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Vgn Vagner 17/02/2023 08:32
    Travessia Pico Bergamota x M. Tenente x Morro Cabeça de Nego

    Travessia Pico Bergamota x M. Tenente x Morro Cabeça de Nego

    Travessia Selvagem que liga as três montanhas pela cristã. Dificuldade: alta Risco de morte: médio/alto

    Trekking Montañismo Escalada

    Pico Bergamota x Morro do Tenente x Cabeça de Nego

    Mesmo sem entender nada de trilhas, quando molecote, em dias de sol descendo a Serra do Mar Paulista pela Mogi-Bertioga rumo à praia, eu ficava olhando aquelas montanhas gigantescas e ficava todo admirado. Mas não imaginar que, quando adulto, um dia eu iria rodar bastante por aquelas bandas, e que alcançar o topo do Morro que mais se destacava se tornaria futuramente um sonho de conquista pessoal a ser realizado.

    Por volta dos anos 2014 eu já olhava o Cabeça de Nego como uma montanha a ser conquistada. Nascia naquela época um fascínio por aquele morro. Corri atrás de informações, que na época eram escassas, pois não tinham redes sociais como hoje em dia (2022), distribuindo infos, fotos e tracklogs de tudo quanto é lugar. As únicas informações que consegui na época foram através do relato de uma "TROPA DE ELITE" que em 2010 tentou alcançar o cume daquela montanha, mas foi impedido pelo paredão de 25° que guarda a subida do lugar. Fora eles, haviam rumores de que um grupo do Exército havia subido antes de 2012. E isso era bastante possível, pois os agrupamentos buscam lugares inóspitos e de difícil acesso para executar treinamento. Enfim...

    ...os anos foram se passando, e o mundo das trilhas e travessias foi se expandindo desenfreadamente. Mas a linda montanha continuava lá, esquecida e intocada até mesmo pelos mais entusiastas, exploradores e caçadores de aventuras pela Serra do Mar Paulista. Isso só fazia aumentar meu desejo de querer subir lá. Pois no meio exploratório das trilhas quanto menos se tem notícias de um lugar, mais curiosos ficamos, imaginando o quão desafiador e arriscado pode ser tal lugar. Eu queria muito subir o Cabeça de Nego. Mas, para dificultar ainda mais a aventura, e deixar tudo com uma pitada a mais de autenticidade desenhei um novo caminho sobre os mapas da região...

    Ao norte do Cabeça de Nego, separado apenas por um celado, está outra montanha tão imponente quanto ele: o Morro do Tenente, com seus 697 mts de altitude acima do nível do mar. Pensando no fato de serem morros vizinhos numa mesma cadeia montanhosa, porquê não unir o útil ao agradável e tentar subir os dois numa tacada só? Isso ficou martelando na minha cachola até eu desenhar um traçado com essa rota. Expus a ideia aos amigos que me já me acompanharam em outras aventuras, mas a maioria desdenhou dizendo que eu era louco e que isso não daria muito certo. Insisti! Tentei por diversas vezes montar um time para realizar tal feito, mas tantos empecilhos e imprevistos vinham do lado dos convidados que, em 2021, numa excelente temporada de montanha tive que arquivar o projeto novamente por falta de companhia. Que frustração.

    No começo de 2022 eu disse: esse ano sai, hein!? E, sem saber do poder das palavras que eu estava dizendo, profetizei.

    Dia 4 de agosto, de 2022, Diógenes Spada, Robert Zion e Eu fomos investigar o acesso de mais uma montanha que está fincada no ombro daquela Serra - o Pico Bergamota. Tivemos muito sucesso na missão. E, lá mesmo, no topo do Bergamota, com o lindo visual do litoral à nossa frente, disse a eles que tinha uma ideia muito insana: fazer uma Travessia Selvagem, passando pelas três montanhas numa paulada só, e que eu os queria junto comigo naquela loucura. Estar lá, ao vivo, vendo a real possibilidade de o plano dar certo, fiquei ainda mais atiçado.

    Vinte dias depois eu estava ensandecido, incontrolável, desesperado procurando companhia para realizar essa tal travessia. Convidei 748 pessoas, mas não encontrei um que estivesse disponível e disposto para ir comigo no meio de semana. Então "Taquei o foda-se." Mesmo sabendo dos altos riscos que eu poderia correr, separei minhas coisas, joguei na mochila, avisei meus amigos que estaria indo sozinho. Pois só assim eu iria conseguir realizar um sonho antigo, e tirar de uma vez por todas aquele projeto do papel.

    Me lembro da preocupação de alguns deles:

    - você vai sozinho mesmo? Não é arriscado?

    - sim, é arriscado. Mas eu já não aguento mais esperar, preciso tentar. - era o que eu respondia.

    METI O LOKO...

    Ajeitei tudo, avisei quem achei que deveria, deixei o tracklog, coordenadas e todo meu "plano de voo" com eles e partir sozinho mesmo. Maaas...

    Aos 45 minutos do segundo tempo, na véspera da minha ida, me surge o Odair Mercúrio, dizendo que conseguiu adiar um trampo para a semana seguinte, e que iria comigo. Confesso que não acreditei, achando que ele não iria. Mas, às 16h30 do dia 24/08/2022, na estação de Trem de Mogi das Cruzes, lá estava ele, sem saber muito bem para onde estava indo, mas cheio de vontade de explorar novos horizontes.

    Quando desembarcamos do busão, no septuagésimo sétimo quilômetro da SP-098 ainda tinha luz do dia. Uma hora depois, entrando na trilha, já era o breu da noite que ilustração a caminhada. Uma noite gelada de trincar os ossos, mas a forte subida que se inicia após cruzarmos o Rio das Pedras (último ponto de água), fez nossos radiadores ferverem rapidinho. Era quase uma escalaminhada. A cada 10 minutinhos a pausa para retomar o fôlego era obrigatória. Quando alcançamos a crista da Serra, numa caminhada menos penosa, começou uma gritaria de macacos bugios tentando nos intimidar por estarmos invadindo território deles. Se não fossemos acostumados com isso, certeza que a gente iria borras as cuecas. Foi uma gritaria assustadora. Não demorou muito para termos um alívio no caminho extenso sobre a longa crista do morrão. Foram uns 30 minutos até o desnível voltar a oscilar e ficar num curto e forte sobe e desce até o Pico Bergamota. Onde chegamos após 2h30 de caminhada noturna. O ponto mais alto tem seus 929 metros de altitude acima do nível do mar e faz base a uma torre de transmissão de alta voltagem elétrica (risco de morte. CUIDADO). Montamos acampamento (ele de rede, eu de barraca) e ficamos trocando ideia sob um céu super estrelado que fazia aquela noite.

    Vista para Biritiba Mirim.

    Antes dos galos cantarem, acordamos super cedo para ver o sol nascer. Foi um espetáculo. Subimos pouco mais da metade da torre, com todo cuidado possível, onde já era possível ter uma panorâmica de 360 graus. O sol nascendo atrás da Pedra da Boracéia, grandes tapetes de nuvens cobrindo as fendas dos vales ao redor e todo o marzão se estendendo ao sul...

    Cabeça de Nego e Morro do Tenente.

    Levantamos acampamento e saímos às 8h30. Dali pra frente, seguindo o caminho sob as torres, só teríamos declives (90% de tudo). Até a última torre, onde fizemos a primeira investigação da outra vez, o caminho estava bastante aberto e fácil de caminhar. A partir dali foi possível ver o mar verde que teríamos que enfrentar varando mato. Confesso que deu aquele frio na barriga cheio de incerteza. Eu não estava apostando que iríamos atravessar tanta vegetação até o Nego antes de o sol se pôr. Mas, como só tínhamos a certeza de que deveríamos partir, partimos.

    Nos enfiamos na mata fechada mirando o sudoeste sem nenhum vestígio que pudesse nos dar referência por onde seguir. Apenas o traçado que risquei e estava no app com GPS para nos dar um norte. Mas não tinha muito segredo. Pelo que eu havia estudado da geografia do lugar era só tocar sempre pelo ombro da Serra até abandonar rumo ao sul. E foi assim...

    No início pegamos uma mata densa, meio chata de transpor. Mas aos poucos foram aparecendo rastros de caminhos abertos por Antas. Pois a geografia que pegamos naquele trecho é do tipo em que elas mais gostam andar. Sem muito aclive ou declive e livre de erosões. Tinha fezes de Anta por quase todo o caminho, que foi sempre fiel às bordas da Serra. Aos pouco esse mesmo caminho foi ficando mais aberto, nos deixando fluir sem varar mato. Não encontramos nenhum rastro deixado por palmiteiros ou caçadores. Nenhum palmito cortado, nenhum tronco com corte antigo de facão... Nada. E, quando abandonamos a borda da Serra para descermos em direção ao Morro do Tenente, o rastro seguiu firme em direção à Garganta do Gigante, no Rio Itatinga.

    Morro do Tenente.

    Pegamos um forte descidão com um vara mato bem suave. As árvores eram bastante distante umas das outras permitindo uma ótima navegação com muita segurança. Não tivemos resistência para seguir. Toda a pernada foi sobre a crista larga e plana até a subida do Tenente. Ali a ascensão já foi de fazer colocar a língua pra fora e pedir água (que não tem pelo caminho). Ainda bem que foi uma subida curta. Logo chegamos ao topo do Morro do Tenente. Uma pena a gente ter chegado um pouquinho depois de uma nuvem ter estacionado lá impedindo todo e qualquer visual. Com isso a pausa por lá foi muito breve, só para descansar mesmo. "Descemos sem freio."

    Entre o Tenente e o Nego existe uma baixada, uma espécie de celado que liga os dois. Por ele a caminhada não perdeu o ritmo. Depois de descermos um tanto o celado fica plano novamente por um bom tempo até chegar num lamaçal que serve como cama de Antas. Tem boas áreas para um acampamento base antes de atacar o cume do Nego, mas é garantia de pegar algumas dezenas de carrapatos por ali. Após esse trecho, aos poucos, a Rocha já se destaca imponente entre as copas das árvores. Por dedução, qualquer um que chega ali já pode imaginar a dificuldade, pensando até na impossibilidade, de subir ali.

    Eram 14h45 quando chegamos na base do Cabeça de Nego. O frio na barriga voltou a bater, e bateu forte. Digamos que a gente teria mais ou menos 2h30 de luz do dia para tentar alcançar o cume. Do contrário, teríamos que pernoitar na base e arriscar nova tentativa ao amanhecer.

    Minha mente ficava:

    - será que vamos conseguir subir?

    - vai dar tempo?

    - porquê os caras não conseguiram subir em 2010 ?

    - qual será o risco que tem aí pra cima?

    E várias outras questões ficavam martelando na minha mente. Mas eu preferi guardar aquilo pra mim, pois não queria fazer brotar insegurança ao camarada e colocar um certo descontrole ao momento. Então, sem titubear, iniciamos o ataque sem olhar para os lados. Fomos diretos.

    Logo na primeira inclinação do terreno um jardim de bromélias elevou a dificuldade de avanço. As plantas são duras, cheias de espinhos duros, e tem em média 80 centímetros de altura. As danadas perfuravam as coxas a cada levantada de perna. Não tinham árvores, nem raízes onde pudéssemos nos agarrar. Por ser já em trecho de escalada foi bastante complicado avançar dentro daquele jardim suspenso. Fora o receio de colocar a mão em alguma cobra enrolada entre elas. Não dava pra ver onde se colocar vamos aos as mãos, já estávamos escalaminhando em uns 35 graus, e a próxima bromélia a ser agarrada sempre estava acima de nossas cabeças. Foi árduo.

    Quando "passamos de fase," logo em seguida já encontramos uma rocha de uns 6 metros, uma parede lisa sem fendas ou qualquer friso para auxiliar numa escalada, paramos por um tempo para analisar se pelas laterais seria possível subir, mas era penhasco dos dois lados. Sorte que havia uma árvore lambendo a parede desde a base até o patamar mais acima.

    Deixei a mochila cargueira no chão, trepei na árvore com uma corda pendurada no ombro e subi até o platô de cima. Já com os pés em solo firme, joguei a corda pra baixo, Odair amarrou as mochilas, puxei uma por vez, e em seguida puxei o amigo. "Fase 2 concluída."

    A terceira e última fase é que era "o chefão," o "Shaokan do Kombate Mortal." Era hora da escada livre. Hora de encarar a maior e mais exposta parede daquele maciço rochoso. Aquela rocha pelada que está abaixo do cocoroto do topo do Nego e que é vista há quilômetros de distância. Ali está a única via de ascensão ao cume sem a utilização de equipamentos de escada. As laterais são verdadeiros abismos que só permitem subir se for no modo "free solo."

    A inclinação a nossa frente era de uns 25 graus, totalmente rústica e livre de fendas. A única opção de segurança que tínhamos eram os xaxins grudados na rocha. Tinham no máximo de 10 a 15 centímetros de altura e ofereciam poucas vias por esses musgos. Em uma delas me arrisquei a subir primeiro. Consegui ascender por uns 10 metros, mas travei em um musgo com pouca sustentação. Quando pisei senti ele começar a seder e me afastar do musgo mais acima de mim. GELEI. Se eu caísse, talvez, poderia não morrer, mas iria me quebrar todo lá pra baixo.

    Falei para o Odair começar a subir e tentar chegar na parte plana há uns 10 metros pra cima. Ele subiu com todo cuidado possível, passou ao meu lado, vimos uma rota melhor para que ele pudesse ter êxito na continuação da escalada, e, rapidinho chegou no patamar que nos dava mais segurança. Laçou a corda numa árvore e lançou as pontas pra baixo. Só assim puder sair ileso de onde estava.

    Chegando até ele, já estávamos no abaloado final da subida. E, às 15h40 daquela quinta feira nublada, depois de mais 3 minutos de vara mato pudemos comemorar CUMEEEE o/o/...

    Cume do Cabeça de Nego. (Odair e Eu).

    O cume é totalmente tomado por vegetação, quase impossibilitando a montagem de uma barraca por lá. Ainda bem que estávamos cada um com sua rede, pois tivemos apenas o espaço exato para esticarmos as duas em paralelo.

    Como ainda estava cedo, fomos procurar alguma janela, algum mirante em meio a tantas árvores e mato alto. Ao sul uma pedra tem uma ponta avançada que permite um visual em mais ou menos 250 graus. Todo o enfileirado de vales do núcleo Bertioga, desde o Rio Itatinga, até os confins do Núcleo Itutinga Pilões é avistado. Ao leste as coisas já mudam completamente de cenário. Muito bambuzinho taquara e árvores centenárias às bordas do abismo. Visu quase zero.

    Antes de anoitecer um mar de nuvens invadiu o vão entre nós e o ombro da Serra. Quando o sol se pôs aquele tapete ficou incrivelmente lindo, bailando na escuridão. Imaginamos que ao amanhecer ele nos daria um espetaculo ímpar. Mas, para nossa tristeza, não foi assim. O sol ainda não tinha nascido, mas foi possível ver que as ondas de nuvens haviam se dissipado. Como não tem mirante para o leste tive que caçar alguma árvore forte e alta o bastante pra gente poder assistir o nascente.

    Na altura das copas das árvores, com um abismo abaixo de nós, pudemos ver todo o corte do vale dos Rios Guacá e Itapanhaú, a Mogi-Bertioga serpenteando aos pés da Serra, toda cadeia montanhosa estendida, e o sol se erguendo por detrás da Pedra da Boracéia. Foi lindo!

    Depois de toda cerimônia matinal de acampamento recolhia nossas coisas, tomamos nosso último gole de água e partimos às 8 e pouco. A parte de alta exposição da rocha, que na subida foi um sufoco, foi vencida com uma facilidade absurda, pelo simples fato de já ter onde ancorar a corda e descer em segurança. Mesmo assim, evitando qualquer erro possível.

    Já no celado novamente, nossa missão era despencar daqueles 500 metros de altitude rumo ao Itapanhaú o mais breve que pudéssemos. O vara mato se deu suave até chegarmos na nascente do riacho que queríamos 1h30 depois. Matamos nossa sede e seguimos em paralelo a ele até receber mais um riacho vindo da esquerda dando mais volume a ele. Perdemos altitude num piscar de olhos, e quando nos demos conta, já estávamos na cota 150, exatamente na confluência com o riacho principal que nasce próximo ao Tenente e desce formando poções com uma água cristalina de encher os olhos. Claro que teve um tibum para comemorar o nascimento de mais uma travessia selvagem ao mundo outdoor alternativo da Serra da Mar Paulista. Pois dali adiante já se iniciava o fim de nossa aventura. Vieram alguns poços para banho, e uma trilha marginal a direita do rio que nos levou até os fundos do Casarão do Sr. Nelson. Onde chegamos pisando fofo e, visto que ninguém mais habitava o lugar, pegamos algumas frutas aos pés e devoramos.

    Atravessamos o largo leito do Rio Itapanhaú, tocamos vara mato crista acima e saímos na SP-098 ao meio dia e meio.

    Tínhamos como opções:

    1 - subir 13 modafócas quilômetros até o km77 e pegar o busão até Mogi das Cruzes;

    2 - descer 15 quilômetros até a rodoviária de Bertioga e embarcar no Pássaro Marrom.

    Caminhamos pra burro rodovia abaixo implorando por alguma carona salvadora, mas os carros até mudavam de faixa quando levantamos a mão. rs

    As solas dos pés estavam só o bagaço. Quando paramos para comer e descansar, depois de 1h30 de caminhada, quase sem esperança nenhuma levantamos as mãos para uma Van de fretamento clandestino que subia a Serra e ela parou. Oh glória. o/ Finalmente encerramos nossa jornada levando para casa a enorme satisfação por ter mais uma missão cumprida.

    Obrigado estar comigo, Odair Mercúrio!

    Vgn Vagner
    Vgn Vagner

    Publicado en 17/02/2023 08:32

    Realizado desde 24/08/2022 al 26/08/2022

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    2 Comentarios

    Parabéns!!! É um cume que me encanta também!! Muito bom o relato (e a pernada, digna de mestres de navegação dotados de uma boa dose de coragem)! Abraço

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    Vgn Vagner 15/03/2023 20:57

    Muito obrigado, meu amigo! Difícil não se encantar com ele, né? Sei que és mestre em navegação. Logo menos estará pisando naquele cume!!! Abraço.

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