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Felipe Romano 20/08/2020 16:27
    Relato de escalada no Morro do Boi/MG

    Relato de escalada no Morro do Boi/MG

    Via: Irmãos Rocha VI 7a E2 D2, 150 - Ibitiúra de Minas/MG

    Escalada Montanhismo

    Há exatos cinco anos fiz minha primeira visita em Andradas/MG, mais precisamente Ibitiúra de Minas, onde se encontram belos morros e pedras com variadas vias em sua rochas de granito e gnaisse.

    Na ocasião entrei pela primeira vez numa via tradicional, já guiando a fácil via Normal da Pedra do Elefante. Depois de diversas visitas nesta mesma Pedra e também no morro do Pantano e do Boi, a via da vez seria a Irmãos Rocha, neste último.

    Não é preciso dizer que este ano de 2020 foi, e está sendo, atípico. O plano inicial era escalar uma via no morro do Boi como preparação para a escalada da lendária Face Leste do Pico Maior, no estado do Rio de Janeiro, entre junho e agosto. Porém, já quase em setembro, e devido outros fatores, a Face Leste deve ficar para 2021 mesmo.

    Na verdade, até mesmo estava cogitando não escalar nenhuma via tradicional este ano, já que as medidas de distanciamento, higiene e máscara não seriam seguidas da mesma maneira que conseguimos seguir numa falésia próxima de fácil acesso, como é a pedreira Jardim Garcia em Campinas, onde temos escalado nos últimos meses. O panorama mudou, pois 20 dias após uma dor de cabeça suspeita realizei um teste sorológico da covid-19 que deu positivo para os anticorpos IgG.

    Como já tinha combinado escalar as vias tradicionais com o Anderson desde o começo do ano, ele sugeriu fazermos a via Irmãos Rocha, com graduação VI 7a E2 D2 em 150 metros divididos por 6 paradas. A graduação em si parecia dentro de nossas capacidades, ainda mais pelo fato dele ser um ótimo escalador, e que poderia guiar as duas enfiadas mais difíceis, cotadas em 7a e 6sup.

    Marcamos a escalada para o sábado, 15/8, um dia seco e quente. Saímos de Americana pouco depois das 6h, com os equipamentos já semi-organizados. Viagem tranquila, passamos ainda no Hostel Bramido do Elefante, do amigo Juliano, e paramos o carro no início da trilha as 8h30. Mais 15 minutos para arrumar as mochilas e 8h45 iniciamos a caminhada.

    É bom lembrar que o morro do Boi não é muito frequentado e a trilha, que começa bem tranquila, cruza um riacho e depois sobe por um caminho mais enigmático até achar marcações nas árvores que guiam até “mais ou menos” as bases das vias. Eu e o Anderson, separadamente, já tínhamos feito esta trilha e escalado este morro uma vez cada, o que não foi suficiente para deixar o caminho claro. Perdemos uns 20 minutos do trecho do riacho até a marcação das árvores, e a mata fechada, espinhos, capinzal seco e inclinado, e outros perrengues, nos fizeram chegar cansados na base pouco antes das 10h.

    Toma um gole de água, come alguma coisa, arruma os equipos, bota cadeirinha, e umas 10h30 iniciamos a escalada de fato. A primeira enfiada é um diedro com fenda quase vertical e poucas e pequenas agarras em 25m, sem nenhuma proteção fixa, somente sendo possível se proteger com friends (camalots) e nuts. Segundo o livro de guia ela é cotada em sexto grau, mas, posteriormente, vi em outros relatos que o pessoal achou mais dura que um sexto, e cotou esta enfiada em 7a. Como depois viriam outras enfiadas mais difíceis, eu resolvi guiar esta, até porque gosto muito de escalar com móveis, um estilo mais tradicional, aventureiro e independente, já que se escala a rocha em seu estado bruto, sem nenhuma modificação feita pelo homem.

    Comecei subindo numa rampa sem muitas agarras, e logo encaixei o primeiro friend, tamanho 3 da BD. Deste ponto faz-se uma virada para a face do diedro, e essa virada pareceu ser o crux. Sem o menor pudor me pendurei no friend (o que requer certa confiança na colocação, já que uma queda ali seria de uns 4m direto num bloco de pedra pontudo). Com essa ajuda consegui fazer a virada, já coloquei outro friend um pouco acima pra duplicar a proteção e aí sim comecei a escalar com mais cadência. Senti que a via era dura mesmo e, sem medo de parecer cauteloso, fui emendando friends e nuts (alguns micro que encaixaram bem), já que a fenda permitia. Consegui chegar à parada utilizando as proteções que levei, e com o sentimento de dever cumprido.

    Logo veio o Anderson, também com alguma dificuldade na virada da rampa para a fenda, e então seria hora de o trecho mais difícil de toda a via. Encaramos os próximos 25m com certo receio, já que a primeira parte, somando-se à trilha e ao forte sol, tinha castigado bastante. A segunda enfiada fica ainda mais vertical, com menos e menores agarras, e a fenda que a acompanha fica muito larga para nossos friends, quando não totalmente cega. Seria uma escalada mais exposta e difícil. Depois de tomar uma água e dar uma descansada, o Anderson fez a primeira tentativa de chegar na primeira (e única) chapa, que fica a uns 4m da parada, mas que exige pés minúsculos e uma fenda abaulada na esquerda. Nada. Estudou um pouco os movimentos, encaixou um friend e voltou pra base. Mais uma tentativa, e voltou. Na terceira ele conseguiu costurar a chapa e descansar ali mesmo. Mais um pouco de ensaio e encaixou outro friend mais acima. E assim foi indo, do jeito que a via, e o sol forte, permitiam.

    Depois de muita luta conseguiu virar o teto que marca o fim deste diedro e chegar na parada, exausto. Era minha vez. Como estava com a corda de cima imaginei que seria mais tranquilo, engano meu. Cada movimento exigiu um esforço enorme, e o pé direito já dava sinais de que não ia aguentar muito tempo. O sol cozinhou a ponta da sapatilha, que é revestido de borracha até em cima dos dedos, já que foi feita para escalar nas fendas de clima ameno do Yosemite, e não na tropicalidade do sul de Minas! De todo modo tinha que continuar. Consegui a maior parte dos movimentos, noutros tive que puxar em friends pra ajudar a subir.

    A enfiada seguinte estava cotada como 6sup, toda grampeada (bastante protegida com chapeletas próximas), mas nos outros relatos de quem fez a via também acharam mais forte que isso. Novamente, tínhamos combinado que o Anderson guiaria este trecho, e não tinha como ser diferente, porque eu duvido que teria conseguido terminar a via nas condições que me encontrava. Ele mesmo teve dificuldade. Passou um veneno até chegar à primeira chapa pois tentou ir reto para ela, quando o croqui indicava que era melhor seguir pela esquerda e usar uma laca grande, inclusive protegendo com um friend. Faltou uma melhor leitura. Mesmo assim, conseguiu costurar essa chapa e deu uma descansada. Ali se iniciava o crux de 6sup (ou 7ª, de acordo com os repetidores da via) nas próximas 3 chapas. Faz um lance, costura, descansa, e assim vai. Passando o crux ele chegou rapidamente na parada e eu segui. Com o pé direito chorando fui aos trancos, desta vez puxando no A0 sem dó diversas vezes, e chegando morto na parada. Apesar da situação patética iria guiar a próxima enfiada, e assim o fiz, da melhor maneira que pude, mas cumpri minha parte sem grande demora.

    Esta quarta enfiada estava cotada em 3º grau, mas sinceramente, pareceu um 4sup justo. Mesmo com o pé arrebentando dei uma descansada e iniciei a enfiada, relativamente recomposto. O primeiro trecho era uma aderência clássica, com aquela velha conhecida exposição pós-parada. Uns 4m nisso e chega-se num grande platô (comentamos até que ali deveria ter sido montada a parada, que inclusive poderia ser em móvel já que no platô há uma grande laca). Nesta mencionada laca coloquei a primeira proteção, um friend que ficou bomber (toda esta enfiada é em proteção móvel, assim como a primeira, sem nenhuma proteção fixa) e subi num lindo lance de laca em oposição onde o pé se chapa contra a face da rocha toda vertical e sem agarra. Ali não poderia vacilar, porque eram mais uns 2 metros assim até montar na laca que fica horizontal. Agora era só caminhar, literalmente, para a esquerda, seguindo esse caminho natural. Mais 3 friends nessa travessia e chegava ao crux final dessa enfiada, uma virada de balcão com agarras de mão ruins e alguns pés decentes, mas altos. Ainda não tinha visualizado a parada, então só torcia para que esse fosse o caminho certo (em vias tradicionais nunca dá pra ter garantia de nada). Nesse lance de balcão havia certa exposição. Ensaiei o movimento uma vez, voltei. Respira. Na segunda subi o pé no alto e pronto, balcão conquistado e parada à vista.

    Agora só faltavam duas enfiadas, também cotadas em 3º grau. O Anderson guiou a próxima e, reparando que a última era curta, acabou emendando as duas, chegando ao fim da via. Meu pé direito já não aguentava mais e quase considerei escalar de joelhos. O trecho final parecia muito bacana em condições normais, mas do jeito que estava não consegui curtir, só queria colocar logo o tênis e rapelar. A última parada não chegava no cume da morro, mas não fizemos a mínima questão de seguir o costão exposto de mato. Terminamos com o que restava de água e logo nos preparamos para o rapel. Fizemos 6 rapéis em simultâneo, o que acabou sendo muito rápido. Por volta de 30 minutos já estávamos no chão, e eram quase 17h.

    Não demoramos muito para iniciar a trilha de volta, até pelo risco de perder a luz do dia. Ainda conseguimos bater cabeça logo no início da descida e nos perdemos um pouco, o que invariavelmente nos leva a mais mata fechada, espinhos, buracos no chão e tombos. Nada agradável àquela altura. Finalmente achamos as marcas da trilha. O Anderson achou melhor voltarmos por um cafezal que seguia reto para a estrada de terra, chegando a uma casa onde ele estacionou o carro quando ele escalou no morro do Boi pela primeira vez, em 2018. Fomos por ali, cruzando com vacas, bois e cachorros, um dos quais, o Thor, nos seguiu muito amistosamente até o carro, que estava em outra casa, uns 500m de onde saímos pela estrada de terra. Chegamos ao carro às 17h45 exaustos. Ainda deu tempo de parar no posto da entrada de Andradas para comprar um tradicional vinho da região, e às 20h estávamos de volta em Americana. 14 horas intensas que exigiriam alguns dias de descanso.

    Enfim, apesar de ser uma repetição da via, sentimos como uma conquista, pois ela se mostrou além de nossas capacidades. Fomos muito otimistas em subestimá-la e achar que sua graduação refletiria o grau de vias que normalmente fazemos na sombra, bem descansados. Muitos ainda dizem que devemos aumentar um grau inteiro quando consideramos escalar vias tradicionais no sul de Minas, e pra alguns casos é bem verdade. Só sei que da próxima vou escolher uma graduação mais dentro de minhas capacidades, afinal a diversão também conta muito.

    Felipe Romano
    Felipe Romano

    Publicado em 20/08/2020 16:27

    Realizada em 15/08/2020

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