padroeiro dos Alpinistas, São Bernardo de Menthon e dos santo dos viajantes, São Cristóvão, amealhei as poucas forças que me restavam e saí do saco de bivaque, de cueca e blusas e me preparei para o maior fardo do dia que nascia, meio que diafáno: o árduo enfrentar do fado de enfardar-se de trilheiro (descupem a aliteração) , colocando, no corpo quente, a roupa fria. Para ser mais preciso: fria, molhada, e elameada. Isso a TV não mostra, rsrs. É preciso muita força de vontade, ou total falta de opção para vestir as meias geladas. O corpo chega a arrepiar, e nesse ponto, o bivaque ajudava: era ruim sair e se vestir? Tenha certeza que sim. Mas ficar, ainda que mais um pouco naquele casulo, também não era bom. Entendo bem a resistência adicional de fazê-lo, estando bem abrigado, em barraca seca e quente.
Vesti quase todas as camadas de blusas, e também a jaqueta de chuva e a touca (deixei apenas um conjunto blusa/calça seco, para uma improvável necessidade). Dessa forma, bem quentinho e protegido fui ajudar aos demais a desmontar acampamento, uma vez que não parecia que haveria melhora no tempo. O Douglas fez um mingau de aveia que estava ótimo, quente e saboroso, a Lenka me deu outra porção de mingau muito boa e aqueceu meu suco de abacaxi (qq coisa quente, naquela friaca, caia bem) o Rafael me serviu um café super quente e apesar de não curtir café, reconheço que estava muito bom. Como estavam todos bem abrigados, e a descida seria tranquila ajudei o Douglas a desarmar a barraca que lhe emprestaram (acho q o Rafael) e arrumar a cargueira, protegendo no interior uma garrafa de vidro de vinho encontrada lá em cima. Nunca vou entender isso de subir com algo cheio e ser *INCAPAZ* de descer com a embalagem vazia. Deixar lixo na montanha supera, em questão de má-educação e canalhice, até o uso das inservíveis caixinhas de som.
Iniciamos a decida do Itapiroca em direção ao cruzo com a trilha para o PP. A descida é intensa, com alguns pontos de cordas e outros que se desescalada com auxílio das raízes, arbustos e pedras que se encontra. Intensa, mas curta. Pouco antes das 9:20 estávamos nas placas de início das trilhas… o tempo, melhorara um pouco, ameacava algumas aberturas, se descêssemos para a fazenda Pico Paraná, chegaríamos lá próximo das 11h, a previsão que tínhamos era que a van estava combinada para as 15h… mesmo que o motorista antecipasse a chegada, era improvável que o fizesse antes das 13h… de forma que para aproveitar mais um pouco o rolê, decidimos fazer uma subida rápida até o Caratuva. Tocamos pra cima, sem pressa, curtindo a trilha e conversando com os que desciam do cume. Alcançamos o Caratuva 10:45, registramos a passagem pelo livro e iniciamos a descida, agora incentivando os montanhistas que subiam de ataque. Descendo com cuidado, chegamos na Fazenda Pico Paraná às 14:00. Ataquei uns 3 ou 4 pastéis e duas cocas zero, fiz barba e tomei um ótimo banho (fila lenta, pq só um chuveiro estava funcionando). Fizemos uma foto do grupo e iniciamos o retorno.
PS: para muitos o PP é tido como Evereste Brasileiro e o Ciririca como o nosso K2. Sem julgamento, são montanhas de acesso “um pouco” mais difícil pelos aspectos técnicos de trechos verticais, exposições, distâncias envolvidas ou de navegação mais apurada. A conveniência de ser autônomo, de agregaencompetências aumenta quanto mais ermo ou tecnicamente exigente é a trilha/objetivo pretendido. Manter consigo um kit de PS e saber empregar os itens, buscar qualificação em PS em áreas remotas, ter um sistema de comunicação, possuir conhecimentos básicos de navegação, com GPS, mapa/bússola e algum faro de trilha são importantes. Confiar que o “segue”, “líder” ou “guia” vai resolver todos os problemas pode se mostrar uma aposta muito arriscada, caso ocorra algo com ele, principalmente em trilhas menos frequentadas. Forte abraço e nos vemos nesse mundão de montanhas de Deus.

Sensacional! Parabens pela riqueza de detalhes e descrições! Realmente uma avenutura de tirar o fôlego. Muito sábio seguir o caminho não pretendido propositalmente para facilitar o ponto do gps. 👏👏