O Santuário do Caraça, com o pico Inficionado ao fundo.
A serra do Caraça tem bem mais que os aludidos sete cumes: pico do Sol, (2.072 m); pico do Inficionado (2.068 m); pico da Carapuça (1.912 m); pico da Trindade ou Três Irmãos (1.908 m); pico da Canjerana (1.890 m); pico da Conceição (1.803 m); e o Verruguinha (1.650m). Além destes, também temos o pico Piçarrão (1.839 m); pico Casa Nova (1.914 m); pico dos Horizontes, Agulhinha ou Catas Altas (1.810 m); o Baiano (2.016m); o pico da Chácara (1.729 m) e alguns outros, cujos nomes não são tão bem conhecidos.
Dentre todos eles, o pico do Inficionado é, sem dúvida, o mais especial. Embora figure como o segundo mais elevado da região, o que o resguarda um pouco do assédio sofrido pelo mais alto deles (o pico do Sol, quatro metros mais elevado), guarda algumas características únicas, que o destacam dos demais.
Não há certeza quanto à origem do nome “Inficionado”. Possivelmente deriva do antigo arraial do Inficionado, hoje Santa Rita Durão, distrito de Mariana, localizado aos pés da serra do Caraça e do pico homônimo. A citação mais antiga consta em uma nota do poema “Caramuru”, de José de Santa Rita Durão (1781), na qual o autor, que era nascido nesta localidade, menciona que o termo “inficionado” costumava ser atribuído ao ouro impuro e de baixa qualidade, encontrado na região[1].
A jornada até o cume não é para qualquer um. Se até o ano de 2015 ainda era possível pernoitar lá no alto, o que possibilitava recuperar um pouco do esforço despendido na subida, agora não é mais permitido. A ascensão precisa ser rápida, a fim de cumprir os horários impostos pelo Santuário do Caraça, no intervalo entre 8h e 16h, para quem opta por visitá-lo em um dia. Com isso, também fica limitada a exploração dos atrativos que o pico pode nos proporcionar. E que não são poucos!
A começar pelas belas paisagens rupestres que compõem o cume e os platôs que levam a ele, recobertos por uma vegetação característica, que tem as canelas-de-ema (Vellozia spp) como principal representante. Já na subida, a trilha passa por alguns exemplares seculares, cujo caule lembra uma pata de elefante. Ao longo do ano, há uma alternância de cores proporcionada pelas florações de uma grande variedade de plantas, entre orquídeas, bromélias, quaresmeiras e muitas outras espécies adaptadas ao ambiente montano.
Paisagem rupestre no cume do pico Inficionado, com o predomínio da canela-de-ema (Vellozia sp).
Os cumes da serra do Caraça, assim como os de outras regiões serranas, como a Mantiqueira, o Caparaó, a serra dos Órgãos, entre outras, propiciam condições únicas para a manutenção de espécies endêmicas da fauna e da flora, muitas delas restritas a uma área bastante reduzida. É o caso de um pequeno pássaro marrom-claro rabilongo, chamado garrincha-chorona (Asthenes moreirae), descoberta no pico das Agulhas Negras em julho de 1901 por Carlos Moreira (daí o nome da espécie), zoólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, e descrita inicialmente por Alípio Miranda Ribeiro em 1906.
Esta ave intrigou, por anos, os ornitólogos, que tiveram muita dificuldade em classificá-la e, mais ainda, para explicar o que ela fazia naquela região, já que era assemelhada a um grupo de aves que só ocorria nos Andes. Com o passar do tempo, outros exemplares foram registrados no Caparaó, Serra dos Órgãos, Mantiqueira e, em 1996, no Caraça, sempre acima dos 2.000m. Mas o que levou esta espécie de ave a se isolar no cume de apenas algumas poucas montanhas?
Um ancestral desta ave, aparentado a outras espécies da região andina, provavelmente possuía uma área de distribuição maior durante os períodos glaciais, refugiando-se e ficando ilhado em pontos mais elevados do Sudeste do Brasil no período interglacial, na medida em que a temperatura foi ficando mais elevada, o que o levou a se diferenciar na espécie da garrincha-chorona, que encontramos hoje no cume do Inficionado.
Pode não ser a mais bela das aves, especialmente para quem não é um entusiasta da ornitologia, mas tem por trás uma história fascinante em termos de evolução e biogeografia, além de algo comum entre muitos de nós montanhistas: a vida em meio às montanhas!
A garrincha-chorona (Asthenes moreirae), fotografada em meio à vegetação rupestre no pico do Inficionado (Foto: Raphael A. T. Silva).
Mais rara ainda, é uma pequena planta aparentada das samambaias (pteridófitas), de coloração avermelhada, que atualmente só ocorre na serra do Caraça, cujo nome científico é Phlegmariurus ruber (anteriormente Huperzia rubra). Há registros antigos de ocorrência em alguns outros picos do Quadrilátero Ferrífero, dentre eles o Itacolomi e nas serras da Piedade, Capanema e do Batatal, onde foram localmente extintas, provavelmente em decorrência de sucessivos incêndios.
Depois de algumas décadas sem registros, em abril de 1998 alguns indivíduos de Phlegmariurus ruber foram encontrados pelo biólogo Marcelo Ferreira de Vasconcelos no caminho para o Pico do Sol, Serra do Caraça, em altitudes variando entre 1.800 e 1.900 m. A partir desta data, várias outras expedições foram realizadas nas partes mais elevadas do Caraça, nos anos de 1999 e 2000, sendo encontrada mais uma pequena população no pico do Inficionado, em altitudes variando de 1.750 a 2.050 m. Em tempos mais recentes, alguns exemplares também foram registrados no cume dos picos Conceição, Carapuça e Piçarrão.
Há indícios de que a população remanescente desta espécie continua em declínio, não restando mais que algumas centenas de exemplares, boa parte deles no pico Inficionado.
A rara, endêmica e criticamente ameaçada de extinção Phlegmariurus ruber, que ocorre em alguns poucos cumes da serra do Caraça, dentre eles, o do Inficionado.
Já no campo da Geologia, o maciço amplamente fraturado que compõe o Inficionado, favorece o desenvolvimento de sistemas cársticos, que resultam em amplas e profundas grutas, caracterizando-o como principal sistema subterrâneo em quartzito do Brasil. A principal delas é a gruta do Centenário, a maior dessa litologia no país, com um desnível de 481m e 4.700m de desenvolvimento linear. Sua entrada superior está a 2.050m de altitude[2].
Até meados de 2015, quando ainda era permitido acampar no cume do Inficionado, o acesso em um trecho inicial da gruta podia ser realizado sem grande dificuldade. Hoje, diante das restrições de horário impostas pelo Santuário do Caraça para a ascensão ao cume em um dia apenas, esse tipo de exploração ficou mais difícil. Por um lado, isso é bom, uma vez que resguarda a tranquilidade do ambiente utilizado pelo bando de taperuçu-de-coleira-falha (Streptoprocne biscutata), espécie de andorinhão, que utiliza a gruta como abrigo e local de nidificação, especialmente entre os meses de julho a dezembro.
Trecho inicial da gruta do Centenário, acessado a partir do cume do Inficionado.
Na parte central do maciço há uma depressão de grandes proporções, conhecida como Garganta do Diabo, onde podem ser encontradas outras entradas da gruta do Centenário. As paredes recortadas e cheias de fendas deste “abismo”, deixam expostas grandes entradas e abrigos que formam as redes de drenagem subterrâneas no interior do maciço do Inficionado. Trata-se de um local de grande beleza cênica e bastante visitado por quem se aventura no pico.
A Garganta do Diabo, observada de um ponto do cume do Inficionado.
Um atrativo curioso e um tanto mórbido, são os destroços do avião bimotor Piper Seneca, prefixo PT-ELL, de propriedade da Viação São Geraldo, que se acidentou no cume do Inficionado em 1979. O piloto e um casal, donos da empresa de ônibus, partiram do aeroporto Santos Dumond, no Rio de Janeiro, em 19/01/1979, rumo a Caratinga – MG. Por algum motivo, possivelmente devido ao mau tempo, a aeronave fez um desvio em sua rota. As buscas foram concentradas na região da Serra dos Órgãos e do Caparaó, motivo pelo qual os destroços só foram localizados em 12/02/1979, 24 dias após o acidente[3]. Alguns jornais na época, chegaram a noticiar, erroneamente, que os destroços haviam sido encontrados no Caparaó.
Segundo contam os guias do Caraça, a mulher teria sobrevivido à queda, vindo a falecer por hipotermia, alguns dias após o desastre, uma vez que foi encontrada sentada ao lado da aeronave (carece de confirmação). Uma das portas do avião, atualmente é utilizada para fechar a entrada de um pequeno abrigo existente no cume. O restante dos destroços estão em um platô, um pouco mais ao Sul.
O que sobrou do bimotor Piper Seneca, que se acidentou no cume do Inficionado em janeiro de 1979.
A ascensão ao cume do Inficionado exige boa disposição e preparo físico. A caminhada tem início no estacionamento do Santuário do Caraça, no acesso para a Cascatinha. Percorridos cerca de 1.200m, há uma trilha à direita, por um curto trecho de mata, que cruza o ribeirão Caraça pelas pedras. Deste ponto, são mais cerca de 4km de caminhada relativamente plana até a base do pico Inficionado, passando pela Pedra da Paciência, de onde se tem uma das melhores vistas da “Caraça” que dá nome à Serra.
Já próximo à cachoeira da Bocaina, é preciso atenção para não passar direto pela bifurcação à direita, onde tem início a trilha que segue para o Inficionado e o Verruguinha. No passado, existia um caminho neste local, que ligava o Caraça a Ouro Preto, hoje em dia totalmente coberto pela vegetação. Em mais uma travessia do ribeirão Caraça, é recomendável reabastecer os cantis, uma vez que a única fonte de água no cume não é perene, secando nos períodos de menor precipitação.
A partir da base, tem início uma subida bastante íngreme e extensa, chamada de Escadaria (ou Escadão), que nos leva a um pequeno platô inicial. Em seguida mais um trecho íngreme, seguido de outro platô mais extenso, em meio ao campo rupestre recoberto por canelas-de-ema, seguido de mais algumas escalaminhadas em rocha, até o cume, onde recentemente foi deixado um caderno de registros.
O trajeto possui aproximadamente 8,5 km (17 km ida e volta) e pode ser realizado, sem pressa, em cerca de 4 horas. Considerando a ida e a volta, com uma permanência de uma hora no cume, a caminhada costuma levar cerca de 8 horas.
Cabe lembrar que o Santuário do Caraça possui regras para visitação. A ascensão aos picos deve ser feita com o acompanhamento de um guia / condutor, em grupos de até 10 pessoas. Os pernoites nos cumes não são mais permitidos, como forma de preservar a fauna e flora endêmica existente nestes locais e evitar incêndios decorrentes do descuido de pessoas que insistem em fazer fogueiras, como já ocorreu em ocasiões passadas. De outubro a março, o acesso aos cumes costuma ser proibido, devido ao riso de chuva forte e raios.
Apesar das regras e limitações de acesso, subir o Inficionado ainda é uma aventura recompensadora, mesmo que realizada em apenas um dia. Os motivos foram apresentados. Resta a cada um de nós desfrutá-lo de forma consciente, evitando ao máximo os impactos que podem colocar em risco a integridade de um ambiente de grande beleza e com características únicas.
[1] UFSC, Literatura Brasileira, Caramuru. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=130352
[2] DUTRA, G. M.; RUBBIOLI, E. L.; HORTA, L. S. Gruta do Centenário, Pico do Inficionado (Serra da Caraça), MG. A maior e mais profunda caverna quartzítica do mundo. SIGEP 20. SCHOBBENHAUS, C.; CAMPOS, DA; QUEIROZ, ET; WINGE, M. 2002. Disponível em http://www.bibliotecadigital.gpme.org.br/bd/gruta-do-centenario-pico-do-inficionado-serra-da-caraca-mg-a-maior-e-mais-profunda-caverna-quartzitica-do-mundo/
[3] Lavoura do Comércio, Edição 20206, 13/02/1979. Disponível em:
Rumo ao pico do Inficionado (2.058m).
Um dos platôs na subida ao cume do Inficionado.
Nascer do Sol no cume do Inficionado. Até 2015 ainda era permitido acampar por lá.
O rabo-mole-da-serra (Embernagra longicauda), ave endêmica da cadeia do Espinhaço.
Floração da bromélia Vriesea marceloi, outra espécie endêmica da serra do Caraça.
Abrigo existente no cume do Inficionado, cuja entrada é fechada com uma das portas do avião acidentado em 1979.
Chegada ao cume do Inficionado (2.058m).
Aspecto da paisagem rupestre no cume do Inficionado.
Extenso platô na descida do cume.
Trecho mais íngreme, conhecido como Escadaria. Difícil dizer se é mais complicado subir ou descer.
Muito bom descritivo André. Lembro com saudades da minha única subida ao Inficionado, com o JJ. Pernada boa demais.
Obrigado, Fabio! Em uma próxima vinda sua à BH, podemos combinar uma visita a outros picos por lá. O Caraça sempre nos reserva muitas boas surpresas!
Demais, obrigada por compartilhar!
Baita relato! Pernada que está na minha "listinha" há tempos...