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Marcelo Lemos 11/03/2024 10:17
    Monte Kenya - Rota Burguret (descida)

    Monte Kenya - Rota Burguret (descida)

    Uma rota menos frequentada na segunda montanha mais alta da África. Imersão na história mais fantástica do montanhismo em minha opinião.

    Mountaineering Trekking Climb

    “Rápido. Levante. Venha e veja o Monte Kenya!”

    “Eu levantei finalmente, cambaleei ao dar alguns passos e então o vi: uma montanha etérea emergindo de um agitado mar de nuvens, emoldurada por dois barracões escuros – um pináculo maciço negro-azulado com glaciares azulados incrustados, firme, mas flutuante como uma fada no horizonte próximo. Foi meu primeiro pico de 17.000 pés de altitude que eu tinha visto...

    ... fiquei olhando até que a visão desapareceu entre as nuvens. Por horas após a visão, permaneci enfeitiçado. Eu estava definitivamente apaixonado”.

    Atendendo ao chamado do seu companheiro de quarto, aquela visão sublime na noite clara do dia 13 de maio de 1942 mudaria a vida de Felice Benuzzi. Ele havia encontrado finalmente um motivo para sair do nível da fisiologia, como havia definido, ou seja, sair de uma vida vegetativa em um acampamento de prisioneiros de guerra.

    A Itália havia sido dominada pela Inglaterra na Etiópia no teatro de operações da segunda guerra mundial e os prisioneiros italianos foram enviados aos acampamentos de guerra. Um destes prisioneiros era Felice. Depois de uma passagem em um daqueles acampamentos, ele finalmente foi transferido ao campo de prisioneiros n° 354, na cidade de Nanyuki, ao pé da porção noroeste do Monte Kenya. Naquela época, o Quênia não havia conquistado sua independência, sendo uma colônia inglesa.

    Remoendo aquela visão, Felice observou dias depois:

    “O céu noturno estava claro. Havia um cheiro de terra no ar tal como eu raramente tinha notado na África. Eu estava pensando ‘O futuro existe se você sabe como fazê-lo’ e ‘é com você’, conforme dobrei a esquina do meu barracão no exato local em que eu tinha visto o Monte Kenya pela primeira vez...

    ... Os glaciares brilhavam com misteriosa luminosidade e seu magnífico cume elevava-se contra o céu. Era um desafio. Um pensamento cruzou minha mente entorpecida como um raio”.

    Este pensamento fulminante o colocaria para sempre na história do montanhismo. Uma história que, com quem puder conversar nas minhas duas passagens no Monte Kenya, não havia uma pessoa que não a conhecesse e a admirasse.

    Os desafios para escapar do acampamento e subir a montanha eram enormes. Felice idealizou mais dois companheiros que aceitassem tal insólito empreendimento. E ele conseguiu. Dois companheiros que se tornaram fiéis amigos por toda a vida, Enzo Barsotti e Giovanni Balletto.

    Alegando dor de dente, Felice foi levado ao dentista do acampamento de prisioneiros vizinho na vila de Burguret, a poucos quilômetros de Nanyuki. No trajeto, feito de caminhão, ele rastreou cada metro quadrado buscando um ponto para, após o escape, entrar na floresta.

    A Rota Burguret no Monte Kenya foi estabelecida seguindo aproximadamente os caminhos de Felice, Enzo e Giovanni. Baseado na admiração por esta história e na incansável leitura que se acumula repetidas vezes do livro que Felice produziu três anos depois de sua saga, “No Picnic on Mount Kenya”, decidi traçar esta rota para descida durante meu planejamento de retorno à montanha após John, o mesmo guia de 2019 (o relato está no AventureBox), confirmar que a conhecia, ainda que fosse pouco utilizada.

    Após ter alcançado o cume do Batian a 5.199 metros de altitude no dia 05 de setembro de 2023 (o relato também está no AventureBox), chegamos ao dia da descida. O dia 06 amanheceu com muita ventania, mas limpo. Proporcionava visões distantes a partir do discreto acampamento, chamado Kami. Os irmãos rochosos Sandeyo e Terere dominavam a paisagem logo que abri a porta da barraca.

    Uma visão privilegiada da varanda da barraca.

    Segui com Zack após o café da manhã, o guia-assistente, pois John iria deixar material de escalada guardado no acampamento maior, o Shipton, e logo nos alcançaria. Havia chegado o momento de minha imersão em “No Picnic on Mt. Kenya”!

    É claro que a diferença de oitenta anos entre os momentos vividos por cada um representava muitos contrastes. Eles na condição de fugitivos; andando por rios; transportando uma pesada carga; sem guia. Eu em condição muito mais confortável e mundana, apesar do isolamento.

    Saída do acamapamento Kami, não visível na foto. Está além do limite esquerdo da foto.

    Logo que deixamos o acampamento, passamos por várias lagoas e começamos a ganhar altitude para, no topo do morro, avistarmos os lagos Square e Oblong no vale. A ventania lançava poeira distante e logo despencamos aproveitando a maciez da terra que amortecia nossas passadas aceleradas.

    Lagos Square e Oblong. Iríamos seguir pelo vale.

    No encontro com os rios que vertiam dos lagos, Zack marcou o caminho que iríamos tomar em uma bifurcação para que os demais de nossa equipe seguissem a mesma direção. Este pequeno gesto de Zack imediatamente me fez concluir que eu havia tomada a decisão correta pela sensação de solitude.

    O caminho seguiu discreto por entre rochas até que o terreno se abriu e começamos uma nova, longa e discreta elevação. Sempre-vivas começaram a surgir e musgos semelhantes ao barba de velho aderiam às rochas por todos os lados. Ao me virar para trás, os grandes pilares rochosos estavam assistindo a minha despedida.

    É possível observar a aproximação do grupo de carregadores na porção centro-esquerda da foto.

    Terminada esta nova ascensão, John surgiu e se juntou a nós. Os demais também se aproximavam e passariam por nós como foguetes para preparar o almoço abaixo. Não haveria mais subidas até o término da caminhada no dia seguinte e os primeiros vestígios de búfalos apareceram.

    Os pilares gigantes se despediam de mim.

    O rio Nanyuki seguia no vale à esquerda. Por aquele rio, Felice Benuzzi e seus fiéis amigos subiram, lutaram contra a natureza selvagem eu diria. O que seus olhos não teriam contemplado naquela época? Não suportavam viver em um acampamento de prisioneiros de guerra (ainda que certamente fosse muito melhor, pois o oposto na guerra seria o campo de concentração nazista). Eu compreendo e admiro a decisão deles.

    O rio Nanyuki corre no vale à esquerda do bloco rochoso ao centro da foto, que é o Castel Rock.

    A descida era muito agradável, com suave inclinação, o que ajudava a preservar os joelhos. Estávamos nos aproximando do Castel Rock, uma muralha rochosa de uns cinquenta metros de altura que surgiu em meio à monotonia da descida. Ali faríamos nosso almoço e, até onde eu imaginaria, iríamos passar o pernoite. Felice chegou a considerar pernoitar em uma das cavernas que avistei, mas o rastro de búfalo e a possibilidade do encontro com leopardos afastaram a intenção deles.

    Contornando o Castel Rock.

    O caminho nos arredores do castelo rochoso era praticamente inexistente. Havia uma vegetação rasteira e viçosa em meio ao terreno úmido. Foi assim que percorremos aquele setor até chegarmos à maior caverna para almoçarmos por volta de meio-dia. A caverna deveria possuir uns quinze metros de profundidade e ter aproximadamente três metros de altura no ponto mais alto. Havia uma palha depositada no chão, o que demonstrava ser o local utilizado para montar uma barraca ou mesmo dormir diretamente com saco de dormir. Ninguém comentou sobre visitas ilustres de búfalos ou leopardos!

    O "restaurante". À direita da foto, ainda havia uma seção profunda da caverna que atingia maior altura.

    Após o almoço, aproveitei para me deitar na palha e descansar do almoço. John me perguntou se eu ainda poderia andar mais alguns quilômetros a fim de que, no dia seguinte, terminássemos mais cedo e todos retornariam em boa hora do dia para as suas residências. Concordei sem objeções. Ainda era cedo e poderíamos adiantar a descida.

    Por volta de uma e meia da tarde nos colocamos em caminhada novamente. O dia agora estava nublado, seguindo a tendência do movimento periódico das nuvens na montanha. Alguns trechos do “caminho” estavam bem úmidos.

    Caminho formal praticamente não havia neste trecho.

    Cerca de uma hora depois da retomada, os primeiros bambus surgiram e iríamos passar o restante do dia andando neste extenso cinturão que circunda a montanha em altitudes intermediárias. Uma incrível floresta com muitos labirintos. Espessa em alguns pontos, rala em outros. Os bambus competem com muitas espécies da flora e a diversidade no local diminuiu.

    Não resisti à beleza e precisei parar para fotografá-la.

    Mas havia tantas outras que mereciam ser fotografadas.

    Um trecho da interminável floresta de bambus.

    Erick, um dos carregadores, escorregava frequentemente e China, outro carregador, ria da situação. Sua gargalhada poderia ser ouvida a quilômetros de distância. Eu estava no fim da fila e começava a rir, muito mais pelas risadas estridentes.

    Até que chegou minha vez! Fui chutar um bambu caído que atravessava o caminho. Não imaginava que iria encontrar tamanha resistência. A inércia do meu movimento se encarregou de fazer o restante. Voei de cara no chão. A sorte é que não havia nada pontiagudo e a folhagem seca do bambu amorteceu a queda. Sem mais o que lamentar, acabei rindo loucamente enquanto me levantava. Todos riram também. É o jeito, bem-feito! Quem mandou chutar o bambu? Até que China me poupou de suas gargalhadas.

    Por volta de quatro da tarde, chegamos a uma clareira em que se ouvia o barulho de um rio próximo. Havia vestígios de uma fogueira. Seria ali o nosso local de pernoite. Zack falou que eu poderia tomar banho no rio. Eu levei o assunto um tanto a sério, desejoso que estava por um. Entretanto, acredito que tenha sido brincadeira mesmo, dado o nível baixo das corredeiras e muitas rochas. De qualquer forma, foi ótimo para refrescar pés, cabeça e braços.

    Camping montado, era hora de me preparar para o último pernoite e com várias companhias da fauna!

    Então na floresta, a vida em todas as suas formas fervilhava. Era importante deixar a barraca fechada, dada a quantidade de aranhas andando em seu entorno. Nada de tamanho assustador, mas pra que ser incomodado na madrugada, não é mesmo? O importante foi o aviso de Zack para o pernoite. O hyrax, animal parecido com uma marmota, deixava de se chamar “rock hyrax” nas altas altitudes, quando não fazia barulho, para se chamar “tree hyrax”, quando emitia sons estridentes na madrugada.

    O jantar foi servido antes do anoitecer e Zack preparou uma fogueira para as primeiras horas da noite. Era assim que Felice Benuzzi e seus amigos passavam a noite, sempre um vigiando a fogueira para que não se apagasse a fim de manter as feras fora do alcance. Por vezes, dormiram com roupas ensopadas da inesperada chuva que os banhou.

    Sem nada mais o que fazer com a noite invadindo o ambiente, atualizei meu diário e fui dormir. Lá pelas duas da madruga, acordei com sons fantasmagóricos na floresta. Eram os hyraxes. Sem conhecê-los, Felice os apelidou de they kill the pig. Em uma tradução livre, “os matadores de porcos”. De fato, parece que eram porcos sendo mortos! Zack pode ter falado sobre o hyrax. Mas ele não me falou nada sobre algo rastejante que passou a alguns metros da barraca, nitidamente seguindo transversalmente o caminho. Fazia um som discreto, que diminuiu gradativamente conforme foi desaparecendo na floresta. Imaginem o trio de italianos escutando rugidos que pensaram ser de leopardo (apesar de não terem visto a suposta fera)!?!?

    Obs.: o som que o hyrax emite pode ser ouvido no link abaixo:

    https://www.youtube.com/watch?v=DsiczkOZuFA

    O amanhecer foi substituído pelos sons mais familiares de pássaros. Todos nós estávamos íntegros! Ao sair da barraca, vi que haviam colocado uma lâmpada a bateria para espantar os animais em um local distante 50 metros que eles chamavam de lan-house. Era ali que conseguiam sinal telefônico.

    Após o café da manhã, realizei o pagamento das gorjetas, doei algum material que eu tinha, fiz uma foto do grupo e um pequeno agradecimento a todos pelo trabalho. Se eu consegui chegar ao topo do Monte Kenya e realizar esta incrível jornada, foi pelo trabalho de cada integrante.

    Momento da distribuição de equipamentos para quem tanto se dedicou.

    Foto do grupo. Da esquerda para direita, atrás: Eric (carregador), Jimmy (cozinheiro) e eu. Em frente: China (carregador), John (guia principal), Zack (guia-assistente).

    A caminhada continuou na floresta de bambu, que parecia não ter fim. Uma hora depois, ela finalmente cedeu lugar a árvores imponentes, quando então passei a observar alguns dejetos de animais. Comentei com John que havia búfalos por perto. E ele me corrigiu dizendo que eram elefantes!!! Pensei em silêncio, “só piora o tamanho, o sufoco é o mesmo”!

    A floresta agora era exuberante...

    Até que finalmente a descida se encerrou e a floresta deu lugar a uma incrível floresta plantada, segundo John, pela família de Felice Benuzzi. Eu percebia que minha aventura chegava ao fim. Talvez a aventura física, mas a espiritual, não. Esta se manteria em um eterno ciclo. Ora mais esquecida diante de outros objetivos e da loucura da vida mundana; ora mais intensa a cada vez que leio o livro ou penso no Monte Kenya. São sensações difíceis de serem transcritas para o papel. Mas o que consigo escrever é que mergulhar em uma estória nos faz reduzir o tempo entre o passado em que ela ocorreu e aquele presente que foi vivido. Você se aproxima dos acontecimentos e de alguma forma vive e sente a emoção de quem se propõe a contá-la.

    ... e esta parte, silenciosa e encantadora!

    Felice e seus amigos retornaram para o acampamento, felizes por terem atingido os 4.985 metros de altitude do Pico Lenana, o ponto mais alto que se chega no Mt. Kenya apenas caminhando. A prisão (como um regime diferenciado - uma solitária, por exemplo - pois eles já eram prisioneiros) do grupo foi relaxada pelo comandante do exército inglês no acampamento para uma semana dado “o espírito esportivo com que trataram aquela aventura”. Eu retornei para a civilização, para uma espécie de prisão a que estamos sujeitos e que se convencionou chamar de "sociedade". Naqueles dois dias de caminhada, eu entendi com profundidade o significado da palavra "liberdade" - a minha e daqueles que por ali a buscavam há oitenta anos.

    Marcelo Lemos
    Marcelo Lemos

    Published on 11/03/2024 10:17

    Performed from 09/06/2023 to 09/07/2023

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    2 Comments
    Fabio Fliess 11/26/2024 17:10

    Sensacional amigaço!  Nada como colocar em prática um sonho antigo e transformá-lo em realidade. Parabéns!

    1
    Marcelo Lemos 11/29/2024 21:38

    É verdade, amigaço. E como o tempo passa rápido e, às vezes, a saudade aperta! Obrigado pelo comentário de sempre.

    Marcelo Lemos

    Marcelo Lemos

    Petrópolis-RJ

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