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Marcelo Lemos 07/04/2023 22:05
    Pico Maior de Friburgo

    Pico Maior de Friburgo

    Escalada ao ponto culminante da cadeia orográfica da Serra do Mar.

    Mountaineering Climb

    Duas e meia da manhã. Já me conhecia e a ansiedade fez com que eu dormisse apenas por quatro horas. Fiquei pensativo, rolando na cama, até que duas horas depois estava de pé. Meu amigo e guia da iminente escalada, Jeferson Costa (@jefclimbing, guia AGUIPERJ), também havia levantado. Era hora de prepararmos um café e ingerir as primeiras fontes de energia do dia que prometia ser extenso e intenso.

    Às cinco e meia estávamos saindo do abrigo e seguimos com o veículo até um estacionamento particular em um sítio. O dia começava a raiar. Dali em diante, faríamos uma caminhada de cerca de uma hora até a base da Via Leste no Pico Maior de Friburgo, D4 5° V (A1 VIIa) E3, situado no parque estadual fluminense dos Três Picos.

    O Pico Maior está ao lado dos seus irmãos, o Médio e o Menor. Seu cume a 2.366 metros é o ponto culminante da Serra do Mar, a cadeia de montanhas que corre paralelamente à costa oceânica por uma extensão de uns mil quilômetros entre os estados do Rio de Janeiro e Santa Catarina (procurei valores mais precisos, mas a variação do valor desta extensão é considerável conforme a fonte).

    O Pico Maior. A nossa frente, sua parede de cerca de 500 metros verticais seria escalada por uma rota de 750 metros de extensão.

    Na base da via, seguimos o ritual de nos equiparmos. Jeferson havia levado uma corda dupla. Assim cada um podia carregar uma metade mais leve por ter um diâmetro menor e isto também facilitaria na descida, economizando a quantidade de rapéis. Ainda arrumei um espaço na mochila para acomodar um óculos abandonado no local e sem uma das lentes para posterior descarte.

    Realizamos o cross-check e Jeferson saiu. Com a corda quase toda esticada, foi a minha vez. Progredimos à francesa, ou seja, ambos se deslocando simultaneamente, mas com pontos de ancoragem intermediários, aproveitando que os primeiros lances são de terceiro e quarto graus. Em todo momento eu precisava observar a barriga da corda para que uma dobra não prendesse nas infinitas pontas rochosas já transpostas. Um lance neste trecho serviu para confirmar o valor do capacete. Quando flexionei os joelhos para subir de modo que eu olhava para baixo me certificando que estava com a sapatilha bem firme, havia uma saliência na rocha logo acima da cabeça. Como resultado, dei uma cabeçada na saliência ao me elevar. Se eu estivesse sem capacete, tenho certeza que abriria uma fenda na minha testa.

    Jeferson avante e eu estava a ponto de deixar a base, enquanto admirava a grandeza da montanha.

    Avançamos neste ritmo até a oitava parada (P8), quando se alcança o chamado platô do L, conforme formato que a vegetação assume naquela altura na face leste da montanha. A partir desta parada, as coisas começaram a ficar mais emocionantes!

    Como somos pequenos diante da grandeza da montanha.

    A nona enfiada de corda foi aberta com a primeira chaminé, com cerca de dez metros de altura. A saída da chaminé mais parece um movimento etéreo, perdido no vazio, para então se avançar horizontalmente por uma microplataforma, enquanto se busca desesperadamente por agarras na parede vertical colada no rosto. Como a corda estava em horizontal, uma queda significaria pendular enquanto se daria pancadas na rocha. Jeferson me orientava com relação à melhor posição para o lance. Eu só respondia rapidamente: “calma, calma, calma” (respiração profunda), buscando uma solução divina. Nestes momentos é mais jeito do que força. E assim realizei meia dúzia de movimentos esquisitos e cheguei até a P9. Felizmente não ventava.

    Enquanto Jeferson avançava na primeira chaminé, eu ficava eventualmente acompanhando seus movimentos e fotografando ao redor...

    ... pois o cenário era inspirador.

    Até a P11, tudo dentro da normalidade. Então veio a próxima chaminé, mais longa (cerca de vinte metros), desgastante e psicológica. Enquanto o Jeferson montava o quebra-cabeça, eu admirava a paisagem em volta. A sombra projetada pelo próprio conjunto dos Três Picos aumentava rapidamente, indicando a iminência do pôr do sol no lado oposto da montanha.

    Jeferson se desvencilhou da chaminé e me chamou. Não tive muito tempo para pensar na dificuldade, eu precisava avançar para aproveitar a iluminação do dia, ainda mais escassa dentro da chaminé. Felizmente, a distância entre as paredes era a ideal para o tamanho do meu corpo. Avancei rapidamente, mas da sua segunda metade em diante, eu realizei paradas para descanso. Eu conversava comigo mesmo. “Não adianta correr, Marcelo. Você vai cansar. Descanse”. Paradas deste tipo significam manter a compressão de pernas e tronco contra ambas as paredes. O fim da chaminé leva à P12 e a uma cova na rocha, uma reentrância em que é possível sentar-se confortavelmente enquanto se idealiza o movimento do crux, o lance mais difícil de uma escalada. Entretanto, o crux é um lance de sétimo grau, distante do meu quinto grau. Assim, Jeferson saiu da parada para iniciar o décimo terceiro esticão de corda e logo preparou o artificial com costuras para eu esgotar as reservas de energia nos músculos dos braços.

    Ultrapassado este trecho, rapidamente cheguei à P13. Reunidos na parada, que proporcionava boa base, ligamos nossas lanternas de cabeça. A noite havia chegado e, com ela, as dúvidas. Ainda faltavam duas paradas, ou seja, três esticões de corda até o cume. Aproveitaríamos aquela boa base livre de ventos para pernoitar? Rapelaríamos dali mesmo? Ou avançaríamos? E se avançássemos, faríamos um bivaque no cume, sujeito a maiores ventos, ou desceríamos em uma longa sucessão de rapéis durante a madrugada?

    Tantas dúvidas diante da grandeza absoluta da montanha. Mas não adiantava se desesperar. Jeferson avisou a esposa e ao pessoal do abrigo em que ficamos. Depois de avaliarmos a situação, optamos por seguir acima.

    Saindo de P13, ainda foi preciso fazer um rápido lance em artificial, mas os braços já aparentavam estar bem exigidos. Então veio a P14. Daí em diante, foi um passeio no parque!!! Restavam alguns lances de segundo grau e o cume estava próximo.

    Claro que houve emoção ao pisar no cume tão desejado, mas a ela se misturavam as dúvidas e a ansiedade por uma noite vindoura em claro. Eu e Jeferson trocamos um forte abraço e aperto de mão próximo à urna com o livro de cume, enquanto eu lhe agradecia pela guiada.

    A realização do Pico Maior simbolizou a finalização de um pequeno projeto pessoal de escalar as montanhas mais desejadas por mim próximas de onde moro: Dedo de Deus, Agulha do Diabo e o próprio Pico Maior. Também acrescento a Maria Comprida, em que a escalamos por uma das maiores vias do país, a Maria Nebulosa, com 1040 metros de extensão (relato aqui no AventureBox, assim como das demais citadas). Também simbolizou eu ter atingido o cume dos maiores sistemas orográficos do país (excetuando-se o extremo norte): a própria Serra do Mar com o Pico Maior, se juntando ao Pico do Sol (ponto culminante da Serra do Espinhaço) e as Agulhas Negras (ponto culminante da Serra da Mantiqueira). Curiosamente, os livros de Geografia não incluem o Pico da Bandeira e a serra do Caparaó como pertencentes a um conjunto orográfico (apesar de que poderia ser um ressurgimento da Serra do Mar após a planície do Rio Paraíba do Sul no norte do estado do Rio de Janeiro. Escrevo isto sem base científica, é apenas opinião).

    Ah, como as montanhas possuem anjos da guarda! Não demorou muito e percebi uma lona enrolada em uma cavidade rochosa. Talvez a visão desta lona tenha ajudado na decisão de permanecermos ali. Nem conversamos mais sobre isso. Rapelar noite adentro não era muito convidativo. Outro fator divino estava favorecendo: não havia ventos, mas a rota de descida é conhecida por predominância de ventos. Não a toa, é chamada “Cidade dos Ventos”. Também tínhamos boa quantidade de comida, mas eu racionava minha água, que continha repositor hidroeletrolítico.

    Com a ajuda de um canivete, cortei algum capim para forrar o chão. Fizemos um lanche e ajustamos a lona com auxílio de pedras e nos enfiamos na nossa barraca improvisada, por sugestão do Jeferson, para que tentássemos dormir logo no início enquanto não estava muito frio. E assim tentamos.

    É curioso como o organismo entra em um estado de torpor, em que se está meio consciente, meio apagado. Eu virava e mexia na busca por uma posição "mais confortável". O frio começou a incomodar os pés. E se meus pés estão desconfortáveis, eu estou desconfortável, apesar da cabeça aquecida (por onde perdemos mais calor). Outro fator nestes momentos é que evito ficar olhando as horas para não me decepcionar com uma hora mais atrasada do que a estimada.

    Lá pelas tantas, Jeferson se levantou e começou a fazer uma ginástica em busca de aquecimento. Enquanto isso, eu ficava pensando como seria tão fácil reclamar dos infortúnios por estar ali sem conforto. Mas aparecia uma voz e me falava como havíamos sido privilegiados por não haver vento. Não é bom nem pensar como seriam as coisas (e continuo a pensar sobre escrevendo este relato). Possivelmente teríamos que encontrar algum setor da montanha em sotavento e descer um pouco na esperança de encontrar alguma plataforma mais abrigada.

    Jeferson retornou para a “cabana” e me perguntou as horas. Apreensivo, imaginava que estaria passando de uma da manhã. Eram três e quinze da manhã, que maravilha! Conversamos mais um pouco e comemos algo. Acho que consegui adormecer, pois na minha próxima observada no tempo, o céu já estava clareando. Mais algum cochilo e o sol já havia nascido!

    Como é bom despertar para um novo dia. Levantei-me em busca dos primeiros raios solares e sua incrível energia responsável pela vida no planeta. Agora poderíamos tomar decisões com calma, mesmo sabendo que, pela previsão do tempo, havia possibilidade de pouca chuva à tarde.

    A energia solar nos fortaleceu para completarmos esta incrível jornada.

    Aproveitei para assinar o livro de cume, tomar um “café da manhã” e fotografar. Alguns vales estavam envoltos por densa camada de nevoeiro. A luz matinal emprestava um tom particular às fotos.

    Era hora da despedida. Tirei uma foto do local do pernoite, enrolei a lona e a deixei bem acomodada no mesmo lugar, na esperança de também poder ajudar o próximo aventureiro a evitar uma exposição prolongada ao orvalho da madrugada em caso de bivaque.

    Aquela foto de cume que não pode faltar!

    Assinatura de livro de cume também é importante e, neste caso, muito especial.

    Seguimos em direção ao ponto de rapel. O Pico Maior é famoso pela confusão que se faz com o exato ponto de início de rapel, distante cerca de cem metros abaixo do cume. Mas com calma e a ajuda de um trekloc de um conhecido meu, conseguimos localizar a ancoragem para o primeiro rapel.

    Jeferson em mais um rapel, tendo o Capacete ao fundo, outra ilustre montanha no parque dos Três Picos.

    Realmente, deixamos o cume sem vento, mas à medida que descíamos, a Cidade dos Ventos não falhava em fazer jus ao nome nos agraciando com um vento gélido. O segundo rapel foi o mais demorado, em diagonal e, no fim, em horizontal. Seguimos descendo até uma pequena floresta. Mais uns vinte minutos de caminhada por um caminho meio fechado, fomos remetidos ao ponto do último rapel, o sexto.

    Eu no penúltimo rapel em uma parede de praticamente 90°.

    Agora na trilha de descenso, bastou a caminhada até o carro. Visto de longe, o Pico Maior agora me transmitia serenidade. Senti um alívio de dever cumprido, por termos voltados íntegros depois daquela noite e por ter riscado mais esta da lista de desejos prioritários, uma pendência idealizada para 2022, mas só cumprida um ano depois.

    Marcelo Lemos
    Marcelo Lemos

    Published on 07/04/2023 22:05

    Performed from 06/12/2023 to 06/13/2023

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    14 Comments
    André Deberdt 07/05/2023 06:29

    Marcelo, parabéns pelo relato e pela conquista! Como sempre, uma narrativa fluida e bastante agradável. E que belas fotos!

    1
    Marcelo Lemos 07/06/2023 09:09

    Bom dia, André. Muito obrigado pela leitura e comentário, o que serve de estímulo à escrita quando recebemos as críticas. Eu tentei contato contigo no Instagram, pois talvez você possa me ajudar com uma pesquisa que faço. Se for possível, estou lá como @marcelo_lemos_13. Abraço.

    André Deberdt 07/09/2023 06:58

    Oi Marcelo. Te passei meu contato na resposta à mensagem no Instagram. Acho que o Fabio tb tem meu celular. Vamos conversar.

    1
    Marcelo Lemos 07/09/2023 12:07

    Já vi André. Obrigado pela resposta. Detalharei o assunto via zap.

    Fabio Fliess 07/07/2023 11:25

    Parabéns por mais essa conquista amigaço!!! Relato excelente lido no calor da minha residência, mas (só) imaginando a delícia do bivaque! rsrsrs Grande abraço.

    1
    Marcelo Lemos 07/07/2023 18:24

    Fala amigaço. Obrigado pelo comentário. Kkkkk eu também fiquei pensando na minha cama. Mas são os ossos do ofício. Como eu comentei, prefiro olhar para o lado bom. Não houve vento. Isso foi uma bênção. Abração.

    1
    Divanei Goes de Paula 07/07/2023 16:46

    Bom, eu já contei minha história do PICO MAIOR aqui mesmo no Aventurebox. Sei exatamente o que vc narrou, hehehehehehe. Nós dormimos na primeira chaminé, 3 trouxas sentados a noite toda e depois fizemos o rapel também a noite, sem água, sem comida, um veneno dos infernos, mas ficou a lembrança de uma das maiores aventuras das nossas vidas. . Prometi para mim mesmo que nunca mais escalaria outras vias longas, mas a sabe cumé né, já passou ou frio, a fome, as dores e os perrengues, então pensamos em partir agora para a MARIA NEBULOSA, NEM SEI SE DOU CONTA, mas a teimosia está sempre em alta, rsrsrsrsrsr

    2
    Marcelo Lemos 07/07/2023 18:28

    Alô Divanei. Grato pela leitura e comentário. Há algumas armadilhas nesta montanha. A descida não é muito diferente. Mas tenha certeza de que você saiu mais fortalecido de sua experiência. Estórias para contar, vou procurar seu relato. E a Maria Nebulosa, por um acaso é amanhã (08/07) com o Jeferson guiando? Ele me falou que estará nesta via.

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    Divanei Goes de Paula 07/07/2023 18:41

    Hahahahahaha, NÃO, nem sei quando será, mas com certeza deverá ser outra empreitada maluca , dessas de dormir sentado no meio da parede . 🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣

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    Marcelo Lemos 07/09/2023 12:07

    Foi muita coincidência, então. Ele esteve ontem lá, justamente no dia seguinte ao seu comentário e guiando alguém que leu meu relato da Maria Nebulosa.

    1
    Juliana Marques 07/27/2023 18:59

    Seus relatos são sempre incríveis! Parabéns pela conquista.

    2
    Marcelo Lemos 07/27/2023 22:34

    Olá Juliana. Muito obrigado por mais esse comentário. Um forte abraço.

    Orlando Correa Netto 08/12/2023 19:24

    Que "roubada" sensacional, Marcelo. Parabéns pelo cume e obrigado pelo relato tão rico.

    1
    Marcelo Lemos 08/13/2023 18:48

    Orlando, muito obrigado pelo comentário. Realmente, foi uma "roubada" que deixa saudade. Não tem jeito, neste ambiente, às vezes temos que sair (ou melhor, ampliar) nossa zona de conforto.

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    Marcelo Lemos

    Marcelo Lemos

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