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Guilherme Cavallari 24/07/2018 09:59
    SERRA FINA, PERNA GROSSA  bikepacking radical na Mantiqueira

    SERRA FINA, PERNA GROSSA bikepacking radical na Mantiqueira

    Narrativa da primeira tentativa de completar a travessia da Serra Fina numa mountain bike

    Bikepacking Mountain Bike Montanhismo

    Segundo o bom e velho Aurélio — o Grande Dicionário da Língua Portuguesa —, a palavra “aventura” é definida como: “empresa, empreendimento, ou experiência arriscada, perigosa, incomum, de finalidade ou decorrência incerta”. Minha receita pessoal inclui ainda “uma pitada de ousadia”, “novos horizontes à vontade” e “uma forte dose de exploração”. Mas nem a descrição literária ou minha visão particular podem ser consideradas oficiais. Aventura, no final do dia, é uma experiência pessoal.

    Particularmente, acho importante os aspectos de "risco", "perigo" e "decorrência incerta" naquilo que determina uma aventura. Acho engraçado quem, consciente ou inconscientemente, evita os riscos como quem foge do pecado, contorna os perigos como se eles fossem urticária e tenta garantir, a qualquer custo, o sucesso de uma empreitada crente que está, assim, "garantindo a própria aventura". Como dizia o grande montanhista e explorador britânico H. W. “Bill” Tilman: “Qualquer expedição de valor pode ser planejada no verso de um envelope...”. Aventura é uma coisa simples.

    Quando decidi fazer a Serra Fina de mountain bike — essa que é considerada “a travessia em trekking mais difícil do Brasil” — meu objetivo era simplesmente “arriscar”, "correr perigos" e "ver no que a roubada daria". Então, pelo menos segundo o Aurélio, aquilo seria uma “aventura”. Marquei uma data na agenda, juntei o equipamento que dispunha e saí pra estrada sem pensar muito à respeito. Uma atitude prática que o próprio Bill Tilman — escalador pioneiro do Monte Everest na década de 1930, adepto a velejar até a Patagônia para escalar montanhas pouco acessíveis e que cruzou a África, de sul a norte, numa velha bicicleta —, com certeza aprovaria.

    Parti de casa, no topo do município de Gonçalves (MG), a 1.585 m de altitude, numa manhã ensolarada de sábado. Era setembro e o frio do inverno já não ardia na pele, mas o sol do verão ainda não chegava a fritar. Clima perfeito para pedalar, embora eu ainda não tenha conhecido clima que iniba ciclistas de montar em bicicletas...

    Eu viajava numa mountain bike simples, de quadro de alumínio e de suspensão dianteira apenas, com pneus grossos, mais grossos do que o costumeiro. Uma bike que, providencialmente, se assemelhava mais a um trator. Eu não tinha dúvidas que estava diante de um daqueles desafios e tendem a permanecer como desafios mesmo depois de terminados. A questão essencial era: o quanto eu aprenderia com a experiência. Na minha cabeça, tudo se resumia a chegar até onde desse, já que havia poucas dúvidas de que eu abriria o bico mais cedo ou mais tarde na travessia.

    Toda minha bagagem — que incluía alguma roupa, comida para quatro dias, acampamento completo, ferramentas de mecânica de emergência e material fotográfico e de filmagem —, viajava bem apertada em bolsas estanques alinhadas com o quadro da bike. Tudo ultraleve e supercompacto, em concordância com o estilo bikepacking de cicloturismo — uma técnica que eu desejava colocar à prova. Viajava comigo, de motocicleta, meu amigo Cauê Steinberg, diretor de cinema e meu parceiro no premiado documentário Transpatagônia. A ideia era filmar a roubada a tentar produzir outro documentário, provavelmente uma comédia, que já tinha até título: Serra Fina, Perna Grossa.

    O primeiro dia da aventura começou depois de um lento e portentoso café da manhã de fazenda, com ovos caipira, coalhada caseira, pão caseiro, queijo fresco, granola feita em casa e muito café. Uma daquelas refeições de pede cama — e não bike — quando terminada. Em seguida, com o bucho estufado, despencamos o Serrano, uma baita montanha que conecta o bairro do Campestre, onde moro, à cidadezinha de São Bento do Sapucaí (SP), a 14 km de distância e 600 m abaixo da porta da minha casa. Nessas ladeiras vertiginosas, a mountain bike equipada com bolsas de bikepacking está em casa e desci como se não carregasse bagagem alguma. Não deu nem pra suar a camiseta, mas paramos mesmo assim para um café espresso no centro. Vício é vício.

    Na sequência, subimos margeando o Rio do Baú por uma estradinha de terra quase sem movimento de veículos motorizados, com a imponente Pedra do Baú servindo de guia, até o bairro do Campista, já em Campos do Jordão (SP). Uma subida longa e íngreme que exige mais paciência do que força. Dessas que dá pra pensar na vida enquanto pedalamos, fazer planos para os próximos vinte anos e escrever novelas na cabeça. O dia permaneceu ensolarado, seco e quente, com os passarinhos comemorando nossa passagem o tempo todo — ou pelo menos foi o que imaginei.

    Montamos acampamento numa trilha que conheço, um atalho que liga o bairro do Campista ao Bairro do Centro, já no município de Piranguinho (MG). Montamos a barraca com os últimos raios do sol, esquentamos água para nossa polenta com atum e queijo ralado e passamos um bom tempo falando sobre a vida enquanto tomávamos chá de erva cidreira. Essa era a primeira vez que eu viajava como Cauê, embora nossa parceria já durasse anos. A simplicidade de um acampamento selvagem após um deslocamento em trilha, com suas exigências objetivas de conforto básico e sobrevivência, desarmam qualquer um e toda conversa, nessas situações, é clara e franca. As palavras não conseguem esconder o que mente e corpo sentem: cansaço, satisfação, gratidão e otimismo. É inegável o poder, de natureza ancestral, que um simples acampamento tem de aproximar as pessoas.

    No meio da noite fomos acordados por uma gritaria na escuridão. Três moradores locais apareceram, completamente bêbados e ruidosamente encantados com nosso acampamento no caminho deles. Fiquei assustado, mas logo entendi que a situação não oferecia grandes riscos, a não ser talvez que um dos bebuns tropeçasse e caísse em cima da nossa barraca, quebrando varetas e costelas. Abri o zíper da porta e fui obrigado a apertar as mãos de cada um deles, que insistiam em que bebêssemos um trago na casa deles, a poucos quilômetros dali. Eles só foram embora depois que prometemos tomar café com eles depois que o sol nascesse.

    No segundo dia — depois de visitar nossos amigos da madrugada, todos incapacitados pela ressaca, e beber café fraco, morno e absurdamente açucarado —, pedalei até a fábrica de água mineral da Minalba, de onde uma estrada de terra desce a serra de Campos do Jordão até o asfalto de Wenceslau Brás (MG). A descida foi longa e nervosa, acompanhando o sinuoso Rio Sapucaí, que fiz mais rápido do que a moto do Cauê. Nos trechos mais planos, eu esperava que ele me alcançasse, deixava que ele me ultrapassasse e esperava que ele se posicionasse em algum lugar estratégico para filmar. Meu companheiro levava vários quilos de equipamento, inclusive uma câmera profissional do tamanho de uma caixa de sapatos e um tripé robusto. Todo o tempo eu imaginava como seria quando chegássemos à Serra Fina e ele tivesse que carregar tudo aquilo, mais toda a tralha de acampamento, numa mochila. Mas nem dava tempo de sentir pena dele, eu teria que dar um jeito de carregar a bicicleta montanha acima...

    No pé da serra paramos num bar na esquina do asfalto. Fazia calor e ataquei a geladeira horizontal de sorvetes sem pudor ou piedade. Acho que devorei meia dúzia de picolés de milho verde chupando os palitos de madeira até que eles colassem na língua. A partir desse ponto, eu tinha dúvidas de como chegar até o município de Delfim Moreira (MG) sem pedalar pelo asfalto. Todas minhas pesquisas, no Google Earth e nas velhas cartas topográficas do IBGE, haviam terminado inconclusivas. Os três clientes do bar fizeram uma conferência, em torno de garrafas de cerveja que nunca ficavam vazias, e discutiram que caminho deveríamos tomar. Todos indicaram o asfalto como “a melhor alternativa” e não havia argumento que os convencesse do contrário. Um deles até sugeriu que eu pegasse carona para “não ter que pedalar morro acima”. Viajar de bicicleta, para eles, fazia tanto sentido quando cerveja quente.

    Cerca de 4 km adiante, na rodovia, reconheci o pináculo de uma capela do lado oposto da pista — uma igrejinha que eu havia fotografado nove anos antes e publicado num livro com o mapeamento que fiz de toda a Serra da Mantiqueira para mountain bike. O dia estava salvo! Imediatamente lembrei de todo o trajeto por terra até Delfim Moreira, cortando vilas e fazendas. Revivi, mentalmente, cada metro do caminho e senti novamente o cansaço e o calor de anos atrás. Era como um filme ultrarrealista com sensações vívidas de tato, olfato e paladar. A subida seria dura e longa.

    Chegamos a Delfim Moreira perto do fim do dia e decidimos acampar às margens do Rio Antônio, que cruza a cidadezinha. Encontramos uma clareira, perto da estradinha de terra, com uma linda cachoeira formando uma pequena piscina natural. Lugar perfeito para um banho refrescante depois de um longo dia quente e empoeirado, um cantinho ideal para uma boa noite de sono. Mas bastou nos aproximarmos um pouco d’água para que a decepção nos abatesse como uma tonelada sobre os ombros: o rio era o esgoto do município.

    — Que merda! — foi meu único comentário e sem dúvida o mais apropriado.

    No acampamento da noite anterior havia sido o mesmo, o Rio Sapucaí, nosso vizinho na barraca, cheirava igual a um banheiro público e suas águas eram turvas. O esgoto de Campos do Jordão desaguava no rio. Pedalei os quilômetros restantes até Delfim Moreira enfurecido e mentalmente esbravejando comigo mesmo sobre esse descaso geral com o patrimônio natural. Nós estávamos numa região de preservação ambiental, com forte vocação turística, fonte das nascentes que abastecem boa parte dos estados de São Paulo e Minas Gerais, dois dos estados mais ricos da união! Se nós, brasileiros, não temos competência nem para dar um fim adequado às nossas fezes, que competência nos resta? Ainda bufando, paramos numa simpática mercearia para pedir indicação de onde acampar, preferencialmente onde o rio não estivesse poluído. Aproveitamos para tomar café espresso e comer bolo de tapioca. Os clientes do local sugeriram que parássemos na Fazenda Brumado de Baixo, de propriedade de um tal de Paulo Alves.

    — O Paulo vai acolher vocês, com certeza!

    Subimos um trecho de serra, pelo as asfalto que conecta Delfim Moreira à cidade de Marmelópolis, já com o sol se pondo e chegamos à porteira fechada da fazenda com os últimos raios de luz natural. Entramos sem permissão e atentos para cachorros que pudessem nos atacar. Chegamos a uma casa grande e simples cercada de grama e todo tipo de bicho: cavalos, vacas, cachorros, galinhas, patos, marrecos e gansos. Um senhor septuagenário, ativo e sorridente, nos recebeu como se fôssemos velhos amigos. Quando perguntamos se poderíamos acampar no seu quintal, ele ofereceu um quarto de hóspedes. Agradecemos mas recusamos, queríamos acampar.

    — Armem suas barracas onde vocês quiserem — ele disse e varreu o ar com um largo gesto de mão.

    Nosso anfitrião nos mostrou o banheiro, onde poderíamos usar o chuveiro elétrico, e abriu panelas que descansavam sobre o fogão. Temos arroz com brócolis e feijão para o jantar, disse ele. Abri a tampa do feijão e senti um forte cheiro de alho. Delicioso. Identifiquei pedaços de bacon. Perfeito! Lembrei que tínhamos linguiça de paio na bagagem e sugeri engrossarmos o feijão com ela. Ninguém se manifestou em contra.

    Não existe banho melhor do que aquele inesperado. Nem jantar mais saboroso que aquele de improviso e que chega junto com a fome. Depois de comer, jogamos uma partida de buraco com Paulo Alves, que não teve piedade do nosso cansaço e sono e ganhou todas as mãos, radiante pela companhia numa noite solitária. Quando fui para a barraca dormir, descobri que uma galinha havia feito um baita buraco no mosquiteiro da porta, provavelmente por conta de algum inseto que estava ali. Tapei o furo com silvertape lembrando por quantas aventuras aquela barraquinha e eu já havíamos passado juntos, incólume até então... Meia dúzia de viagens pela Patagônia, duas dúzias de acampamentos na Mantiqueira, duas expedições pelas Highlands da Escócia... Eu remendaria aquela tela assim que pudesse e minha casinha de nylon continuaria a me abrigar por ainda muito tempo, prometi a mim mesmo antes de desfalecer.

    Nosso terceiro e último dia de cicloturismo nos levou pelo município de Marmelópolis, pelas bases do Pico dos Marins (2.420 m) e do Pico Itaguaré (2.308 m) — 16ª e 18ª montanhas mais altas do Brasil, respectivamente — e por uma das estradas de terra mais bonitas e elevadas que conheço, até ficarmos de frente com a imensidão da Serra Fina. Dava medo só de imaginar que eu tentaria transpor aquela crista recortada com uma bicicleta. Um medo bom. Descemos por cerca de 650 m verticais, em 9 km, até o município de Passa Quatro (MG), no fundo do vale. Soltei o freio. Não conheço muitas outras situações em que minha atenção é exigida de forma tão concentrada quanto descendo uma montanha numa mountain bike carregada a mais de 60 km/h. Frear para fazer curvas fechadas, desviar de valetas e pedras grandes, saltar raízes e buracos menores ativam os sentidos a um grau quase sobrenatural. Inúmeras vezes, em diversas outras descidas semelhantes, pressenti a chegada de um carro ou moto, a presença de um cachorro, a instabilidade de uma pinguela e até problemas mecânicos na bicicleta muito antes de tudo isso aparecer ou acontecer. Não sou místico e confesso não ter muita paciência pra tudo aquilo que é chamado de “oculto”. Acho mesmo que já existem mistérios suficientes naquilo que está visível. Mas, numa mountain bike montanha abaixo, sinto que entro em contato com um lado mais etéreo e sutil dos meus sentidos e coisas inexplicáveis acontecem. Nessa descida não foi diferente.

    Bem antes do centro de Passa Quatro, pegamos uma estrada de terra que subia até o ponto de início da travessia da Serra Fina. Num boteco de esquina, paramos para nos hidratar e o bêbado de plantão perguntou aonde íamos.

    — Ele vai pedalar a Serra Fina — respondeu Cauê, apontando pra mim.

    O caboclo me mediu com os olhos de cima a baixo, como se estudasse a compra de uma mula ou uma vaca leiteira.

    — Você acha que ele dá conta? — perguntou o Cauê.

    Sem responder, o sujeito mudou de assunto, acho que comentou alguma coisa sobre o clima, a falta de chuva ou algo do gênero. E eu me senti um pangaré destinado a virar sabão.

    Não foi fácil pedalar até o Refúgio Serra Fina, a subida e os buracos na estrada não pareciam ter limite ou fim. A ideia era passarmos duas noites no confortável lodge nos recuperando e preparando tudo para a travessia. Nos três dias de cicloturismo que completei, percorri 166 km com cerca de 24 kg de bagagem na bike, subindo e descendo as montanhas da Mantiqueira, totalmente independente e autossuficiente. A primeira fase do projeto estava terminada.

    Do Refúgio Serra Fina, consegui pedalar cerca de 1,7 km até a Toca do Lobo, uma gruta seca que marca o início da travessia. Minha expectativa era alta. Não saio de casa para fracassar em nenhuma expedição, sempre tenho objetivos claros e destinos definidos, mas minha noção de sucesso é peculiar. Meu compromisso está sempre focado no esforço e não no resultado. Sucesso é mais um sentimento do que um produto. As dificuldades do terreno logo se mostraram exigentes e comecei a empurrar a bicicleta. Eu sabia que a escassez de água era um assunto sério e enchemos todos os reservatórios de água que tínhamos no rio que corre ao lado da Toca do Lobo: 14 litros. Teoricamente, mais do que suficiente para duas pessoas até o próximo ponto de reabastecimento. Sozinho, eu normalmente levaria 4 litros.

    Conforme subíamos a montanha, a mata foi ficando mais densa, a inclinação mais acentuada e o terreno mais irregular. Não demorou e eu já não conseguia caminhar ao lado da bike na trilha, que era estreita até para uma pessoa. Em momentos eu andava de lado, meio passo por vez, usando a bicicleta como se fosse um andador. Outras vezes eu caminhava de costas e puxava a bicicleta, com as rodas no solo. Os pedais enroscavam nas minhas pernas, em laços de cipós ou raízes expostas de árvores, o guidão largo não passava nas curvas na vegetação. Era difícil encontrar onde encaixar para o próximo passo. Cada metro era um exercício de estratégia e paciência e, às vezes, uma luta de jiu-jitsu. Eu tentava poupar energia e fazer o mínimo de força possível, já antecipando o trecho acima da vegetação, quando a montanha ficasse árida e pedregosa, cheia de degraus altos, quando eu não teria outra alternativa a não ser carregar a bike nos braços.

    Cauê seguia na minha frente, com uma mochila enorme e superpesada, sem pressa, com tempo de sobra para parar e filmar meu lento avanço. Mas as coisas não estavam fáceis para ele tampouco. A filmadora tinha que ser levada todo o tempo numa das mãos, tomando cuidado para não bater o equipamento nas pedras, não sujar no pó fino do solo, não resvalar na vegetação. Com apenas uma das mãos livres, seu equilíbrio estava sempre comprometido e qualquer movimento era lento e estudado. Eu suava em cataratas. Quando parava para tomar fôlego, limpar um pouco do suor do rosto ou beber água, via meu companheiro empoleirado em algum terraço precário, gravando atento meu vagaroso progresso. Momentos em que eu conseguia esquecer um pouco minha situação e tentava imaginar como ele estava se sentindo. Pensar nas dificuldades alheias ajuda a não supervalorizar nossas próprias dificuldades.

    Saímos finalmente da zona de vegetação e entramos no semiárido de altitude da montanha. A trilha seguia o linha de uma crista afilada que dá nome à travessia. Minha expectativa era conseguir pedalar um pouco nesse trecho, mas essa ilusão logo se desfez. Pedras soltas, muita areia e degraus altos demais impediam que eu permanecesse mais de 3 m sobre a bicicleta. Um deslize e eu poderia despencar dezenas de metros. Nessa altura também fomos ultrapassados por um grupo de guias de montanha, gente que carregava mochilas enormes com material de acampamento e comida para os turistas que começariam a travessia no dia seguinte. Discretos, nenhum dos guias quis demonstrar muita surpresa ao ver um ciclista na trilha, mas seus olhares diziam tudo. Os caras deviam me achar demente.

    Paramos vinte minutos para comer uma bobagem perto da Água Amarela, uma pequena queda d’água quase invisível da trilha, e o último ponto de abastecimento antes do Pico do Capim Amarelo, local tradicional de acampamento no primeiro dia da travessia. Aqui cometi um erro estratégico. Demoramos mais de seis horas para chegar até aquele lugar, que normalmente toma menos de duas horas de um caminhante regular. Eu devia ter checado nosso estoque de água e reabastecido ali, mas eu estava tão cansado que a única coisa na minha cabeça era o mantra que eu via entoando sem sessar, que dizia: “preciso tirar peso dessa bike, preciso tirar peso dessa bike, preciso tirar...”. Acrescentar alguns quilos estava fora de cogitação. Um erro que custaria caro.

    A rotina de empurra a bike, puxa a bike, carrega a bike e xinga a bike continuou pelo resto do dia sem grandes alterações. Em trechos especialmente estreitos ou íngremes eu pensava em desmontar a bicicleta, amarrar rodas e quadro à mochila e seguir caminhando, mas eu sabia que a trilha não permitiria meu deslocamento com esse volume nas costas. Chegamos a uma grande erosão na mata onde pedaços de cordas estavam amarradas às árvores para ajudar na ascensão. O dia estava terminando.

    Se o progresso com a bike estava tão difícil com luz natural, de lanterna na cabeça tudo ficaria ainda pior. Era hora de definir novas estratégias. Chamei o Cauê, que estava próximo e já tinha desistido de filmar por falta de luz, e discutimos rapidamente a situação. Apesar da proposta inicial era de que ele não me ajudaria de forma alguma na viagem, apenas retraria a expedição, decidi que era hora de pedir penico. Tirei todas as bolsas de bagagem da bicicleta e abandonei a magrela num canto da trilha. Carreguei tudo até o ombro do Capim Amarelo, um acampamento de emergência logo antes do pico. O lugar estava vazio. Deixei a bagagem e desci com o Cauê, sem mochila também, para içar a bicicleta pela sequência de cordas na erosão. Em dois, o trabalho foi difícil. Sozinho teria sido insano.

    Com a barraca montada, quase 8h da noite e depois de mais de 12 horas de esforço com apenas uma parada de 20 minutos, fizemos um levantamento da água que tínhamos e fiquei estarrecido. Dos 14 litros iniciais restavam apenas 4 litros! Eu havia consumido todos 7 dos 8 litros que levara comigo! Não tínhamos o suficiente para jantar, tomar café da manhã e seguir na travessia até o próximo ponto de reabastecimento. Voltar até a Água Amarela naquele momento parecia impossível, eu simplesmente não tinha forças para isso.

    Jantamos em silêncio. Exaustos, vimos a lua quase cheia subir do pé da montanha como a luz de uma lanterna gigante. Eu sentia os músculos do pescoço, das costas, dos ombros e dos braços mais cansados do que as pernas — o que era estranho para um ciclista, para dizer o mínimo. Comecei a fazer cálculos em voz alta, para instruir o Cauê sobre nossa situação... Eu normalmente levo 3 horas para subir os 900 m verticais e caminhar os 6 km até o Pico do Capim Amarelo, que hoje levei 12 horas. O trecho seguinte, de 10 km até a Pedra da Mina, mantendo essa proporção, vai demorar cerca de 20 horas, ou seja, dois dias! Com água só perto do final da jornada... Depois seriam mais dois dias no mesmo ritmo até o Pico dos Três Estados, com muita escassez de água e uma área sinistra de mato muito alto e trilhas muito estreitas, um labirinto que não imagino como passar com a bicicleta... Em seguida, um longo dia de descida acidentada, de talvez 14 horas e grandes riscos de acidentes, até um ponto em que vou consegui começar a pedalar... De lá, mais algumas horas até a cidade de Itamonte e o fim da brincadeira... Resumindo, uma semana de Serra Fina!

    Ficamos alguns minutos em silêncio, meditando sobre as possibilidades.

    Lembrei de uma frase do bem-sucedido e amaldiçoado ciclista norte-americano Lance Armstrong, uma bobagem que todo mundo gostava de repetir quando o atleta estava em alta: “a dor é passageira, desistir é para sempre”. Nunca gostei da mensagem que essa frase propõe. Nunca acreditei que desistir é sinônimo de fracasso. Não é tão simples assim. Esse culto ao sucesso soa mais burro do que sensato e, mesmo antes de virar vilão, Armstrong nunca foi meu herói.

    — Acho melhor a gente voltar daqui — sugeri enquanto a luz da lua delineava nosso com nitidez fantasmagórica acampamento. Tudo tão lindo que a palavra “fracasso” não fazia o menor sentido.

    Não havia, de fato, do que me arrepender. Eu havia saído de casa de bicicleta, percorrido diversas montanhas da Serra da Mantiqueira de forma autossuficiente, com apenas a força do meu corpo, e chegado quase ao topo de uma montanha bem alta sem perder o bom-humor. As luzes das cidadezinhas lá embaixo confirmavam o esforço. Minhas canelas estavam arranhadas, batidas, lanhadas e doloridas de não sei quantos impactos contra os pedais da bike, contra galhos e contra o capim afiado. Os músculos das minhas costas sofriam espasmos de exaustão. Por mais que eu bebesse água, a sede simplesmente não passava. Uma dor estranha no joelho esquerdo prenunciava uma lesão. Não fazia sentido seguir adiante. Mas, por outro lado, aqueles sinais diziam claramente que eu havia dado tudo de mim e havia lutado limpo. Fui dormir tranquilo.

    Na manhã seguinte, desmontamos o acampamento sem pressa e começamos a maratona de descida, que embora menos desgastante tampouco foi fácil. Não demorou e começamos a cruzar com os montanhistas que iniciavam a travessia. A surpresa deles ao ver uma bicicleta tão alto na montanha era impagável, quase cômica. Fui chamado de “louco” e “herói” inúmeras vezes, embora não me sentisse nem um, nem o outro. Na lenta caminhada, fui tecendo minhas considerações finais...

    A travessia da Serra Fina nunca foi idealizada para mountain bikes e nunca será apropriada para esse esporte. Se a região fosse um parque estadual ou nacional, bicicletas provavelmente seriam proibidas para que não ocorressem atropelamentos de caminhantes e também para minimizar o inevitável impacto ambiental. Torço muito para que a Serra Fina vire logo um parque e seja, a partir daí, melhor preservada e que ganhe regras de uso mais claras. Enquanto isso, o convívio entre diferentes aventureiros terá que ser regrado pelo bom-senso e o espírito democrático. O projeto Serra Fina, Perna Grossa não fracassou e o documentário será produzido de qualquer jeito. Como em toda aventura de verdade, houve risco, perigo e sua decorrência foi absolutamente incerta todo o tempo. Não faltou ousadia tampouco, nem faltou aprendizado. Se um dia eu tentar o percurso de novo, farei muita coisa diferente.

    Olhando pra trás e relembrando a experiência, só consigo concluir uma coisa e oferecer uma única justificativa para essa ideia maluca: pouco importa o resultado final, ficar em casa simplesmente não é opção.

    Guilherme Cavallari
    Guilherme Cavallari

    Publicado em 24/07/2018 09:59

    Realizada de 02/09/2017 até 07/09/2017

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    11 Comentários
    Fatima Oliveira 28/07/2018 21:56

    Parabéns.

    André Reina 01/08/2018 07:17

    Mais um relato incrível,parabéns pela experiência vivida .

    Getulio Vogetta 03/08/2018 13:28

    Incrível seu relato, como sempre. Parabéns!

    Divanei Goes de Paula 07/08/2018 09:39

    Um dia alguém soprou no meu ouvido fazer a Serra Fina de bicicleta, logo eu que sou um prego encima de uma. Achei a ideia uma estupidez, mas depois fiquei pensando: se é uma estupidez, então vale a pena mesmo tentar, afinal de contas passei parte de minha vida me entregando a projeto ditos por muitos como insanos e estúpidos e depois de realiza-los, aquilo que em um certo momento parecia mesmo o cúmulo da estupidez, tornou-se um grande feito, com paisagens incríveis que vieram a tona e pularam do mundo imaginário para o mundo real. Ainda continuo achando essa travessia da Serra Fina de bicicleta sem sentido, muito porque não sou um adepto contumaz do esporte, mas a aventura é pra quem vive e não pra quem olha e critica e se o aventureiro encontra satisfação naquilo que faz, então a AVENTURA VALEU A PENA. Parabéns por ter ousado tentar.

    Milene M Ricardo 15/08/2018 21:50

    Adoooro seus perregues!! Rss

    Perrengue garantido! Capim Amarelo de bike é para os brutos!!! Kkkkkkkk...

    Juan 16/08/2018 23:23

    Sensacional. Aguardando o documentário.

    Bruno Negreiros 19/03/2020 12:00

    Adorei esse trecho: "Viajar de bicicleta, para eles, fazia tanto sentido quando cerveja quente. " hahhaahhahahahahaha

    Guilherme Cavallari

    Guilherme Cavallari

    Gonçalves - MG

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    Fundou e dirige a KALAPALO EDITORA desde 2001, produz e distribui conteúdo sobre aventura, com ênfase em mountain bike e trekking. Vive em Gonçalves (MG), no REFÚGIO KALAPALO.

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