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Havíamos acabado de chegar de uma semana em completa desconexão com o mundo (relato feito no post “Bolívia (parte 1) – Laguna Chiar Khota e adjacências”) e precisávamos ser velozes com o planejamento do restante da programação. Jeferson trocou a bota plástica alugada que lhe machucou por uma bota dupla e deixei minha barraca na loja para uma avaliação. Passamos na agência de passeios que havíamos contratado (Blue Wings) para nos levarmos à laguna para acertarmos transporte, guia e refeição para o Huayna Potosi. Jeferson sugeriu que incluíssemos um guia, pois a diferença de valor seria pouca. Esta decisão se provou muito acertada. Também conseguimos incluir o transporte de uma mochila cargueira sem custo extra, pois já planejávamos reunir nossos equipamentos em apenas minha cargueira, por ser maior, além de levarmos nossas mochilas de ataque.
Dois dias depois, em 10 de agosto de 2023, deixamos vários pertences no maleiro do hotel sem nenhum custo e às 9 horas estávamos prontos para a partida. A van chegou e um simpático senhor desceu para nos ajudar com a cargueira e se apresentou com o nome de Santos.
Pouco depois de deixarmos o hotel, Santos virou pra trás e falou que havia aprendido muitos palavrões com brasileiros!!!
- P#r%&, c*r&l@#
E começou a rir que nem doido, o que nos fez dar gargalhadas, além do motorista. Uma figura!!! Fiquei na dúvida se ele seria nosso guia ou se seria cozinheiro, pois ele falou que iria parar durante a viagem para comprar nosso almoço. Talvez o guia fosse embarcar no caminho. A imagem que eu tinha de um guia dos Andes era a de um cara sério, concentrado! Santos não havia se identificado até então como guia.
Paramos em El Alto para que nosso almoço fosse comprado. Havia mais cachorros nas ruas do que pessoas. Logo que voltamos ao percurso, deixamos a cidade para trás e a paisagem era árida, mas belíssima.
Só a aproximação para a base do Huayna Potosi já revelou incríveis paisagens.
O Huayna cada vez mais se agigantava até chegarmos a uma barreira em que precisamos pagar nossa entrada. Havíamos sido avisados na agência de que no preço do nosso passeio não estava incluída a entrada.
Do caminho de acesso, já era possível se ter uma noção do grandioso tamanho do Huayna.
Chegamos ao acampamento base, a 4.800 metros de altitude, por volta de meio-dia. Como havíamos escolhido a opção de dois dias, apostando na aclimatação prévia, Santos pediu para seguirmos direto para o refeitório. Iríamos subir até o acampamento avançado para o pernoite. Outra opção muito comum é a de três dias, em que no primeiro dia o pernoite é feito na base e há normalmente um treinamento em um glaciar próximo.
A parte mais baixa do glaciar era usada para treinamento para aqueles subindo a montanha em 3 dias.
Havia dois grandes grupos de europeus. Dois jovens alemães sentaram-se a nossa mesa. Começamos a conversar. Eles subiriam em três dias e estavam no primeiro dia deles também.
Como nenhuma outra pessoa se identificou que iria trabalhar conosco na ascensão, ficou claro ao ver Santos separando alguns equipamentos que ele seria nosso guia de fato, além do carregador da cargueira. Iniciamos a subida por volta de duas da tarde. O trecho inicial não era íngreme, mas cerca de meia-hora depois, a inclinação aumentou. Não éramos os únicos subindo e nos juntamos a dois outros grupos, composto por canadenses, franceses e israelenses. Parece ser uma prática comum os guias juntarem os grupos e adotarem atribuições específicas entre eles. Um na dianteira, outro fechando a fila. Outro eventualmente fica pra trás assistindo alguém em dificuldades. E foi o caso no nosso grupo com um turista canadense. Visivelmente, ele não estava aclimatado, pois já nos metros iniciais, começou a parar em demasia. Pouco tempo depois ele começou a gemer, literalmente. Sua agonia era perceptível.
Formamos três grupos que se espalharam durante a subida. Na foto, ainda estávamos nos metros iniciais.
Invertendo a visão da foto anterior, a grande muralha escura seria vencida antes de alcançarmos o acampamento base avançado no limite com o glaciar.
E a inclinação só foi aumentando até que chegou um trecho em zig-zag com degraus. O ritmo era lento, mas constante e sem maiores problemas fisiológicos por causa da altitude. Já era possível avistar algumas construções que indicavam os abrigos do acampamento avançado. Entretanto, apesar da aparente proximidade, ainda havia um desnível de uns duzentos metros.
Com um total de duas horas de subida, alcançamos o primeiro abrigo. Entretanto, o nosso seria o mais avançado, quase no início do glaciar, o que nos exigiria mais quinze minutos de subida. Nesta primeira etapa não houve gelo ou neve a ser percorrido. Mas logo que saíssemos para a arrancada final na madrugada seguinte, iríamos encarar o gelo.
O primeiro alojamento do acampamento base avançado. Ainda subiríamos alguns metros mais. Observar no canto superior direito da foto mais alguns alojamentos.
Logo que chegamos ao nosso abrigo, a 5.200 metros, fomos levados ao dormitório para deixarmos nossas mochilas em um beliche a nossa escolha. O recinto estava uma estufa, pois o telhado era de chapa de zinco e a insolação era intensa. Coisas da alta montanha.
Como nossa fisiologia é incrível. Cinco dias antes, nesta mesma altitude no glaciar Tarija, eu caminhava com dificuldades. Agora, tudo era mais fácil. Mas credito em boa parte esta transformação à descida até La Paz.
Serviram pipoca, chá e café. Logo depois veio o jantar. Já passava das cinco da tarde e tudo estava adiantado para dormirmos cedo (ou tentar). À meia-noite estaríamos de pé novamente. Um dos guias nos passou algumas instruções sobre o ritmo da madrugada, horários de saída e possível retorno, sobre o que levar.
Após o jantar, adiantei o que podia ser feito com iluminação natural, me vesti com as primeiras camadas que iria usar na montanha. Separei a ferragem. O banheiro era do lado de fora do abrigo e fui escovar os dentes quando já era praticamente noite. Parece que ligaram um freezer no local. A temperatura caía vertiginosamente.
Sem mais o que fazer, o pessoal começou a se acomodar nos sacos de dormir nos beliches e o silêncio foi se tornando maior. Era sete da noite.
Nove da noite. Acordado! Meu Deus, como se inibe a adrenalina? E assim, fiquei até a hora de levantar. O processo inverso foi ocorrendo. O barulho gradativamente aumentando e criei coragem para deixar o saco de dormir.
Serviram chá, biscoitos e bolo. Sairíamos à uma da madruga, mas quando todos estiveram reunidos, já passava uns vinte minutos quando deixamos o abrigo e o frio começou seu castigo. Mais dez minutos e estávamos no limite da rocha com o glaciar. Não só o grupo do nosso abrigo, mas dos demais, chegavam em momentos próximos. Uns mais adiantados já serpenteavam com suas lanternas de cabeça glaciar acima. Outros ainda se aproximavam do glaciar. Calçamos os grampões e começamos nossa jornada. Santos à frete, Jeferson e eu fechando a fila, unidos por uma corda e separados por uns três metros.
Começamos em uma rampa de gelo com uma inclinação de cerca de 40°. Depois que se ajusta os movimentos do corpo e se adquire ritmo constante, não há muito mistério. Outra arte é saber ajustar a quantidade de roupa que se usa à troca térmica com o ambiente, que está diretamente condicionada ao ritmo de uma ascensão. Na dúvida por mais agasalhos, eu havia comprado em uma feira de rua em La Paz um agasalho de fleece pelo equivalente a R$52,00. E eu suava em bicas agora!!!
Vencida a primeira rampa, a inclinação diminuiu, mas uma rápida olhada adiante mostrou que não seria assim em breve. Contornamos uma parede de gelo com algumas cavidades monstruosas capazes de engolir um ônibus, gretas fantasmagóricas em meio a estreitas passagens na neve. O gelo foi dando lugar à neve, mas felizmente não era fofa. Eu não usava polainas. As minhas eram antigas, de velcro e não envolviam completamente minhas pernas, considerada a espessura de calças que eu usava. Também comprei uma ótima calça em La Paz que certamente saiu por menos da metade do preço de uma de qualidade inferior no Brasil.
Após uma hora, fizemos uma pausa para um breve descanso e beber água. Não era bom ficar muito tempo parado. A parede de gelo estava próxima. E Santos mais uma vez:
- P%r##, c@r*l$%
E começava a pular na neve e a dançar!
O pior é que outros guias o acompanharam nos palavrões. Isso às duas e meia da manhã!
Retomamos o passo e chegou o momento de encarar a parede. Mas felizmente havia um trilho que formava uma canaleta em um curto zig-zag, o que evitava encararmos a inclinação de frente. De qualquer forma, o piolet era fundamental para proteção e equilíbrio. O gelo também não era duro, o que permitia bons pontos para cravar o piolet.
Vencido este trecho de uns quarenta metros de altura, o terreno voltou a suavizar e fizemos uma rápida parada para recobrar o fôlego. Seguimos em um passo constante, ainda que lento. Olhando acima e adiante, algumas luzes de lanterna eram tão pequenas que se confundiam com as estrelas. Ainda havia muito a subir. Por falar em estrelas, o céu era espetacular e por uns dois momentos em que olhei para o infinito fui agraciado com a visão de estrelas cadentes. Para regiões finitas ao norte, talvez para os confins da Amazônia, alguns clarões indicavam relâmpagos. Mais próximo, a iluminação de parte de El Alto formava um imenso tapete de nuvens.
Por volta de quatro e meia da manhã, Santos nos informou que estávamos a uma altitude de 5.700 metros e que teríamos cerca de uma hora e meia até o cume. Eu estava me aproximando do meu recorde pessoal de altitude, alcançado no Kilimanjaro em 2011, ainda que um tanto fatigado, mas sem reações adversas da altitude.
Uma longa reta de neve nos levou ao setor em que havia uma grande pirâmide e que, sem eu perceber até então, conduziria ao cume. Fizemos mais uma parada. Eu mal sabia que agora realmente começaria a agressão e a confirmação de minha teoria, ainda sem comprovação: “por que, meu Deus, o cume da maior parte das montanhas tem que estar na sua parte mais inclinada?!”
Começamos a arrancada. Preferi me concentrar no imediato a ter que ficar olhando para cima. De nada adiantaria ficar projetando um sofrimento se eu teria que encarar a próxima passada. O terreno ficou mais íngreme e subíamos em zig-zag. Para nos glorificar pelo esforço e nos fortalecer, o horizonte às nossas costas começou a esboçar os primeiros matizes vermelhos, indicando a bem-vinda alvorada.
Não tão distante, observei que havia falhas na neve, indicando rochas escuras. Iríamos andar com grampões em rocha, o que é muito desconfortável. Não dá para ficar tirando e colocando grampões a todo o momento pela alternância entre neve e rocha. Sucessivamente, eu e Jeferson parávamos para recobrarmos o fôlego. Santos seguia no padrão:
- P%r##, c@r*l$%
Às vezes, ele mudava a ordem. E pulava e dançava como se ao nível do mar. Mas confesso que a repetição já havia tirado um pouco a graça e, associado ao cansaço, agora eu queria me concentrar. Possivelmente, eu estava em uma altitude jamais pisada. Na fuga do momento de concentração na próxima pisada, minha ação foi aquela lida no início do primeiro relato: “Vou dar só uma espiadinha. Vou olhar para cima”, pensei. “Nãoooo... não vai dar”, meu desmoralizado pensamento me respondeu!
As luzes das lanternas, agora difusas pela claridade da alvorada, pareciam que estavam no alto de um prédio de cinquenta andares. E que as pessoas faziam aqueles gestos com as mãos indicando que estávamos ferrados!!!
A alvorada revelou uma razão para o que se faz com o coração!
Porém, acima de tudo, éramos determinados. Jeferson demonstrava tenacidade e eu não estava disposto a desistir. Cada passo foi dado no nosso melhor, no controle da respiração e na conversão de uma energia interna em energia física. Não me refiro à energia do metabolismo. Obviamente, esta estava desempenhando seu papel. Mas a uma energia mental, aquela que reúne entes queridos, aquela oriunda das dificuldades vencidas para se chegar e estar ali, aquela que nos conecta ao mundo espiritual e forma-se um fluxo que se direciona a cada músculo das pernas. A passada não parece ser meramente física, mas acompanhada de um estado psíquico em que o corpo é um meio para que a alma atinja seu fim.
O nascer do sol nos revigorou para as passadas restantes.
Após tantas paradas, alternâncias entre rocha e neve, rocha e gelo, o sol despontou no horizonte. Vi uma reunião de pessoas em um ponto em que não havia mais montanha acima. Perguntei a Santos se lá era o cume e ele confirmou. Abaixei a cabeça e chorei, enquanto Jeferson se mantinha silencioso. Mas eu sabia que ele estava em sua vitória pessoal após dificuldades de saúde dos últimos dias.
Metros finais da ascensão. Jeferson a minha frente e Santos adiante. No canto direito da foto, no limite da montanha com o horizonte, está a reunião de montanhistas aguardando para a foto de cume.
Uma última plataforma de gelo nos conduziu ao tão desejado ponto e, às 06:50, estávamos nos 6.088 metros, cume do Huayna Potosi. Meu primeiro seis mil, sensação de orgulho, de identificação com este ambiente, ainda que diante de todas as dificuldades.
Jeferson e eu trocamos um forte abraço da vitória, momento que coroou com êxito nossa jornada boliviana. Em tão pouco tempo, tornou-se um grande amigo, além de ter apresentado de fato o mundo da escalada a mim, então represado por anos. Escaladas que me possibilitaram chegar a locais jamais antes imaginados, mas sempre sonhados.
Após aguardamos por uns momentos na fila pelas fotos no minúsculo cume, gravei alguns vídeos com a ajuda de Santos. Até que chegou nosso momento. Tirei fotos de Jeferson e às 07:10 Santos fazia minha foto de cume, além de minha e Jeferson juntos com a bandeira de nosso centro excursionista. Dei uma rápida espiada do outro lado da montanha, voltado para os picos onde há dias estivéramos. Havia um grotesco penhasco de neve. E o horizonte distante revelava miríades de picos, mais altos, mais baixos, de todos os formatos.
Missão cumprida! Um grande orgulho.
Santos, em um de seus incontáveis cumes. Segundo ele, há meses em que está ali 20 vezes.
A descida foi rápida e revelou detalhes de gretas e bocas de gelo por onde passamos na escuridão. Despencamos 1.200 metros em quatro horas. Antes, porém, fazendo uma pausa no abrigo avançado para reaver os pertences que não levamos para o cume. Preparamos a cargueira e verificamos com Santos se ele podia descer com ela por mais uma grana. Ele não titubeou.
Detalhe de um dos fantasmagóricos e ao mesmo tempo belos cenários gelados não percebidos claramente durante a subida.
O veículo para o retorno já nos aguardava no estacionamento do acampamento base. Às duas da tarde já estávamos no hotel em La Paz. Eu e Jeferson finalmente celebramos o feito com a primeira cerveja da viagem no almoço.
Devolvemos o material alugado e consegui negociar minha barraca. Menos volume e peso para o retorno ao Brasil, além de me livrar de aborrecimentos futuros. La Paz agora parecia estar ao nível do mar! Andávamos apressadamente pelas ruas sem maiores esforços. Agora era só arrumar definitivamente os pertences, incluindo algumas lembranças para familiares e finalizar o dia com mais cervejas!!!
No dia seguinte, o retorno para o Brasil, o avião decolou no amanhecer, revelando a visão que um dia antes eu lutava para vê-la do alto do Huayna Potosi. No conforto de um assento de avião, tudo parecia tão simples, tão indiferente para um corpo relaxado. Mas minha alma ainda celebrava o dia anterior, por eu depender apenas de mim naquele esforço de um corpo em busca da sensação de liberdade.
Excelente relato amigaço. Parabéns mais uma vez!! 👏🏻👏🏻👏🏻
Parabéns mil vezes!! Sou sua fã.
🙌🏼 obrigado mais uma vez. Saiba que a recíproca é verdadeira.