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Rogério Alexandre Francis 14/08/2019 10:01
    Travessia Mais Bela do Brasil

    Travessia Mais Bela do Brasil

    Petrô-Terê para iniciantes

    Montanhismo Trekking Acampamento

    Travessia mais bela do Brasil – nas nunvens

    A proposta me pareceu mais desafio que convite: atravessar a Serra dos Órgãos, na tradicionalíssima Petrô-Terê, com duas montanhistas iniciantes. E ainda fazê-lo solo, sem auxílio de guia e em estilo alpino, transportando toda tralha de acampamento, roupas de frio e alimentos. Pensou-se em fazê-lo em três dias, acampando duas noites nos altos de montanha.

    Se as dificuldades eram grandes, o sabor do desafio era ainda maior. Travessia desconhecida, com seus percalços e suas belezas. Lidar três dias com duas neófitas no montanhismo seria uma batalha em si, já que curto subir as montanhas, mas não sou dos mais sociáveis dos seres.

    Pesados prós e contras, num átimo, dei a resposta: “bora!”. Caí para dentro do planejamento, lendo relatos, estudando as cartas topográficas, os tracklog que encontrei no Wikiloc e conversando com quem havia feito a travessia há pouco. Avaliei os equipamentos necessários, preparei a logística e tratei de desenrolar a burocracia do Parnaso, adquirindo os ingressos necessários para a empreitada.

    Ingressos garantidos, passamos à fase seguinte no detalhar do planejamento, avaliando a questão do transporte. Considerando a comodidade, os custos e a segurança, optamos por fazer os deslocamentos de ônibus, de forma que poderíamos dormir bem na ida e na volta e ainda ficar despreocupados. Compramos as passagens com bastante antecedência, supondo que, havendo apenas um horário entre SP e Petrópolis e entre Teresópolis, haveria grande disputa pelos “poucos” assentos disponibilizados.

    Com a burocracia domada e a logística alinhavada, tratei de escolher uma subida de avaliação para minhas companheiras de pernada. A subida do Marins, em bate-e-volta surgiu como opção lógica dada a relativa facilidade de acesso, a altimetria cansativa e as passagens mais técnicas, que permitiriam às meninas sentir o que as aguardava na Petrô – Terê. Dessa subida, a primeira de muitos montanhistas, escrevi um relato com os sentimentos e impressões das minhas colegas: “Marins sob Divas”, se tiver curiosidade.

    Após a subida ao Marins e, já que ninguém abandonou a ideia, conclui que ambas já haviam sido picadas pelo bichinho da montanha... poderiam sofrer, suar, chorar, lamentar... mas não desistiriam ante o cansaço, a fome ou as incertezas... trabalhariam em equipe, dividindo pesos e receios, dando apoio e suporte mutuamente... que mais se pode querer de montanhistas principiantes?

    Nas proximidades da data, uma mudança no trabalho da Thais, a tirou do grupo... uma falha grave nas máquinas que eu acompanho no meu trabalho, ameaçou minha folga e quase me obriga a adiar a travessia ... felizmente consegui colocar as tarefas em andamento e pude folgar conforme previsto.... apesar de, na contingência, entrar antes das 7h e sair após as 20h do trabalho... de ter tido as férias suspensas... as folgas, desde que não impactassem as atividades continuavam possíveis.... ufa!

    Na semana da travessia, fiz o clássico catadão de tralhas de trilha, reforcei os itens de roupas para frio e chuva ante as preocupantes previsões de clima para o sábado e domingo, pela entrada de uma frente fria. Alterei a barraca para a MIKRA que suporta muito mais confiável que a barraca originalmente pensada . Escolhi as refeições e lanches, procurando sempre minimizar peso e volume, de forma que, na pior das hipóteses, caso minha companheira de montanha precisasse, eu tivesse como transferir parte das tralhas e dos pesos para minha cargueira. Escolhi minha mochila preferida, OSPREY EXOS de 58 l e para a Paula, uma THULE 50 l. Ambas as mochilas são leves e robustas para o que faríamos. Busquei assegurar que todo o equipamento para dormir estivesse protegido em sacos estanques, como uma segunda camada de segurança, adicional às capas de chuva.

    Parti de Santos para SP para pegar o equipamento faltante na casa dos meus pais e depois seguir para a Rodoviária do Tietê, de onde sairíamos, às 23h, com previsão de chegar a Petrópolis às 6 h e, na portaria do Parque às 7 h.

    Primeiro Dia

    A subida do primeiro dia é a mais intensa dos 3 dias, mas feita com passagens por mirantes e encostas com vegetação típica de montanha, muitas gramíneas, poucos arbustos, algumas bromélias. Começamos a subida pouco após as 8h e subimos à passo, apreciando o visual e o sol que aquecia aos poucos nossos corpos. Em pouco tempo, alcançamos a bifurcação para a Gruta do Presidente e a Cachoeira Véu da Noiva... neófitos da travessia, seguimos pela esquerda, em direção aos atrativos extras. Entre o ir e voltar, esse desvio nos tomou cerca de 40 minutos, com a parada para contemplação da cachoeira e da travessia do rio nos trazendo grande prazer.

    Após retomar a trilha principal, tocamos para cima, subindo, sem saber direito o que nos aguardava, até a Pedra do Queijo. Após uma rápida parada para descanso e contemplação retomamos a subida. Na troca de impressões que tivemos com outros colegas que nos precediam, fiquei com a impressão de que não teríamos novos pontos de água por muitas horas, e com o sol batendo forte, passei a segurar o consumo. Tínhamos cerca de um litro por cabeça e procurei fazê-los durar. Com a disciplina na hidratação, passamos a subir mais lentamente, procurando fazer paradas apenas nas sombras. Cerca de uma hora de subida desgastante alcançamos o cume do AJAX, onde descobrimos que tinha água fresca e cristalina. O erro na comunicação nos levara a poupar desnecessariamente água, subindo mais pesados que o necessário e consumindo menos do que o recomendável. As consequências do erro nos seguiriam pelo resto do dia, debilitando mais a Paula, na subida da ISABELOCA.



    Como resultado da poupança no consumo, chegamos ali com pouco mais de um litro e meio, e começo de uma desidratação, percebida no pouco suar e na dor de cabeça incipiente... Tomei dois litros d’água ali, buscando reidratar o corpo, enchi nosso inventário de água ao máximo, com pouco mais de 3 l e depois de uns minutos de descanso, retomamos a subida, agora mirando o alto da ISABELOCA, a última subida intensa do primeiro dia.

    A subida que venceu a princesa, foi derrotada, passo a passo, metro a metro, pela Rainha de Ébano que me acompanhava. Com galhardia e determinação, lutando contra os músculos que gritavam pelo abandonar da subida, as infindáveis curvas em que a encosta foi desdobrada foram sendo vencidos... até que não havia mais o que subir, alcançávamos o esperado CHAPADÃO, com maravilhosos minutos de descanso, deitados na laje rochosa do final da subida.... apreciando a paisagem em 360’ ... fizemos um breve lanche, petiscando, uvas passas, provolone, mel, chocolates e gran padano. O breve reporte dos alimentos, assunto frequente de perguntas e dúvidas fica aí registrado. São alimentos calóricos, repositores de sais e de baixa exigência quanto à refrigeração para armazenagem e consumo. Como habitual em travessias com menor conhecimento de minha parte, optei pelos alimentos já consagrados em trilhas anteriores, com elevada relação alimento/embalagem, de forma a ajudar no minimizar dos resíduos e do peso transportado. Apesar de termos opções mais elaboradas, para os lanches de trilha, contávamos apenas com os de manuseio mais fácil.

    Em parte recuperados, retomamos a caminhada, apreciando as flores que aqui e ali despontavam nos campos. Com a subida menos íngreme, procurávamos dosar a passada para manter o fôlego, ainda haviam pequenos ombros de crista a subir, e, a cada um, ganhávamos alguns metros na vertical, fazendo com q as paisagens fossem ainda mais belas e amplas. Cerca de 10 minutos após deixarmos o final da ISABELOCA, alcançamos um belo mirante, com uma placa pitoresca, provavelmente marcando o final do trecho de subidas do dia. Fizemos nova pausa, para contemplação, registros e retomada do folego.
    Mais tranquilos quanto ao horário de chegada ao acampamento do 1º dia, permitimos que o grupo que havia disputado a liderança na subida da ISABELOCA e estava próximo de nós tomasse a dianteira, considerando que até todos tirarem as fotos em cada um dos pontos seguintes, tomaria tempo e também nos obrigaria a andar a passo menos célere. Aproveitamos esse tempo extra para curtir mais a paisagem, dar uma repassada nos ajustes das cargueiras e descansar e fazer umas fotinhos, para garantir o registro.

    Retomamos a caminhada, com a Paula sentindo os efeitos da subida do AJAX com a restrição no consumo de agua e a ISABELOCA com o sol à pino. Mesmo enjoada e com dores de cabeça, não se rendia e mantinha o humor e a disposição para as últimas centenas (infindáveis) de metros que nos separavam dos CASTELOS DO AÇU, formação rochosa inconfundível e que marcaria nossa chegada aos arredores do Abrigo, local em que montaríamos nosso acampamento para aquela noite. As nuvens, em quantidade crescente, não davam muitas esperanças quanto ao dia vindouro. Eu estava tranquilo, minha preocupação era que rajadas de ventos mais fortes trouxessem consigo elevada precipitação se dissipara com as últimas previsões, atualizadas ainda no ônibus entre a Rodoviária e o Terminal em Petrópolis. As nuvens que víamos prenunciavam uma noite estrelada, mas com o nascer do sol o tempo provavelmente fecharia e faríamos a navegação do segundo dia entre nuvens e rasgos de céu.
    Pouco antes das 16h, chegamos ao camping e tratamos de escolher um bom local para instalar a barraca. Como chegamos cedo, havia muito o que escolher. Procuramos avaliar as opções, priorizando a segurança de termos abrigo do vento, caso esse se intensificasse por demais, uma inclinação suave para dormirmos com conforto, sem ficar, a cada pouco, escorregando por sobre o outro. Escolhido o local, fizemos uma boa catação da palha seca que campistas anteriores haviam colhido, aumentando o isolamento térmico e o conforto para a noite longa que nos aguardava. Como praxe, em montanhas, dorme-se cedo, pouco após o pôr do sol e acorda-se cedo, pouco (ou muito, dependendo do hábito) antes do seu nascer. Planejamos levantar acampamento às 4h00 para vermos o nascer a partir dos PORTAIS DE HÉRCULES. Preparei uma lasanha liofilizada, e uma dose dupla de caldo de costela com mandioca, para nutrir e nos aquecer antes de entrarmos nos sacos de dormir. Ambos foram aprovados, com mérito, pela minha colega de trilha, o que confirma que não há tempero melhor, para a culinária outdoor, que a fome. Ao levantar, após a refeição, senti uma forte câimbra na perna esquerda, deixando claro que o esforço muscular até ali cobrava seu preço. Tomei uma pastilha de medicamento específico e caminhei um pouco até minimizar as dores. Conversamos com o pessoal no abrigo, verificando se havia novidade quanto à previsão do tempo e fomos dormir, esperançosos de um nascer espetacular nos PORTAIS.

    Durmo fácil, e minutos após nos recolhermos, certamente eu já ressoava tranquilo. Acredito que a Paula também tenha sido vencida pelo cansaço rapidamente, e pouco antes das 20 h, entregou-se aos braços de Morpheus. Menos acostumada às longas noites de montanha, a Paula acordaria algumas vezes, ansiosa por recomeçar a caminhada. Provável que eu tenha aberto metade de um olho, visto as horas e respondido com um “durma” de poucos amigos. Se o fiz, peço que perdoe... não acordo totalmente e um ogro sonolento não expressa a melhor das educações.

    Numa dessas acordadas, a Paula me fez saber que estava com forte dor nas pernas e que temia não dar conta da caminhada que nos aguardava. Subitamente desperto, tratei de ajudá-la com as dores, com alongamento e uma caminhada madrugada adentro para esticar as pernas. Voltamos à barraca, para fugir do frio da madrugada e, ante a nebulosidade que se percebia ao redor, não fiz muita fé em um nascer do sol aberto, sem nuvens. Assim não me preocupei muito em desmontarmos acampamento e iniciarmos a caminhada para os PORTAIS DE HÉRCULES, procurando também, poupar as pernas dela para a caminhada do segundo dia. Adormecemos sem muita preocupação com programar despertadores e torcendo que os minutos adicionais de repouso fossem eficazes para a sua recuperação. Ficava combinado, tacitamente, o retorno àquelas plagas, para curtir o nascer do sol, tido como um dos mais bonitos do Brasil. E estaríamos em trio, trazendo conosco a Thais.

    Segundo dia

    Acordamos com o alvorecer, tendo as nuvens como companheiras próximas. Tratamos de nos juntar aos colegas de montanha que aguardavam o nascer do sol, aboletados sobre uma das maiores rochas dos CASTELOS DO AÇU. Assistimos um nascer tímido do sol, por entre as nuvens e ficamos mais tranquilos por termos evitado o desgaste de caminhar até os PORTAIS e nada ver. Essas fotos espetaculares que vemos, tem muito de aposta de quem as tira. Caminhar, às vezes por horas, guiados pela esperança da imagem perfeita, que muito mais que registrada na fotografia, se firma na alma, na memória.


    De volta ao acampamento, enquanto a Paula preparava o café da manhã, desmontei o acampamento e arrumei as cargueiras, redistribuindo as tralhas de camping, roupas e mantimentos. O café da manhã esteve à altura da Cheff, com crepioca de 3 queijos e brie com geleia de amora silvestre da Serra Fina. Pouco antes das 8:00 partimos em direção ao MORRO DO MARCO, totalmente oculto pelas nuvens que se fechavam pouco a pouco. Havia horas em que caminhávamos DENTRO das nuvens, com o vento trazendo as pequenas gotículas que as compõem de encontro aos nossos corpos. Tudo se apresentava fantasmagórico, com uma montanha surgindo diante dos nossos olhos em segundos e se ocultando da mesma forma. Nesse ambiente, extremamente húmido, e felizmente, não congelante como algumas previsões vaticinavam, a navegação visual fica muito, se não totalmente comprometida. Sabedor disso, eu havia feito com que fossemos um dos primeiros grupos a partir, de forma a termos o som dos demais grupos como referência, caso se fizesse necessário. Permiti que a Diva de Ébano seguisse à frente, buscando a trilha nos totens que surgiam e sumiam, nas marcas de passagem e no rumo esperado (para cima, sempre, até encontrar alguma marcação que aponte outra direção). Foi bonito de ver, segunda vez na montanha e ainda assim, conseguindo intuir, quase sempre corretamente, por onde ir.

    Quase sempre, pois, escapou-lhe uma pequena derivação para esquerda, e, à falta de melhor informação, descemos em direção aos PORTAIS por um atalho, visivelmente pouco batido. Identificado o desvio, optei por seguirmos em frente, tendo sempre em mente que o caminho que buscávamos estava à nossa esquerda, como as vozes do grupo que nos sucedia na montanha bem apontava. Pouco depois, encontramos a trilha que descia para os PORTAIS e passamos a subi-la até a bifurcação. Dali, voltamos a seguir a trilha principal, em direção a primeira subida mais íngreme do dia, nas encostas do MORRO DA LUVA. Antes disso, passamos por uma raiz de árvore carbonizada à esquerda que me fez pensar em como ela teria ido parar ali, já que ao redor não há nenhuma indicação de que já houvera uma floresta naquele trecho, com árvores de maior porte. Em seguida passamos o grupo cujo alarido nos servira de referência quanto à posição da trilha, cruzamos um pequeno curso d’agua e tocamos para cima, primeiro através de um bosque na encosta abrigada onde vi a primeira Sophronite Cernua da trilha e depois pelos tufos de capim e lajes de pedra. Alcançamos o cume do MORRO DA LUA às 10h, tendo percorrido 2,5 km em duas horas de caminhada. Dada a complexidade da navegação e a possibilidade de piora no tempo, eu impunha um ritmo um pouco mais forte e passamos alguns grupos que haviam saído mais cedo, mas que tinham menos pernas que nós, fomos passados por um grupo que havia arriscado a caminhada até os PORTAIS, e que, como havíamos suposto, se frustrara com o nascer do sol. Faz parte.

    Na descida do MORRO DA LUVA, passamos pelo primeiro ponto de estresse do caminho, onde a pedra escorregadia e inclinada não dava segurança para que a Paula descesse com confiança. Com o auxílio dos 10 metros de fita que eu levava, a orientação minha e de outro colega de montanha, vencemos o trecho e seguimos em frente. Trecho tenso, que me fez insistir na necessidade de aprender os conceitos da escalada e o básico de rapel. Questão de Física, martelaria eu, por diversas vezes, tentando que na marra entrasse o conceito. Umas horas na Sumaré e acredito que o conceito se firmaria bem. Passado esse ponto, seguimos em direção ao LAJÃO, onde uma extensa descida na rocha dá margem à várias perdidas. Até alcançar o trecho de laje, a descida é bem marcada pela passagem entre as moitas de capim, virando à direita após uma breve descida e seguindo perdendo altitude, quase que em curva de nível, contornando a encosta para a esquerda e depois descendo em direção à laje. Nesse ponto, com baixa visibilidade, precisamos procurar um pouco, pois a pedra não guardava marcas do transito e, com baixa visibilidade não distinguimos nenhum totem. O alarido dos colegas de montanha, à esquerda dava um referencial do “para onde ir”, mas não o “como ir”. Pedi à Paula que permanece onde estava e efetuei o clássico mecanismo de busca, verificando se havíamos perdido alguma bifurcação, depois em arcos, fui me afastando dela até encontrar marcas de passagem, alguns metros adiante. Ao orientá-la em minha direção, notei um totem que nos havia passado desapercebido e que dava a direção a seguir. As poucas pedras escuras, amontadas, faziam pouquíssimo contraste contra o fundo de pedras da mesma coloração, e com a baixa visibilidade, ficava fácil não o perceber. Nessa hora, sempre vale o conhecimento acumulado, que permite manter a calma para identificar o problema e tratá-lo racionalmente. Em caso de dúvida, pare e estude o caminho feito, depois avance com segurança ao identificar a sequência da trilha. Esse procedimento evita pequenas perdidas que, se não cuidadas, podem resultar em grandes perdidas, em tragédias, até. Fica a dica.

    Identificada a sequência da trilha, aproveitei para apontar para minha companheira de trilha, alguns detalhes do traçado de trilhas que ajudam a identificar o caminho provável da trilha, como passos, vaus e cristas. O trecho do LAJÃO deve ser objeto de perdidas constantes, dada a imensa quantidade de totens que se ergueram ao longo dos anos. Na descida correta são muitos, às vezes com espaçamento de pouquíssimos metros. Com a navegação visual prejudicada e com ausência de outros grupos na montanha para dar a direção pelas vozes, devem ser de ajuda quase inestimável para a orientação. Afinal, nesse trecho, a direção correta é “para baixo”, mas pode-se faze-lo de diversas maneiras, várias delas com risco considerável de acidente, à esquerda e à direita da passagem mais batida. As pedras são lisas, a inclinação, considerável e a queda longa. Talvez um dos trechos mais subestimados dessa travessia, tomamos bastante cautela. Ao final da descida, duas pontes de madeira com um corrimão se deteriorando pelo tempo nos deram acesso ao ELEVADOR.

    Uma via ferrata, quase que vertical, de cerca de 60 m de altura cobra o uso dos braços e das pernas. O primeiro grampo está relativamente elevado e seu acesso é um pouco complicado para quem tem menos de 1,60 m de altura. Se, como já dizia uma a bisavó de uma amiga, “com calma e jeito, come-se o c* de qualquer sujeito”, da mesma forma, sobe-se pelos degraus. De trecho em trecho, eu diria que, aproximadamente, a cada 15 m ganhos, há áreas de descanso, planas. Subi com a cargueira e os bastões (um escapou, felizmente logo no começo da subida – mais um risco da passagem) até o final da via e voltei para ajudar a Paula com a cargueira dela e com o bastão que me escapara, no começo da subida. Seguindo o ensinamento ancestral, em pouco menos de meia hora, vencemos a via e acumeamos o MORRO DO DINOSAURO pouco após as 11 h. Tendo saído do AÇU, pouco após as 8 h, tínhamos percorrido 3,5 km em cerca de 2,5 h. Havia ainda 4 km de caminha e estávamos com um progresso legal, de forma que fizemos um breve descanso, petiscando um pouco de queijos e uns golinhos de mel. Forçamos a nos hidratar, apesar de que, caminhando por entre as nuvens, quase não sentíamos sede.

    Dali, partimos para o MORRO DA TARTARUGA, descendo pelas lajes de pedra até alcançar o VALE DAS ANTAS, antigo ponto de acampamento, hoje não mais permitido pelas regras do PARNASO. Ali, transpomos uma das nascentes do Rio do Soberbo por uma pequena ponte de ferro e madeira e passamos a subir por entre arvores, arbustos e moitas de capim em direção ao DORSO DA BALEIA, um trecho de rocha que lembra muito o cetáceo e que, em dias mais abertos dá margem a fotos incríveis. Mais algumas centenas de metros e começamos a descer, agora em direção ao MERGULHO, a cada metro de altitude perdido, a BIG WALL da PEDRA DO SINO se agigantava a nossa frente. Essa é a maior parede de escalada do Brasil. Com um pouco de trabalho e depois de deixar cair os meus bastões de caminhada, desescalei essa espécie de degrau nas rochas da trilha e ajudei a Paula a fazê-lo. Eis aqui outra passagem técnica, negligenciada na maioria dos relatos que li durante o planejamento. A passagem, em questão tem cerca de 2,5 m de altura, mas os pontos de apoio para desescalar não são óbvios e exigem algo semelhante às técnicas de escalada por chaminé. Há um grampo “p” ao lado, que acredito que ajude na segurança para a descida. Se possível, alije a cargueira, desça sem ela e depois torne a vesti-la; acredito que facilite.



    Após esse ponto, ainda se desce alguns metros antes de começar a subir a Pedra do Sino, costeando a sua encosta esquerda, subindo bastante até alcançar o ponto “mais temido” da travessia: “O CAVALINHO”. De forma ousada, e, menos prudente que o devido, subi na frente e tentei fazer a passagem com a cargueira vestida. Depois de uma tentativa frustrada e pendurado na beira do abismo, rapidamente me fiz mais humilde e tratei de retira-la. A posição ruim, com o corpo colado à rocha e, portanto, inclinado para trás, em direção ao penhasco, tornou o processo de retirada da mochila e de lançá-la passagem acima, um bocado tenso. Não faça dessa forma, use mais a cabeça e faça essa passagem leve, sem carga. Depois, com a corda, pode-se içar a cargueira com tranquilidade, não há muitas arestas para ela enganchar. Sem a cargueira, o montar no CAVALINHO ficou muito mais tranquilo, consegui fazê-lo na primeira tentativa. Respirei um pouco, deixei a adrenalina reduzir e preparei a ancoragem para içar a mochila da Paula. Depois, usando a mesma fita, preparei uma cadeirinha e orientei a Paula a como vesti-la e ajustá-la vem. Enquanto ela escalava as rochas para chegar ao ponto da “montada”, fui fazendo a segurança, mantendo a fita tensa todo o tempo. Quando ela fez o pulo, ajudei a terminar a passagem, puxando-a para a segurança.

    Enquanto descansávamos, chegou um casal e, apesar da minha orientação, o montanhista tentou fazer a passagem pela outra lateral, com um agravante sério em relação ao meu erro de tentar fazê-la com a mochila. Ele estava com duas mochilas: uma cargueira nas costas e uma pequena, de ataque, colocada à frente.Se eu não estivesse ali, para ajuda-lo teria sido um sufoco bem maior do que foi. A posição em que ele se encontrava era ainda pior de se manter que o caminho que eu e a Paula havíamos optado. Apesar de menos exposto, ainda havia sério risco de uma queda de pelo menos 3 m. Consegui fazer com que ele aceitasse a ajuda e mantivesse um mínimo de calma para corrigirmos a sinuca em que se metera. Ele me disse que já estava quase sem forças, assim que conseguimos remover as mochilas. Foi um pouco tenso, mas consegui ajudá-lo a subir e esperei que recuperasse as forças, enquanto orientava a esposa no preparo da cadeirinha com um cabo solteiro que levavam para isso. Com a esposa firmemente presa à fita, passei a ajudá-lo, fazendo a segurança dela enquanto ele a orientava e depois a ajudava no pulo para montar a pedra. Menos destemida, mas muito mais prudente que o marido, a mulher seguiu por onde eu e a Paula há pouco havíamos passado. Como forma de expressar a gratidão, prometeu-me uma cerveja, que dispensei de imediato, feliz por poder retribuir a ajuda que haviam dado à Paula numa descida escorregadia, algumas horas antes. Não dei grande importância ao fato, ajuda normal de montanha, mas não foi assim que o casal percebia a coisa, haja vista os efusivos agradecimentos que nos fariam, mais tarde, quando nos encontrassem no camping, rs.



    Pouco depois retomamos a caminhada, subindo sem pressa até o COICE DO CAVALINHO, outra passagem técnica, uma escaladinha de uns dois metros de altura. Mesmo com a cargueira, fiz a passagem de forma bem tranquila, uma vez que não era negativo, apenas vertical e com alguns lugares para encaixar pés e mãos. Por precaução, subi a cargueira da Paula com ajuda da fita e depois ajudei-a no final da passagem. Dali poucos metros uma escada de aço ajudava a vencer alguns metros de parede quase que vertical e a subida não tinha mais nenhuma passagem técnica; cobrando apenas dos joelhos e do folego o tributo normal das subidas. Chegamos ao ponto de acesso para a parte final da PEDRA DO SINO, mas ante a ausência quase total de visibilidade, optamos por seguir direto para o camping, no Abrigo do Sino. A descida até o abrigo tomou cerca de 20 minutos. Chegando ao camping, encontramos os colegas de trilha que estavam na nossa frente, registramos a chegada nos controles do parque e escolhemos onde armar o acampamento, novamente com muita opção. Nos convidaram para uma porção de pastéis e uma feijoada. Aceitamos ambos. Com o acampamento montado, e com a refeição da noite garantida, fui tomar um banho. Apesar de não ser aquecida, a água não estava tão fria quanto esperado, talvez pela caminhada do dia que fazia o corpo ainda estar acelerado. Espetacular uma ducha depois de um dia de caminhada, pena que no AÇU, devido à pouca oferta de água não pude faze-lo com sol... certamente teria sido ainda melhor. Os pastéis de galinha estavam espetaculares: o recheio, farto e bem temperado, fez com que os 10 pasteis sumissem em poucos minutos. Fritos no ponto exato, fizemos bem em acompanhá-los com a latinha de coca que trazíamos. Preparamos uma limonada de TANG e bebericamos um pouco dos sucos de uva fermentados que levávamos. A feijoada, ainda que boa e saborosa, não esteve à altura dos pásteis.




    Terceiro Dia


    Acordei pouco antes do nascer do sol e fui ver como estava o tempo. Deixei a Paula dormir mais um bocado, já que com as nuvens que o vento soprava em direção ao SINO não haveria nascer do sol visível naquele dia. Alonguei um bocado fiquei admirando a aurora, protegido do vento na varanda do abrigo. Pouco depois das 7 h, voltei à barraca, tendo constatado que a Paula já estava acordada. Não chovia, mas as nuvens deixavam a vegetação encharcada e as gotas, após coalescerem pingavam como se estivesse a chover. Nos arrumamos dentro da barraca e preparei o café da manhã, cozinhando no avancê da MIKRA. Para a refeição matinal, preparei tapioca de queijo, pão com manteiga na chapa e provolone grelhado.

    Desmontamos acampamento e partimos para a última caminhada dessa travessia, perdendo cerca de 1300 m em 11 km de pernada. Particularmente, foi a parte que menos me agradou, não tínhamos quase que vista nenhuma, nenhum trecho de passagem complexa que exigisse mais habilidade ou técnica. Apenas um “andar sem fim”. Mesmo assim, as flores da descida conseguiram tornar esse trecho alegrador.



    Apesar de descermos da montanha, o ar frio nos acompanhou, já que a frente fria chegava em Teresópolis durante a madrugada de domingo e não ao longo do sábado, como era previsto. No camping do SINO, a temperatura chegou a 4C na madrugada. Em Teresópolis, fazia 8C. Fomos em busca do famoso “caldo de piranha” que faz por merecer a fama. No frio, então... tomei 3, rsrs. Não deixe de provar os pasteizinhos de camarão e catupiry, estavam deliciosos e foram um arremate perfeito para a tarde gélida. Ainda com muitas horas para a saída do ônibus para SP, fomos para rodoviária, onde não me tolhei de estender os isolantes no banco de concreto, entrar no liner da Paula e ficar de bobeira, vendo fotos e vídeos até a chegada do ônibus. A queda de uma barreira na estrada deu certa preocupação, mas com as horas que havia até a saída do nosso ônibus, tudo se resolveu. Chegamos na rodoviária do Tiete, pegamos nossas coisas no guarda – volume e enfrentamos o metrô de Sampa, às 6 h duma segunda de volta às aulas. Foi quase tão complexo quanto o segundo dia da travessia, rsrs. Emendei um ónibus para Santos e cheguei no trabalho pouco antes das 9h.

    Rogério Alexandre Francis

    Rogério Alexandre Francis

    Santos e SP

    Rox
    406

    Montanhista de FDS, engenheiro de formação, aficionado por historia, geografia e biologia. O cume não pode ser a maior alegria da pernada.

    Mapa de Aventuras


    Mínimo Impacto
    Manifesto
    Rox

    Fabio Fliess, Bruno Negreiros e mais 442 pessoas apoiam o manifesto.