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Bruna Fávaro 02/12/2018 20:42
    Pedalando na reserva indígena Apinajés | TO

    Pedalando na reserva indígena Apinajés | TO

    Cicloviagem na reserva indígena dos Apinajés, Tocantins

    Cicloviagem

    A ideia de pedalar pelo Tocantins nasceu numa bonita surpresa durante o Encontro Nacional de Cicloturismo (relatado aqui). Os preparativos para cicloviajar pela Chapada das Mesas estavam já no papel quando, na palestra sobre a viagem pelo Brasil do Bruno e da Andrea, eles contaram sobre a passagem que fizeram pela reserva indígena dos Apinajés, no Tocantins, na divisa com o Maranhão.

    Pesquisa daqui e de lá, e claro que a reserva entrou na lista de lugares para conhecer!

    Rio Tocantins

    Depois de pedalar pelas Chapada das Mesas (veja relato aqui), fomos de ônibus até a cidade de Porto Franco, ainda no Maranhão. Da rodoviária, pedalamos até a balsa, aonde chegamos no exato momento de um gol da Croácia contra a França, na Copa da Mundo 2018. Ficamos no bar vendo o jogo e depois atravessamos o rio Tocantins. Estava aberta a temporada de verão e o rio estava apinhado de gente se divertindo.

    Balsa entre Porto Franco/MA e Tocantinópolis/TO

    Do outro lado, chegamos à cidade de Tocantinópolis. Depois de algumas conversas iniciais com os moradores da cidade, conhecemos três rapazes - o Cassiano, o André e o Fredson - que nos levaram primeiro para uma sorveteria, porque ninguém é de ferro, e depois para o início da estrada de terra que leva às principais aldeias.

    Logo que nos despedimos deles, surgiu o jovem Warney, que pedalava ali pela região e, ao ouvir nossa história, quis nos acompanhar até um local que ele indicaria para passarmos a noite, a poucos quilômetros dali.

    Rapaziada de Tocantinópolis, que nos ajudou no caminho

    Ele nos deixou na propriedade do Sr. Alcides, um senhor que vive sozinho num simples balneário chamado “Marinho”. O senhor rapidamente nos preparou um peixe com macarrão e ficamos sem jeito de negar a janta caprichada. À noite ficamos conversando com um casal que surgiu ali e eles nos deram muitas informações sobre distâncias e sobre quais aldeias conhecer.

    ALDEIA MARIAZINHA

    Saímos bem tarde do balneário do Sr. Alcides… já passada uma da tarde. Pegamos uma estrada tranquila de terra e poucos trechos de areia em que era necessário empurrar a bicicleta. Ainda assim chegamos cedo na aldeia Mariazinha e, como o cacique não estava, precisamos esperá-lo chegar para pedir autorização para ficar.

    Assim que chegamos, as pessoas que estavam nas primeiras casas acharam se tratar de Bruno e Andrea, os últimos cicloviajantes que estiveram ali, dois anos antes. Desfeito o engano, nos deram cadeiras para sentar enquanto o cacique não chegava e passamos algum tempo ali brincando com uma porção de crianças sorridentes, descalças, felizes e de uma alegria tão contagiante que não tinha como não agradecer pela vida e por estar ali.

    Início da estrada TO-126, que corta a reserva

    Não temos fotografias, porque achamos por bem não fazer isso sem que o cacique tivesse autorizado. Mas ficará para sempre na minha memória uma sequência de 8 crianças sentadas espremidas em um banco, sacudindo as perninhas e olhando para a gente com grande curiosidade.

    Ali, as crianças começam a aprender português apenas ao entrar na escola, com 8 anos. Antes disso, a língua falada é a Jê e a linguagem é a do sorriso. :D

    Assim que o cacique, o sr. Kunduka, chegou, autorizou que dormíssemos nas dependências da escola. Infelizmente quase não conversamos.

    Escola indígena na aldeia Mariazinha. Criançada e cacique Kunduka.

    No dia seguinte, tomado nosso café, encontramos o sr. Kunduka, que nos explicou sobre as atividades agrícolas da região, onde grande parte dos homens trabalhavam. Ele também é professor na escola onde dormimos.

    Algumas fotos depois, partimos para a aldeia Botica!

    ALDEIA BOTICA

    Chegar ali não foi muito fácil. Aliás, nada fácil. O terreno era extremamente difícil de pedalar por conta do volume de areia fofa e mais empurramos do que, de fato, pedalamos. Passamos pela entrada de algumas aldeias, mas não paramos.

    Já com o sol muito forte, encontramos um pequeno braço de rio onde paramos para um lanche e um descanso na rede. O lugar era delicioso. Ficamos ali até o sol baixar um pouco e lá pelas 15h seguimos nosso caminho.

    Pausa para o sol baixar

    Chegamos na aldeia Botica e, novamente, o cacique não estava. Quem nos recebeu foi o sr. José da Doca, antigo cacique da região e homem bastante influente entre eles. Esclarecido e antenado, já representou o povo Apinajé em eventos internacionais nos EUA e Europa, mas teve muitos problemas com a Funai e antropólogos, por, segundo ele, “fazer os índios trabalharem”.

    Passamos a tarde com ele e a vivência ali foi riquíssima. Ele foi cacique da principal aldeia (Mariazinha) por 15 anos. Deixou de ser após um grave acidente de carro numa viagem vindo de Belém, que matou quase toda a sua família: cinco filhos, noras e netos, restando-lhe apenas um dos filhos, com muitas sequelas. Uma história realmente muito triste.

    Sr. José da Doca

    Na década de 70, a comunidade lutou contra a construção da rodovia transamazônica dentro de suas terras - o que fez com que ela fosse deslocada para o lado maranhense. Hoje, José da Doca acredita que o asfaltamento da estrada dentro da reserva facilitaria muito a vida dos moradores, que se veem isolados e reféns de tarifas altas de transporte privado até a cidade. Dentre outras dificuldades, está a do saneamento básico. Não há banheiro nas aldeias e a coleta de lixo passa apenas uma vez por mês.

    Aldeias circulares com um campo de futebol no centro

    À noite, fomos convidados por ele para um belo jantar de arroz, feijão trepa-pedra e carne de panela. Ainda conversamos bastante sobre a organizaçã política das aldeias, sobre o processo de escolha dos caciques e os movimentos sociais. Nos despedimos e fomos dormir mais uma vez de rede, sob a proteção das estrelas, nas dependências da escola.

    No dia seguinte, pedimos autorização para circular pela aldeia e tirar algumas fotos. Conhecemos o posto de saúde e também o cacique Charles, da Aldeia Mata Grande. Ele carregava 5kg de arroz e, segundo ele, era o necessário para 1 dia de alimentação para sua família. Muito simpático, conversamos um pouco sobre religião. Ali são todos católicos e não sabem dizer o que cultuavam antes de o serem… “Sempre fomos católicos”. Fácil entender, uma vez que data do século XVII os primeiros contatos com jesuítas da Companhia de Jesus... :/

    Família na aldeia Botica

    Também conhecemos uma casa cheia de crianças onde um homem fazia farinha de mandioca. Ficamos um pouco ali brincando com as crianças, comendo farinha e antes de ir embora fomos pro Rio Botica aproveitar um pouco. Realmente o rio tem uma água linda. Límpida e com forte correnteza, foi o rio mais delicioso de se banhar em toda a viagem. Uma dessas belezas que foto alguma é capaz de captar.

    Rio Botica

    A VOLTA

    Dali do rio a ideia era voltar tudo pedalando, até Tocantinópolis. Mas a preguiça falou mais alto e pegamos uma carona com o sr. Antônio, num 4x4, até o balneário Pedro Bento, onde a Eliete nos tratou com muito carinho e onde ficamos por mais um dia, aproveitando a beleza do rio que corre em sua propriedade e, aqui também, brincando com a criançada - que precisa ser criança em qualquer lugar.

    Não sei quantos quilômetros pedalamos no total e nem acredito que isso importe, porque tenho certeza de que foi uma imensa viagem.


    Os Apinajés foram quase extintos durante o século XX, chegando a cerca de 150 habitantes devido a inúmeras invasões de populações migrantes e ocupações fundiárias. A demarcação de suas terras se deu apenas em 1985 e os 641 invasores saíram durante os 12 anos seguintes, mediante indenização. No entanto, ainda hoje há um contexto de muita violência por parte dos fazendeiros locais… Fomos recebidos com cautela por todos, até que entendessem as razões da nossa visita. A demarcação de suas terras permitiu o estabelecimento das famílias, o cadastro nos programas sociais e, não à toa, o censo de 2014 apontava já uma população de 2300 pessoas.

    Não são animais num zoológico. São pessoas e devem ter seus direitos assegurados, porque a demarcação garante a eles não só a possibilidade de existirem, mas a continuidade de sua língua e cultura, já tão ameaçadas em nosso país.

    Bruna Fávaro
    Bruna Fávaro

    Publicado em 02/12/2018 20:42

    Realizada de 15/07/2018 até 19/07/2018

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    3 Comentários
    Peter Tofte 04/12/2018 09:22

    Que legal! Mostrando o que poucos brasileiros conhecem!

    Felix G Prieto 04/12/2018 09:34

    Muito bom, inspirador. Obrigado por compartir

    Bruna Fávaro 04/12/2018 18:42

    Valeu, Peter e Felix! <3

    Bruna Fávaro

    Bruna Fávaro

    São Paulo

    Rox
    2892

    Montanhista, ciclo-mochila-viajante, professora e de bem com a vida!

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