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TRAVESSIA CANASTRA: Concebida x Zé Carlinhos - GURITA - MG
Travessia selvagem na Serra da Canastra. Uma caminhada de 3 dias com direito a avistamento de ONÇA PRETA, no Cerrado Mineiro.
Trekking Waterfall Mountaineering- TRAVESSIA CANASTRA
..........“Na vida, as coisas parecem acontecer no seu devido tempo. Tinha que ser ali, naquele lugar, justamente quando nada esperávamos, justamente quando a história já parecia ter sido encerada. O momento era para ser aquele, um fim glorioso para uma jornada perfeita e o destino escolheu que estivéssemos juntos, pai e filha numa viagem que beirou a perfeição, numa travessia selvagem que transcendeu qualquer expectativa. De cima daquela colina, com os olhos voltados para o vale mais abaixo, era difícil acreditar no que víamos, na verdade, procurávamos soluções para desacreditar nossos cérebros, como a tentar enganá-lo, como a lhe dizer que aquilo não estava acontecendo. Num primeiro momento a gente nega, nega para nós mesmos, porque é da nossa natureza desacreditar no INACREDITÁVEL, porque simplesmente a gente tende a duvidar de tamanha sorte, nem sei se merecíamos tanto”................
O Plano era claro! Passar cerca de 15 dias na Serra da Canastra, explorando sua porção mais selvagem a bordo de um 4x4 e longe dos olhares dos turistas enfarofados, pelo menos na maioria dos lugares. Mas, como planejamento, também me organizei para fazer uma travessia selvagem, jogando a mochila nas costas e partindo montanha acima atrás do que há de mais espetacular no cerrado brasileiro. Era uma missão um tanto complicada porque estaríamos somente eu e a Júlia, minha filha de 20 anos, num ambiente hostil e longe da civilização, varando mato, por vezes sem trilha e sem a possibilidade de socorro, caso algo viesse a nos acontecer, então eu tinha que ir preparado, juntar na minha mochila os equipamentos necessários para que nossas vidas fossem preservadas caso algo viesse a dar errado.
(Travessia linha rosa )
A viagem de Sumaré, no interior Paulista, levou cerca de 6 horas, num ritmo lento e descontraído até Delfinópolis-MG, mas assim que atravessamos a balsa do Rio Grande, preferimos ficar nos arredores da cidade porque o sol já havia se esvaído e eu não pretendia pegar a estrada esburacada até o Vale da Gurita no escuro, então resolvemos dormir num camping até que o dia voltasse a dar as caras.
No dia seguinte, botamos o velho NIVA para destruir as estradas, coisa que ele sempre fez com maestria e logo pela hora do almoço, atravessamos quase toda a Gurita até estacionarmos no Camping Cafundó, que por ser lá num fim de mundo perdido, faz jus ao nome. Nosso objetivo era acampar lá e logo de madruga, partir para a GRANDE TRAVESSIA e para isso já viemos com a mochila pronta, só carecendo de alguns ajustes. Montamos nossa barraca e para finalizar o dia, fomos nos refrescar no Poço do Melado, uma atração ali mesmo do camping.
Antes das Cinco da Manhã, o relógio nos avisa que é hora de levantar, mas eu já estava de pé desde as quatro da manhã, ansioso, mal consegui dormir. Não tive como esconder a cara de decepção quando a minha filha também se levantou. Estávamos diante de um tempo extremamente nublado, com nuvens negras rodopiando de lá para cá, principalmente encima da muralha do qual seria nosso objetivo. Estamos emersos no centro do Vale da Gurita, cercados por duas imensas “cordilheiras”, uma atrás de nós e outra à nossa frente, que é a que iríamos subir, donde cachoeiras gigantes despencam para dentro do vale. É uma espécie de submundo da Serra da Canastra, formada por várias cadeias de montanhas, verdadeiros paredões abruptos.
Vendo a minha cara de preocupação, a Julia já tratou de levantar o astral, sabia ela que a minha preocupação sobre o tempo, seria por causa dela, porque eu me sentia responsável por levar aquela travessia adiante, mesmo com um templo inclemente, com riscos iminentes de temporais. Respirei fundo, botei tudo para dentro da mochila, tomamos um café reforçado no restaurante do camping e antes das sete da manhã, partimos com a esperança de voltar em no máximo quatro dias e deixamos avisados para o proprietário, que também fez a gentileza de guardar nosso veículo enquanto estivéssemos fora.
Dando Adeus ao Cafundó, tomamos a estradinha que liga o camping até a estrada principal e por ela caminhamos cerca de 1500 m e viramos à direita e agora pela principal, vamos seguir por mais 1500 metros até passarmos por um mata-burro. Estávamos seguindo um esboço de um traklog (caminho feito com gps) que foi nos fornecidos por uns amigos, mas demos bobeira e acabamos passando uns 200 metros do lugar onde teríamos que sair. Mas, passando o mata-burro, metros depois, uma saída a esquerda, que mais parece um caminho de água, é o nosso caminho. É uma trilha imperceptível, quase um vara-mato no que me pareceu ser parte de um pasto e entre perde e acha, vamos sempre no sentido norte por 1 km, até desembocarmos no sensacional Rio Santo Antônio, um rio largo, com águas cristalinas, mas que nesse ponto tem águas que não passam da altura da cintura, hora de parar, tirar as botas e se dar ao desfrute de um banho logo pela manhã, muito porque, o tempo melhorou e o astro rei já queima tudo ao seu redor.
Atravessando o rio, vamos margeá-lo por uns 5 minutos e aí viramos nosso rumo todo para noroeste, novamente atravessando campo aberto, nos valendo de trilhos de vaca ou até do que nos pareceu ser um pedaço de caminho mais largo. Um quilometro depois nos deparamos com uma floresta fechada, um fundo de vale, onde nos perdemos. Tentamos passar mais acima, seguindo o terreno mais fácil, mas ele nos levou completamente fora da rota, então, para desespero da julia, enfiamo-nos num vara-mato espinhudo e emergimos do outro lado, novamente em campo aberto. Estamos navegando com o celular e já é sabido que sempre há um deley (atraso) na recepção do satélite, então era óbvio que de vez enquando sofreríamos para seguir o caminho estipulado, mas sempre era possível corrigir a rota.
O calor estava de matar, mas essa passagem por esse vale anterior nos deu a oportunidade de enchermos nossos cantis. Seguimos por uns 15 minutos no sentido oeste e agora viramos em definitivo em direção a grande muralha até estarmos de frente com uma grande fenda descomunal. Uns 800 metros depois desse mirante da fenda, vamos atravessar um grande capão de mato, descer ao fundo do vale e subir um grande barranco e sairmos novamente em campo aberto, andar mais 200 metros e começarmos a subir a parede definitivamente.
A subida é penosa, demorada, numa cascalheira que insiste em te jogar de volta. O objetivo é alcançar o cume de um morrote mais acima. Vou à frente, vagarosamente ganhando terreno e incentivando a julia, que vem logo no meu encalço, parando vez ou outra para tomar fôlego, até que se junta a min, num patamar entre essa montanha que subimos e outra muito mais alta. É um lugar fascinante, deserto e silencioso, um campo aberto de mato ralo, onde nem o vento ousa dar as caras.
O caminho a seguir é para a direita, vamos galgar até o cume da montanha nos valendo de uma fenda que vai subindo em zig-zag, ganhando altura lentamente para a esquerda até que uma meia hora depois, talvez um pouco mais, atingimos o platô , que vamos seguindo para leste até podermos achar uma passagem entre dois vales que nos leve para outra cadeia de montanha, descendo a um vale e voltando a subir até o cume de outro platô, pegando agora para esquerda no sentido leste em direção definitiva para o Rio da Maria Concebida.
Já passa das 11 da manhã, a gente vinha torrando a mais de 4 horas, mas é preciso aguentar firme a ansiedade de dar um mergulho, porque ainda temos uma cadeia de montanhas para seguir até o rio. E é mesmo um caminho bonito, pontilhado de várias canelas de emas e tantas outras flores do cerrado. Perdemos altitude vagarosamente, galgando a meia altura entre um vale e outro, até que ao meio dia o nosso destino nos leva as margens do rio, calmo, cristalino, deslumbrante, irresistível. Estamos no alto da Cachoeira da Maria Concebida, poderíamos ter tentado subir já pela fazenda de onde se visita a própria cachoeira, mas ela se encontra interditada depois que houve um acidente com uma das pontes que leva até lá.
Batemos no rio, mas ao invés de subirmos, como seria o caminho natural da travessia, vamos atravessá-lo e descer até perto de onde o rio despenca no abismo, pouca coisa, o suficiente para que a gente possa se jogar num grande poção, junto a uma cachoeirinha, afinal de contas, foi para isso que viemos, então já estava mais do que na hora de inaugurarmos o divertimento, o desprendimento, que seria a tônica daquela travessia e de toda aquela viagem pela Serra da Canastra.
Nadamos até não aguentar mais e quando cansamos de nadar, pulamos mais uma vez para termos certeza de que sairíamos de lá refrescados. Agora não haveria erros, nosso caminho vai seguir subindo o rio, quase pela margem, vamos percorrer a Rio da Concebida até quando ele se transformar num córrego manso e sem cachoeiras. Partindo no sentido norte, vamos comendo mato ralo, entre vegetação baixa de cerrado, mas não muito perto das margens do rio, como esperávamos. Aliás, a própria Julia se mostrou incomodada de estarmos passando tão longe do rio, então larguei o caminho traçado pelo gps e fui em direção a sua margem esquerda (de quem sobe) , mas logo demos com os burros n’água porque um floresta densa se formou e o rio começou a ficar emparedado, ai fomos obrigados a meter o pé de lá, varar mato para bem longe da margem e reencontrar o cominho traçado.
A fome já havia batido e a gente ainda estava preso longe do rio. A Julia já estava arrastando a língua no chão, pedindo para a gente parar um pouco, mas eu segui vidrado, de olho num monstro de cachoeira que se apresentou à nossa frente, mas sem a mínima chance de descermos até ela. Sem perceber, perdi o caminho, nos levei para fora da “trilha” e fiz a gente comer mais mato, subir uma paredinha íngreme e com pedras soltas. O calor vai dando cabo no resto das nossas energias e eu tento manter o moral elevado, mas a julia faz cara de poucos amigos diante do calor infernal. Descemos desescalando em direção ao fundo de um vale e teríamos que subir até um outro patamar, mas logo notei que a trilha ou o caminho marcado no gps nos levaria direto para o alto da grande cachoeira sem passar no pé dela, então paramos imediatamente.
Sinceramente eu não via proposito naquele roteiro, ou os caras não passaram na queda da cachoeira ou deixaram as mochilas aqui encima e desceram lá sem marcar a trilha. Nem pensei muito, apontei meu nariz para o rio e fui varando maro, escorregando nas pedras, me valendo de uma canaleta de água e a Julia veio atrás, até que desembocamos em definitivo no rio e ali cairmos prostrado diante daquela maravilha despencando de cima da pedra, onde um poço gigante nos convidava para um mergulho, então jogamos nossas mochilas ao chão e fomos nos afogar de tanto beber água.
Quando estávamos enfiados dentro do mato, ouvimos barulho de gente ao longe e agora víamos claramente que havia gente no topo da cachoeira, mas só saberíamos de quem se tratava, quando lá chegássemos. Aproveitamos para descansar e cozinhar um almoço e enquanto a panela ronronava no fogareiro, nos demos ao desfrute e fomos mergulhar no grande poço profundo, um cenário de sonhos, onde a GRANDE CACHOEIRA se jogava de uns 30 ou 40 metros.
Descemos para explorar mais abaixo e tentar encontrar as outras cachoeiras que havíamos visto lá de cima da montanha. Nos deparamos com uma sequência de pequenos poços e descemos até os pés de uma cachoeira menor, mas com um poço de respeito e mais abaixo dela, um pequeno cânion foi parada obrigatória para um mergulho memorável. Infelizmente não houve como descer mais, porque o vale se fechou num abismo gigante, de onde outra cachoeira de tamanho considerável, se jogava no precipício, fim da linha para nós, mas já estávamos satisfeitos com a nossa exploração, hora de voltarmos para a continuação da nossa travessia.
Retornamos pelo mesmo caminho que havíamos descido para a queda da cachoeira, mas ao invés de reencontrarmos o caminho mais acima, decidimos cortar na diagonal e alcançar o topo da montanha escalando. E foi uma ideia completamente cretina, a subida extremamente exposta nos levou a ficar no fio da navalha, tentando nos segurarmos nas canelas de emas já frágeis pelos incêndios de alguns meses atrás. Em um certo momento, vendo que a julia corria perigo, pensei em sacar a corda e tentar fazer uma segurança, mas ela se agarrou em tudo que era raiz e passou, bem a tempo de eu dar-lhe a mão e puxa-la para cima, aí foi ganhar a continuação da montanha e ir perdendo altitude até o topo da cachoeira.
Sobre nossas cabeças, uma nuvem preta e espessa, estacionou. Quando chegamos de volta ao rio demos de cara com 4 nativos da região, aquele tipo de gente que não sabia nem o que estaria fazendo ali. Gastaram 2 dias de caminhada porque trouxeram todas as bebidas do mundo, equipamentos inúteis e desnecessários, um amontoado de bugigangas e tranqueiras de acampamento, mas tirando isso, eram gente boa, como todos os moradores da Canastra. Mal tivemos tempo de cumprimentar os dois casais e já recebemos o aviso de que o caldo iria entornar. Ainda não era nem 4 da tarde quando um estrondo deu início ao pesadelo: o vento varreu o vale e as nuvens pretas despejaram água, mas foi tanta água que mal tivemos tempo de reação. A tempestade desabou com uma intensidade, que mal conseguíamos parar em pé. Tivemos a ideia estúpida de tirar a barraca da mochila e tentar montá-la, mas o vendaval quase nos jogou com barraca e tudo para dentro do rio. Pior ainda, um rio correu da montanha para dentro do vale e a enxurrada fez outro rio surgir onde estávamos, com mais de 20 cm de altura. Nos deitamos no chão, tentando nos proteger de possíveis raios, mas isso não foi nada.
A temperatura baixou de tal forma que nem nos mexer conseguíamos mais, tremíamos feito vara verde. Eu olhava para Julia e me cortava o coração, mas eu mesmo estava num sofrimento pessoal e não conseguia fazer nada por mim e nem por ela. Mas como nem tudo é tão ruim que não possa piorar, nós já de joelhos, recebemos a pancada final em forma de pedras de gelo. A tempestade de granizo veio para valer e perdurou de uma tal forma que, para não nos machucarmos, colocamos nossos capacetes e ficamos ali, deitados no chão recebendo pedradas do céu, como a pagar pelos nossos pecados. Foi meia hora de puro terror no alto daquela montanha isolada do mundo e eu não acreditava no que estávamos passando, não era justo expor minha filha àquela situação. A água passou por cima da barraca desmontada no chão, entrou por dentro das mochilas, só não molhou os sacos de dormir e os equipamentos eletrônicos porque estavam todos protegidos no saco estanque e quando achei que a vaca já iria de vez para o brejo, o sol apareceu, surgiu do nada, dando risadas e galhofando da nossa cara. SOBREVIVEMOS !
A chuva passou, a tempestade se foi, o sol voltou a queimar tudo, mesmo beirando as 17 horas. Montamos nossa barraquinha e colocamos todas as nossas coisas para secar. Aproveitamos o final de tarde para batermos papo com os nativos, que nos convidaram para ir ver o pôr do sol no local onde a grande cachoeira despencava no vazio. Fomos descendo os degraus encachoeirados até a borda infinita junto a uma piscina natural e uma meia hora depois, um dos nativos gritou que a cachoeira dos degraus parecia estar aumentando de tamanho. Nesse momento eu estava bem na beira do precipício, com os pés a balançar no despenhadeiro. Levantei-me calmamente para não cair, olhei para o rio e sem titubear gritei: - “ Corre cambada, uma cabeça d’água “! . Arrastei a julia imediatamente, enquanto o rio crescia perigosamente. Escalamos o mais depressa que pudemos, enquanto eu insistia para que os nativos se apressassem em deixar o leito do rio. Quando chegamos mais acima, quase não conseguimos cruzar para a margem onde estava nossa barraca, segurei no braço da julia e passamos e logo que os nativos passaram, o rio já era um mar.
Aquele foi um dia cheio, cheio de aventura, beleza e emoção e quando a noite chegou, estávamos exaustos, mas felizes por no final tudo ter dado certo. Fizemos a janta e ficamos lá fora contemplando as estrelas, mas antes de dormirmos, ainda tirei um tempinho para cuidar dos pés da julia que haviam ficado destruídos e com bolhas e feridas por todos os lados, então saí de cena o pai e entra o enfermeiro de campanha, hora de pôr em pratica os aprendizados em primeiros socorros em áreas remotas, aprendidos na internet e na escola da trilha ( rsrsrsrsrsrss).
O dia seguinte nasceu ensolarado, como todos os dias ali na Canastra. Desmontamos tudo, tomamos um café e partimos, mas dessa vez sempre beirando o rio, bordejando sua margem esquerda, pontilhado de pequenos poços e piscinas naturais, até uma meia hora acima já avistarmos outra grande cachoeira com umas 3 quedas. Seguimos hipnotizados por ela, mas antes de lá chegarmos, nos detemos no POÇO DO CORAÇÃO, um incrível laguinho que mesmo com as tempestades do dia anterior, ainda se matinha bonito.
Largamos as mochilas no poço do coração e subimos o rio escalaminhando pedras, pulando de uma rocha para outra, nos segurando em pequenas paredes até ficarmos em baixo de mais uma cachoeira, com um poço profundo.
Nessa parte o rio ficou escuro devido as chuvas, muito provavelmente a correnteza deve ter levado muito sedimento, mas em tempos sem chuva, a água é de uma transparência peculiar, mesmo assim, para marcar nossa passagem por ali, mergulhamos no poção de águas um pouco frias por ser muito cedo, mas não estávamos nem aí, ficamos ali, fazendo festa até cansarmos e quando achamos que era hora de partir , partimos satisfeitos.
Voltamos ao poço do Coração, apanhamos nossas mochilas e partimos para ganhar o alto da Cachoeira das 3 Quedas. A trilha segue pela esquerda, mas um pouco afastada do rio, tentando se valer de uma rampa natural até atingirmos a altura da cabeceira e voltarmos para o rio em definitivo.
A visão geral do topo da Cachoeira é algo encantador, avistando paredões gigantes, montanhas esquecidas e isoladas do mundo. Continuamos seguindo por dentro do rio, ignorante pequenas cachoeirinhas até que o rio se afunila dentro da mata e volta a ficar com águas cristalinas. Deixamos o rio e ganhamos uma trilha plana, num bonito descampado, tentando encontrar o local onde serviria para acampar e, mas eu ainda estava achando estranho acamparem num lugar onde o rio parecia não ter mais nenhum atrativo, mas logo fui obrigado a me retratar, assim que tropeçamos naquele poço incrível, que marquei no mapa como POÇO DA DESPEDIDA.
Mal passava das 11 da manhã quando lá chegamos, muito cedo para acampar e muito tarde para partirmos para a segunda metade da travessia, então sem tomar nenhuma decisão, jogamos as mochilas ao chão e fomos almoçar e nos deliciarmos naquele poço verde, uma maravilha perdida no topo da serra. Por mais de uma hora nos entregamos ao ócio, a arte de não fazer nada até que chamei minha companheira de aventura e propus que deveríamos tentar chegar ainda hoje na cachoeira do Zé Carlinhos, mas se caso não desse tempo, provavelmente teríamos que amargar um acampamento sem água e sabe-se lá em que condições.
A Julia me perguntou sobre a continuação, a altimetria do terreno. Disse que não haveria grandes montanhas para subir, mas era um caminho longo sob um sol de matar mula. Mesmo assim recebi o aval dela, então atravessamos o rio e tomamos o rumo leste, cruzando campos abertos, nos livrando dos cupinzeiros e canelas de emas, em meio a um jardim florido, repleto de belezas.
A sequência do caminho muda de leste para sudeste, vamos nos deslocando suavemente, num sobe e desce de colinas floridas, avançando sem trilhas, tendo uma grande cadeia de montanhas do nosso lado direito e outra do lado esquerdo até que uns 2 km depois, achamos uma passagem para cruzar para o outro lado da cadeia de montanhas a nossa direita, uma outra rampa, uma espécie de selado que divide 2 vales.
Estamos em campos de altitude, um mato ralo e praticamente desprovido de nenhum arbusto e vamos seguir por esse terreno no rumo sudeste/sul por mais outros 2 km até nos depararmos com uma ILHA DE PEDRA, forrada de canelas de emas e formações rochosas interessantes. A nossa frente um vale incrível se apresenta, mas é fácil de identificar por onde passaremos, já que pela direita temos outro selado que cruza para o outro lado. Por mais um km vamos continuar descendo, passando por outro selado e iniciarmos uma descida alucinante para o fundo do vale.
Agora vamos começar a descer uma parede gigante, descer quase que escorregando, nos enfiando em canaletas que vão ziguezagueando, tendo como pano de fundo, uma cadeia de montanhas sensacional, parecendo que estamos em solo lunar, com pedras espalhadas para todo canto. E é realmente uma paisagem deslumbrante, num canto perdido da Canastra. O sol está impiedoso, mas eu e a julia continuamos firme no propósito de atingir nosso objetivo antes do anoitecer.
Sigo à frente procurando o melhor trajeto, sabendo que o único caminho é ir em direção ao vale gigante e quando lá chegamos, viramos para a esquerda e vamos descendo sem trilha, nos valendo de uma canaleta de água. Hora ou outra parece que estamos em uma trilha, mas logo ela some e temos que voltar a varar mato no peito, até que seguindo a direção dada pelo gps, somos obrigados a cruzar a canaleta para a direita e subir por um amontoado de pedras, passando por uma bonita passagem entre enormes formações rochosas até finalmente nos posicionarmos de frente com o mirante de onde se descortina o grande vale do RIO DAS POSSES.
Apesar do dia já estar se aproximando do seu fim, às 17 horas, o sol ainda reinava soberano, sem nenhuma nuvem no céu. Por isso mesmo, por causa do calor intenso e o fato de estarmos expostos sem um palmo de sombra para nos aliviar o calor, eu e a julia caminhávamos a passos lentos e modorrentos, com todo cuidado para não despencar da parede que tínhamos que descer para atingir mais um vale, o derradeiro antes de nos enfiarmos na última crista de volta para a civilização. Eu ia à frente, olhos grudados no chão, mãos firmes nas rochas laterais, enquanto eu ia tentando me livrar de mais uma canaleta de pedra. Levantei a cabeça e sem pretensão, fixei os olhos no grande gramado no fundo do vale, cerca de uns 100 metros de distância de onde estávamos, minha cabeça girou, me segurei sobre as pernas, a voz embargou.
Os olhos enxergaram, mas o cérebro se recusou a processar a informação, ficou bugado, procurando no arquivo, respostas convincentes para a imagem que se apresentou à minha frente: O objeto da minha alucinação se movia grandiosamente pelo vale e eu não conseguia acreditar e só fiz tentar procurar me iludir, achar explicações onde não havia. Não sei porque, associei a imagem há alguns animais da Canastra, seria um lobo guará? Um tamanduá bandeira? Uma raposa do campo? Mas, minha nossa senhora, não era nada daquilo, quem eu estava tentando enganar, aquilo tinha nome, mesmo que eu não acreditasse no que estava vendo, era real, era mais do que real, era um sonho que levou 25 anos para se realizar. Mas tinha que compartilhar, mas alguém teria que me dizer que eu não estava vendo coisas e por sorte não havia ninguém do qual eu teria mais prazer em fazer isso.
-JULIA, minha filha, olha lá embaixo no vale.
Ela levantou a cabeça, os olhos se abriram, as pupilas se dilataram, a testa se enrugou, os dentes saltaram para fora, o rosto jovial parecia ter ganhado uma luz própria e se iluminou.
- Meu Deus do céu, pai, é um ONÇA. É uma ONÇA PRETA, pai!
Nós acompanhamos o caminhar do DEUS NEGRO, primeiro mansamente, depois, subitamente ela correu, rapidamente, velozmente, como um grande gato, desfilou diante de nós, que assistíamos a cena em silêncio, estupefatos, sem dizer uma palavra, apenas deslocando nossas cabeças, não havia nada a dizer. Pai e filha se deram conta do momento único que estavam vivento e muito provavelmente nunca mais em suas vidas terão a oportunidade de vivenciarem tal espetáculo, aquele acontecimento que se tem uma vez só em toda uma vida.
(foto net)
A onça preta deixou a cena, deixou o palco e entrou na floresta de fundo de vale, desapareceu do mesmo jeito que surgiu. Eu e minha filha nos olhamos, um de frente para o outro, com olhos radiantes de felicidade, sem acreditar na sorte que se apresentou à nossa frente e ficamos ali, por um tempo, esperando a ficha cair.
Essa cena antológica não durou mais que meio minuto, uma eternidade para o tamanho do prazer que ela nos causou, mesmo assim, não foi suficiente para que pudéssemos tirar uma mísera foto, não houve tempo e nem vontade para olhar a vida por de trás de uma câmera, mas ficou a cena na memória, para a vida toda.
Passado a euforia, nos lembramos que tínhamos que apressar o passo para não chegarmos a noite no local de acampar, mas a julia deu uma recuada, queria saber se não teríamos problema em um possível cruzamento com a ONÇA no fundo do vale. Mesmo ressabiada, teve que confiar em mim, que garantiria sua integridade, mesmo eu não tendo essa certeza toda, coragem não me faltava. Fomos descendo a parede, nos deslocando para a direita, de olho na trilha que corria de oeste para leste.
Ao adentrarmos o vale, vamos nos mantendo em nível e ao invés de descermos com quem vai em direção ao fundo do Rio das Posses, ganhamos a última crista, a derradeira descida final. Lá de cima já era possível avistar as casinhas e os sítios que antecediam a chegada na Cachoeira do Zé Carlinhos e também toda a extensão da Serra, num cenário de montanas que era de outro mundo. A trilha na crista vai caindo para a direita, até fazer uma curva bem acentuada e cair dentro da floresta, onde num trecho, pegamos uma saída errada e tivemos que varar mato, tendo como referência a estradinha que estava sempre visível, até que desembocamos nela, mais ou menos às 18 horas da tarde, cansados, com sede, mas felizes por termos cumprido nosso objetivo.
Na estradinha, poderíamos pegar para a direita e caminharmos por mais umas 2 ou 3 horas de volta para o nosso alojamento, mas essa não era a programação, ainda tínhamos a exploração dos Rios das Posses. Então, pegamos para a esquerda e interceptamos uma trilha que descia por uma escadaria de concreto até nos devolver ás margens do rio, bem de frente com a CACHOEIRA DO ZÉ CARLINHOS.
Uma placa nos indica que para chegar na cachoeira seria preciso atravessar o rio, mas nossa intenção era outra, queríamos mesmo era acampar na Cachoeira das Posses, uns 20 minutos acima, então tomamos a trilha que sobe a montanha e nos pomos a caminhar barranco acima. E é uma trilha mesmo íngreme, com paredes expostas e potencialmente perigosa para turistas, mas logo quando chega ao alto, nos proporciona uma vista deslumbrante de cima de um mirante, um cenário que por si só já valeria qualquer passeio na Canastra.
Descemos até o rio e mesmo se aproximando das sete da noite, ainda tínhamos muita luz. A cachoeira estava linda, num lugar de encantamentos, mas o rio me pareceu um pouco cheio e temi não conseguir atravessá-lo para acamparmos do outro lado, junto a praia de areia. Tirei a roupa e fui me segurando, tentando não ser levado pela correnteza, mas a água não passou da cintura e cheguei ao outro lado em segurança. Voltei, peguei minha mochila e a Julia e passamos de volta.
Acampar ali era proibido, ou pelo menos achamos que poderia ser, mas não vimos ninguém para pedirmos autorização, então combinamos de montar nossa barraquinha e desmontá-la logo que o sol nascesse para evitarmos aporrinhações pelo proprietário e também ficamos torcendo para que ninguém aparecesse por lá para nos enxotar para fora, coisa que seria difícil, pelo horário e pelo isolamento.
Estamos num grande banco de areia formado pela vazão do rio, mas é um banco de areia com uns 2 metros de desnível acima do rio, mesmo assim, avaliei bem a possibilidade de virmos a ser pegos por uma cabeça d’água a noite e concluí que era seguro, muito porque, não havia possibilidade de chuvas iminente. Montamos a barraca e fomos tomar aquele banho e cozinhar aquela janta gostosa, um banquete para comemorar nossa última noite na travessia.
Fomos dormi cedo, estávamos cansados, mas as 3 da manhã, me levantei para me certificar de que o rio ainda estava no mesmo nível, pensando que poderia cair alguma chuva longe dele, talvez em alguma nascente distante, mas ele estava incrível, mais baixo, mais transparente e iluminado por uma lua sensacional. Quando o sol surgiu, nos levantamos e desmontamos tudo, tomamos café, guardamos tudo na mochila e partimos, mas não de volta para a estradinha, escalamos ao lado da Cachoeira das Posses e quando viramos a curva do rio, escondemos nossas mochilas no mato e seguimos subindo até o grande poço, de onde outra cachoeira despencava. Escalamos também essa cachoeira, mas para continuar seguindo rio acima, teríamos que nadar, então decidimos voltar, já estávamos satisfeitos com nossa exploração.
De volta à cachu das Posses, aproveitamos para um último mergulho, atravessamos o rio, agora muito mais baixo, subimos o morro, passamos pelo mirante e descemos de volta para o rio, bem onde se atravessa para ir até a Cachoeira do Zé Carlinhos. Deixamos as mochilas antes do rio e o atravessamos com a água pela canela até darmos de frente com a cachoeira.
A Cachoeira do Zé Carlinhos é outra bem bonita, mas um pouco mais turística pelo acesso fácil, mas por estarmos numa segunda-feira, está vazia e silenciosa, somente eu e a julia estávamos lá, donos absolutos do lugar e aproveitando a exclusividade e o calor incremente, aproveitamos para um bom mergulho e logo em seguida, voltamos para nossas mochilas, apanhamos nossas cargueiras, subimos a escadaria e fomos devolvidos para a estradinha de terra novamente.
Ganhamos a estrada e passamos silenciosamente por uma casa amarela, não queríamos levantar suspeitas e termos que ficar dando explicações. Caminhamos por 1,5 km até que deixamos a estrada para cortar caminho e ganha outra estrada mais a nossa direita, muito porque, se continuássemos, sairíamos na sede de uma fazenda onde poderíamos ter problemas, então para evitar chateações, usamos esse corte de caminho pelo pasto e nos afastamos em definitivo dos problemas.
O sol não tem dó da gente. Vamos subindo a passos de tartarugas até que a estrada principal vira completamente para a direita e começa a descer e por um meia hora vamos segui-la no sentido oeste até que ela vira para a esquerda e se transforma num caminho impassível para carros e desemboca nas margens do Rio Santo Antônio, onde o cruzamos por cima de uma fantástica ponte pênsil, ganhamos o outro lado e em mais 15 minutos , pulamos uma porteira e saímos novamente na estrada principal do Vale da Gurita, que aliás, tem esse nome por causa de uma guarita que por ali existia no passado, mas o dialeto mineiro já tratou de dar cabo , transformando a palavra guarita em gurita, coisas do regionalismo .
Virando à direita na estrada principal, vamos nos arrastar por mais uns 40 minutos até o camping do cafundó e para nosso azar, quando lá chegamos, o restaurante estava fechado, mesmo assim, ali encerramos nossa jornada a pé, pegamos nossa jeep e fomos procurar um lugar para comermos até não aguentarmos mais, fomos comemorar o sucesso daquela empreitada em grande estilo, uma travessia para entrar para história das nossas vidas.
E foi mesmo uma travessia incrível, cheio de reviravoltas, de perrengues memoráveis a paisagens desconcertantes, tempestades avassaladoras, cachoeiras deslumbrantes, caminhadas sob um sol destruidor, mas com um jardim florido de encher os olhos, subidas intermináveis, mas com paisagens que não ficam devendo nada a lugar nenhuma. E o avistamento da ONÇA PRETA, só foi para coroar nossa jornada, para presentear nossa astúcia, nossa coragem de abandonar o conforto e nos jogarmos num mundo selvagem em busca de uma vida plena, muito porque, a nossa viagem seguiu, por mais uns 15 dias, nos enfiando em tudo que é lugar, dezenas de caminhadas a cachoeiras perdidas, pai e filha em sintonia, numa das mais espetaculares férias de todos os tempos.
Novembro/2020
Valeu Rose !
Nossa escrevi errado kkk, mas ainda bem q entendeu!
Só o fato de ter perdido seu tempo para escrever aqui, já esta valendo, obrigado.