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TRAVESSIA MARCO 22 / RIO DO NUNES VIA AGUDO CATITA
Trajeto realizado por trecho de mata completamente fechada, desfiladeiro, vales, rios e cachoeiras (absurdamente perigoso).
Mountaineering Trekking WaterfallQuase após três anos da conquista do Agudo Catita, voltávamos às terras altas dos marsupiais a fim
de encontrar uma passagem que chegasse a um ponto denominado Caçador em sua base a nível do
mar de altitude. Caçador é referência ao resquício oculto de área de caça ilegal que encontramos
em meio às sombras da floresta. Em 2023, a partir do recanto Rio do Nunes até o Caçador, já
havíamos tentado, sem sucesso, a ascensão ao Catita, chegando apenas na cota 700, ficando
impossibilitado de continuar devido à parede totalmente vertical que se formou em nossa direção.
Nesta empreitada, mas com destinos distintos, formamos aliança com o valoroso grupo: GAMM
(Grupo Avançado de Montanhismo Micuim), montanhistas da antiga arte da exploração e abertura
de trilhas, e nós, os Kavalos Lokos (Eu, Elcio e Kadu), andarilhos das montanhas, impelidos pelo
desejo de desafios e aventura.
Nosso ponto de encontro foi na ancestral Casa Gaber, um reduto na sombra do Morro do 7, onde
nossos carros repousavam enquanto adentrávamos o coração selvagem da Graciosa a partir do
Marco 22.
Como sempre, a trilha do Marco 22 até o Salto Mãe Catira fluiu bem: uma caminhada tranquila,
sem preocupações. Durante o percurso, ao nos aproximarmos do salto, encontrávamos dois
iniciantes naquela região fazendo a travessia em direção a InterAgudos.
Porém, logo após o Dique Diabásico, aquela velha floresta começou a mostrar suas garras. Árvores
caídas, como sentinelas abatidas de uma era esquecida, obstavam nosso caminho, desafiando-nos a
encontrar a antiga trilha. Enquanto lutávamos contra aquela vegetação emaranhada, nossa trupe se
distanciava dos valorosos GAMM, cada grupo seguindo seu destino, como estrelas cruzando o céu
noturno.
Ao chegarmos à base do enigmático Catita, depositamos nossas mochilas e, armados apenas com
facões e lanternas, buscávamos a luz do dia para guiar nosso caminho. Promissora, a jornada era
marcada pelo estrondo das águas, e logo encontramos um rio (Rio do Medo conforme indicado nas cartas topográficas) que serpenteava ao lado da montanha, um caminho de águas que desafiava a ser desvendado.
À medida que a noite lançava seu manto sombrio sobre a mata, nosso retorno à base do Catita
tornou-se uma provação desmedida, uma verdadeira jornada através dos umbrais do desconhecido.
O crepúsculo, entrelaçado com um nevoeiro denso e encantador, desenrolava-se como uma cortina
de místicos vapores, envolvendo a floresta em um abraço etéreo e impenetrável. A luz de nossas
lanternas lutava em vão contra essa névoa espessa, que parecia beber cada fagulha de claridade,
deixando-nos apenas com sombras dançantes e contornos fantasmagóricos.
Perdidos momentaneamente em um véu de esquecimento, desorientados pelo cansaço que pesava
sobre nossos corpos e almas, uma incerteza quase palpável se insinuava entre nós. O ar frio e
úmido impregnava nossos pulmões, cada respiração um lembrete das antigas lendas das terras
nevoentas que, segundo contos antigos, eram morada de espíritos e entidades esquecidas pelo
tempo.
O desânimo nos envolvia como uma segunda pele, uma camada de dúvida e resignação que nos
desafiava a desistir. Contudo, a necessidade de reforçar a trilha do dia anterior pesava sobre nossos
ombros com a gravidade de uma montanha. Era óbvio que se mantivéssemos o curso ladeira acima,
chegaríamos às nossas mochilas, mas o desânimo de encarar vegetação fechada não animava
ninguém.
Cada passo, guiado pelo tênue instinto e memória da terra sob nossos pés, era um ato de fé e
coragem, enquanto o mundo ao nosso redor sussurrava segredos velados pelo tempo. Somente
mantendo nosso curso, sempre ascendendo pela encosta íngreme, poderíamos esperar reencontrar
nossas mochilas e, com elas, um refúgio contra as sombras que a noite tecia ao nosso redor.
Entre um perdido e outro, retornaríamos ao ponto onde deixamos as mochilas e iniciaríamos a
subida ao Catita. Este trajeto, por sua vez, também não estava dos melhores. Poucos montanhistas o
visitam, assim a vegetação tende a criar barreiras que fazem mais que dobrar o esforço para chegar
ao cume.
Ao cume, com todos bivacados exceto o Kadu, que estava de barraca, agora era hora de tentar
descansar naquela noite úmida, quase uma chuva de tão molhado que estava devido à condensação
da neblina, e encarar o restante do percurso do outro dia. Nesta hora, já estávamos cogitando nos
atirar até o Rio do Nunes, pois o trajeto de volta ao Marco 22 não animava ninguém, sabendo que
iríamos pegar todo aquele percurso com árvores caídas.
No amanhecer seguinte, revigorados pelo espetáculo do sol ascendendo sobre os Agudos e
fortalecidos por um robusto café preto, retomamos nossa descida pelo rio, agora um aliado em
nossa busca. Sinalizamos aos GAMM, cujas vozes ressoavam ao longe.
A descida pelo rio, que outrora mostrava promessa, transformou-se em uma jornada de desafios
constantes. Alternávamos entre avançar pelas suas águas e seguir pela margem, evitando cachoeiras
cujo canto traiçoeiro sussurrava perigos. Com cada passo descendo a correnteza, a terra em volta se
revelava mais hostil. Em um ponto crítico, ao desviar o trajeto de uma cachoeira, nos deparamos
com um grande deslizamento; seria possível descer, porém a chance de queda de pedras era
enorme, assim decidimos derivar mais em uma vegetação ruim de transpor. Como não bastasse a
vegetação ruim, o relevo começava a piorar. Aquela encosta era apenas o prelúdio de adversidades
maiores que nos aguardavam.
As cachoeiras eram de uma beleza majestosa, algumas facilmente navegáveis, outras nos forçavam
a abraçar a vegetação circundante em busca de segurança. Em certos trechos, descíamos sentados,
agarrando-nos às pedras escorregadias. Em certo momento, uma situação crucial se apresentou
diante de nós: o ponto de não retorno. A cachoeira que descemos tornou impossível qualquer
pensamento de retorno, dada a sua periculosidade. Nesse instante, a esperança residia na chance de
que caminhos futuros oferecessem passagem. Sem sinal de GPS, encoberto pelas imensas paredes
do cânion, e com o sinal de celular completamente ausente, estávamos à mercê dos caprichos da
natureza.
Por mais sorte que juízo, encontrávamos passagens, ainda que perigosas, que com cautela íamos
transpondo, até finalmente penetrarmos a mata densa em direção ao enigmático ponto “caçador”.
Liberados dos perigos intermitentes daquele cânion implacável, a jornada restante até o recanto do
Rio do Nunes parecia simples, mas transformou-se numa penitência interminável. Eu, estando com
os pés encharcados há dois dias, sentia cada passo como uma provação maior. O caminho, embora
conhecido, escondia suas armadilhas habituais: trilhas que perdíamos o rastro e árvores caídas
necessitavam de constante vigilância. E as formigas, essas pequenas sentinelas da floresta, de
tempos em tempos escolhiam nossas pernas como trilha, adicionando uma dose de urgência e
desconforto à nossa marcha.
Aos trancos e barrancos, como popularmente dizem: “só no pó da gaita” chegávamos à civilização.
Ao passar por uma das chácaras, trocamos uma leve conversa com um conhecido nosso que sempre
nos recebe quando fazemos alguma investida na região. Nessa conversa era hora de colher alguma
informação de como conseguir um resgate para nos levar até ao nosso carro.
Já era fim de tarde, entre uma conversa e outra, já no recanto Rio do Nunes nada fluía a fim de
conseguir alguma carona, táxi ou uber, sem contar que o sinal de celular ali também não
funcionava. Sorte que uma das lanchonetes estava aberta e foi cedido o sinal de Wi-Fi a fim de
tentar o resgate.
Nossa melhor aposta era o Gaúcho de Porto de Cima, em Morretes. Ele já havia nos resgatado na
travessia Rio do Nunes/Marco 22, porém estava no Rio Grande do Sul. Ele indicou outro táxi que
poderia fazer o resgate, porém por estar em alguma corrida em região onde o sinal não funcionava
direito, não conseguíamos entrar em contato com ele. Mesmo estando no extremo sul do Brasil, o
Gaúcho, uma vez montanhista e sempre muito gente boa, fez a intermediação para conseguir
contatar seu colega taxista e nos resgatar.
Ao embarcar no resgate, voamos até a Casa Gaber, pois ele já tinha agendado outras corridas;
assim, a longa distância até nosso destino poderia complicar sua agenda. Neste tempo, já com
algum sinal de celular, não tínhamos notícias do pessoal do GAMM. Sabíamos que poderiam ter
algum atraso, mas a esperança era que, ao cruzar o Marco 22, encontrássemos eles ou então que os
carros deles já não estivessem na Gaber, sinal de que haviam finalizado a trip e retornaram para o
conforto de suas casas.
Ao chegar na fazenda, todos os carros ainda estavam lá, neste caso só restava aos Kavalo Loko
seguir embora para descanso e esperar por notícias dos demais montanhistas.
“Estes mandariam notícia mais tarde, 2h da madrugada saíram do Marco 22 com 100% de êxito na
tarefa de abertura da trilha.”
