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Felipe Romano 01/11/2019 14:14
    Relato de escalada na Pedra do Capacete - PETP/RJ

    Relato de escalada na Pedra do Capacete - PETP/RJ

    Via: CERJ - 5 V (A1/VIsup) E3 D3, 360m – Pedra do Capacete Parque Estadual dos Três Picos/ RJ

    Escalada Montanhismo

    A escalada é um esporte que tem muitas vertentes, uma delas é a escalada tradicional, que muitos se referem como "clássica". Normalmente os praticantes deste estilo buscam desafios cada vez maiores, independente do tamanho da via, que exijam da capacidade física, técnica e mental do escalador, sem contar a logística necessária para se chegar ao cume e descer sem maiores problemas. Por isso, é sempre útil ler relatos, assistir a vídeos e ver fotos das vias que se pretende fazer. Sou muito grato por aqueles que disponibilizaram esse tipo de material online, que me ajudou diversas vezes, então pretendo fornecer aqui meu humilde relato para, quem sabe, ajudar alguém a conquistar esta via. Espero também que o escalador que ler este relato tenha a consciência de tratar a montanha e a natureza com o respeito que merecem.

    Na segunda semana de junho de 2019 tive a oportunidade de realizar mais uma via tradicional, uma das mais clássicas do Brasil, no Parque Estadual dos Três Picos, próximo a Nova Friburgo/RJ. A primeira vez que ouvi a respeito da região dos Três Picos (também conhecida como “Salinas”), foi por meio de um escalador na pedreira de Campinas. Na ocasião ele disse que era o melhor lugar do Brasil para se escalar. Como nunca tinha ouvido do local (fazia uns 3 anos que eu escalava) fiquei intrigado, mas não pesquisei muito sobre o local, deixei a informação guardada no fundo da mente, pois ele também disse que as vias eram mais longas e sérias, ideal para quando tivesse mais experiência.

    Não lembro exatamente quando tive a ideia de fazer a CERJ, mas desde o começo de 2019 estava pensando em qual via clássica iria fazer no meio do ano, período mais seco e ameno, a temporada de montanha. Nas temporadas anteriores pude visitar e escalar o Dedo de Deus em 2018, pela Face Leste com Maria Cebola, e o Parque Nacional do Itatiaia em 2017, ambas viagens mais longas, que exigem o “alvará” da família. Vale constar que não foram as únicas via tradicionais que realizei, pois felizmente tem outros picos mais próximos que dá para subir em um bate-volta ou com apenas uma pernoite, como Andradas, São Bento do Sapucaí e outros. Para escalar qualquer via em Salinas é bom estar confortável em vias de quarto e quinto graus numa exposição mais alta (maior distância entre proteções).

    Então, em 2019, reservei o feriado municipal de 13 de junho (uma quinta-feira) e o feriado estadual de 9 de julho (quinta-feira) também, (como plano B) pra passar 3 dias em Salinas. Estava na dúvida em subir a CERJ ou a lendária Face Leste do Pico Maior, o que também ia depender de quem iria comigo, que foi o principal problema a resolver no momento.

    Fiz a proposta para alguns amigos, mas não tinha nenhuma resposta definitiva. Após umas duas semanas, o Fernando, que inicialmente já tinha outra viagem de escalada marcada, topou, então tínhamos aí uns 3 meses para nos preparar. Foquei meus treinos na resistência aeróbica típica de atividades de montanhismo: caminhada em aclive com peso e condicionamento cardiorrespiratório, já que fazia quase um ano que não treinava forte neste departamento. Houve alguns percalços no caminho, como algumas dores de articulação mas, chegada a semana da viagem, não tinha muito o que reclamar, só encarar o desafio.

    Algumas semanas antes da viagem até discutimos a possibilidade de fazer a Face Leste do Pico Maior, mas após a leitura de alguns relatos achamos melhor dar um passo de cada vez. A Face Leste é uma via mais longa (quase o dobro da CERJ), exige um trabalho rápido da cordada, e bom senso de direção. Não são poucos os que acabam desviando da rota e entrando numa via mais forte, ou perdem tanto tempo que tem que dormir no cume para encontrar o caminho da descida com a luz do dia.

    Pensamos na possibilidade de escalar outra via para conhecer a rocha e a “exposição local” (distância entre proteções, para resumir) no dia anterior. A princípio seria uma via do próprio Capacete, a Rodolfo Chermont ou a Sérgio Jacob, que são mais curtas, e usadas como rotas de rapel do cume, mas acabamos decidindo pela via Bode da Tarde no Morro do Gato, formação que fica no caminho para o abrigo e que do ponto de vista logístico parecia mais interessante.

    Conforme combinado, saímos de Americana no dia 12 de junho, véspera de feriado municipal (emendaríamos a quinta e sexta, voltando para casa no sábado). O tempo ajudou, não havia nenhuma previsão de chuva, nem frio ou calor intenso, perfeito. Após breve parada na altura de Aparecida/SP, seguimos até Teresópolis, chegando por volta das 21h, onde dormimos num bom hotel de ótimo custo/benefício (raridade por ali). Na manhã seguinte saímos por volta das 7h30, após o café da manhã no hotel, e tocamos até as cercanias do Parque Estadual dos Três Picos. Procuramos algum lugar para parar perto do Morro do Gato, para a via da aclimatação.

    Após perder quase uma hora procurando o melhor lugar para parar, deixamos o carro numa beira apertada de estrada de terra e começamos a trilha. Nos perdemos um pouco na trilha, já que não tínhamos muitas informações a respeito dela, mas chegamos na base da via por volta das 10h30). A via Bode da Tarde (4 IV E2) é uma boa introdução para a região mesmo. Tranquila, mas já com alguns lances de proteções distantes e um bonito caminho, com muitas bromélias (não sei se esse termo seria o mais correto) e uma linda vista dos Três Picos e dos vales.

    Por volta das 15h estávamos de volta no carro, seguindo rumo à República Três Picos, abrigo do Paulo Mascarim. Paramos o carro num sítio, aproximadamente 1km abaixo do abrigo. Seria possível subir com um carro 4x4 mas, como não era nosso caso, fomos a pé mesmo. Deu tempo de apreciar a paisagem com a luz do dia e arrumar as coisas. O local é realmente incrível, e a vista dos três picos é hipnotizante! O Pico Maior, que já é belo por si só, paredão de granito e pouca vegetação, impõe respeito a quem queira chegar ao seu cume. Não era nosso objetivo, mas ficou uma grande vontade de tentá-lo no futuro próximo.

    Por volta das 19h jantamos uma sequencia de pizzas sensacionais feitas ali pelo sr. Paulo. Os ingredientes eram quase todos plantados e colhidos ali mesmo, uma verdadeira pizza caseira rural e uma das melhores que já comi. Com a barriga cheia fomos dormir umas 21h, e às 5h30 nos levantamos. Após um ótimo café da manhã ali, saímos às 7h, subindo a trilha bem marcada para o Capacete. Meia hora andando pela estradinha, um rápido desvio corrigido (após o riacho que marcava a entrada para a mata fechada), mais meia hora na mata fechada, incluindo um trepa pedra de quase 50 metros, e pronto, por volta das 8h30 chegamos na base da tão aguardada via.

    A CERJ possui 9 enfiadas (termo sinônimo de cordada ou esticão, dependendo da região) que somam quase 400 metros. O grau médio gira em torno do quarto, com um crux de quinto. Ela foi conquistada em 1970, com certeza um marco para a época, e uma das primeiras vias dos Três Picos. Há diversos estilos ao longo da subida, como mais detalhado abaixo.

    Depois de beber um pouco de água e comer algo leve, nos encordamos, e eu abri a primeira enfiada, com uma boa expectativa, já que o tempo estava aberto e muito agradável. Subi tranquilamente pela fenda, ganhei o platô e subi mais uns 30 metros em uma aderência pouco protegida, mas sem dificuldades.

    A segunda cordada, guiada pelo Fernando, também seguiu essa característica, bem tranquila, mas a terceira exigiu mais. Era minha vez de guiar, e o início dela é uma chaminé/offwidth (fenda larga de corpo) estranha, bem protegida, mas com passadas delicadas para quem está entrando a vista. Logo se domina a face da via e mais acima começa o “perrengue”. Uma bonita fenda de mão vai se verticalizando, e fica mais difícil de parar para colocar proteção móvel (as chapas existem, mas são bem distantes, sendo recomendável colocar um ou dois friends para quem não conhece a via). É claro que os mais intrépidos podem tocar a todo vapor, já que se trata somente de uma graduação 4sup, mas numa via clássica como esta nunca se sabe se uma agarra fundamental quebrou, ou algo do tipo. Por isso, coloquei dois friends, sendo o segundo numa posição não muito confortável, que me deu indícios de perna de Elvis (quando a perna fica tremendo de tanto suportar o peso do corpo na ponta do pé, ou por puro nervosismo mesmo). Após colocar aquele friend 0,75 salvador (já que o número 2 não coube e o número 1 estava do lado “ruim” da cadeirinha), ganhei o platô, ficando assim bem aliviado e cheguei na parada. Ainda fiquei em dúvida quanto a localização da parada, pois ali só tinha uma chapa. Pensei em subir mais, mas acabei acertando o local correto da parada, e coloquei dois friends (micro friends pra ser exato) a mais em conjunto com essa chapa solitária, pois não enxerguei mais nenhuma fenda, bloco ou vegetal que pudesse laçar. Confiava que meu parceiro não ia cair pra testar se a parada estava à prova de bomba mesmo!

    O Fernando guiou a próxima enfiada e acabou emendando duas em uma só, fazendo um esticão de uns 50m. No final havia um lance interessante de chaminé curta. Chegamos assim ao tal do platô do Sorvete, uma parada bem confortável com sombra. Tiramos algumas fotos (como fizemos em todas as paradas), dei uma respirada e fui encarar minha terceira guiada do dia (a quinta da via), uma enfiada que eu já tinha visto diversas vezes por vídeos no youtube e fotos, e pela qual estava bastante ansioso. Tratava-se de um 4sup de uns 50m com uma exposição típica do local, E2/E3. Pelas imagens que tinha visto não parecia brincadeira, então entrei nela com bastante atenção. Rapidamente clipei as três primeiras costuras, até parei pra tirar fotos, e então segui mais delicadamente pelo restante da via, onde estava o crux. Algumas passagens mais verticais, regletes menores, pés mais altos, pegadas mais firmes, e então cheguei à parada, até surpreso por passar um veneno menor do que esperava. Na minha cabeça estava vencido o último grande obstáculo e agora seria só curtir a subida.

    A enfiada seguinte tinha o crux técnico da via, um lance de travessia de quinto grau, mas muito bem protegido. Fernando guiou, e enquanto ele escalava eu tentava aguentar o forte sol que batia, sem nenhum abrigo da sombra. Torcia para ele chegar logo e montar a parada. Subi na sequencia, essa enfiada era realmente linda de se fazer também, e a travessia muito interessante. Assim como a enfiada anterior, eu vi vídeos desse lance, e passei sem muitas dificuldades, só curtindo os movimentos.

    Sem tempo para descansar, já fui emendando a próxima enfiada, que seria a única em artificial (para os leigos, lances em artificial são chamados assim pois o escalador utiliza as proteções, já fixadas anteriormente ou não, para progredir. Ele coloca todo seu peso, seja com uso de fita e mosquetão ou do próprio braço para ganhar altura e assim sucessivamente). No caso deste artificial se tratava de um A1, nível básico, que consistia em clipar a chapeleta com uma fita e mosquetão (preso a sua cadeirinha), botar seu peso nela, e com outro conjunto de fita e mosquetão alcançar a chapeleta seguinte, e assim sucessivamente. No final desta enfiada a sequencia de chapeletas próximas termina e deve-se fazer um lance livre numa pequena virada de teto. Este é um dos lances mais legais de fazer na CERJ, e fazendo a vista (sem conhecer a via antes) é um pequeno desafio. O Fernando subiu tentando fazer toda a via em livre, sem se pesar nas chapeletas, e até conseguiu, exceto por uma passada ou outra já no final.

    Chegamos à sétima parada, faltavam apenas duas. Fernando guiou a seguinte, onde havia uma bifurcação em seu início e tivemos que ver o croqui (sempre à mão) para ter certeza para onde ela seguia e logo estávamos na oitava parada. Tive a honra de guiar a última enfiada, já que fomos alternando guiadas desde o início. O começo deste último trecho gerou uma pequena dúvida sobre a direção: tocar reto ou dar a volta pela esquerda, passando por uma concavidade meio óbvia? Toquei um pouco reto, pensei melhor, desescalei de volta à parada, e busquei aquela concavidade, um afundamento na rocha que dava sensação de ter uma boa posição para progredir. Aos poucos cheguei à primeira proteção, uns 5 metros da parada, e toquei até a próxima, mais uns 10 metros. Dali seguiu mais umas duas proteções até a parada, cada uma entre 15 a 20 metros, padrão para uma graduação entre III e IV grau na região, mas se não tivesse proteção nenhuma nos 60m de enfiada acho que não ia fazer muita diferença àquela altura.

    Cume! Fiz a proteção do Fernando, com um sorriso no rosto, e agora era só comemorar, assinar o livro, comer alguma coisa e achar a parada da Sérgio Jacob, que se encontra na direção do Pico Maior. Deu tempo de vislumbrar a paisagem magnífica ao redor, e após uma curta busca encontramos os Ps bem marcados da Sérgio Jacob. Alternamos no rapel, uns 5 no total, e antes das 16h30 estávamos no chão, agora sim com a missão cumprida, sãos e salvos, e sem nenhum arranhão. Mais algumas fotos, e descemos a trilha bem marcada de volta ao abrigo, aonde chegamos com a noite já tomando conta do dia.

    Chegamos ao abrigo e logo em seguida apareceram escaladores ilustres que iam dormir por ali, entre eles o presidente do GEAN (Grupo Excursionista Agulhas Negras) Igor Spanner, e a lenda Julio Spanner, conhecido como Véio da Touca, que nos brindou com sua cachaça artesanal e muitas histórias de escaladas.

    Mais um jantar delicioso feito por nossos anfitriões, alguma cerveja (infelizmente tinha acabado a cerveja artesanal do sr. Paulo) e uma boa noite de sono. No dia seguinte arrumamos as coisas sem muita pressa, por volta das 9h saímos, demos uma paradinha no Posto Paraiso das Plantas de Teresópolis, em frente ao Dedo de Deus, tiramos umas fotos e partimos. Almoço num posto já do lado paulista e chegamos em Americana por volta das 18h, no entardecer. Acabava a aventura do ano, muito feliz de ter concluído o que estava planejado e conhecido esse lugar fenomenal.

    Betas e agradecimentos:

    50 vias clássicas do Brasil, da Companhia da Escalada

    Guia de escaladas da Região dos Três Picos, de Sérgio Tartari

    www.blogdobugim.com, do escalador Pedro Bugim

    República Três Picos

    Felipe Romano
    Felipe Romano

    Publicado em 01/11/2019 14:14

    Realizada de 12/06/2019 até 15/06/2019

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    1998

    2 Comentários
    Luna 29/11/2019 01:07

    Relato sensacional! 👏 Obrigada pelos detalhes, torna fácil de reproduzir o seu roteiro. 😊

    1
    Felipe Romano 18/12/2019 10:52

    Obrigado! Esse é o intuito, boas escaladas.

    Felipe Romano

    Felipe Romano

    Americana/SP

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    Escalador de fim de semana e montanhista amador

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