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Caçadores de cachoeiras - Cravada!
Dois dias na trilha para conhecer a Cravada em área pouco frequentada da Chapada Diamantina.
Mountaineering TrekkingEsta trilha é sussa. Quatro horas até a cachoeira a partir do ponto onde se pode deixar o carro. Mas, incrivelmente, a bela Cravada é uma das cachoeiras menos visitadas, seja por desconhecimento, seja porque fica fora dos roteiros tradicionais de turismo da Chapada Diamantina, num cantinho mais escondido. Para dar uma ideia, não encontramos ninguém na trilha de dois dias, apesar de ser o feriado de 7 de setembro.
Havíamos tentado ir para a Cravada em dezembro/2022 (ver o relato “Road trip parada 7: Riacho do Mel") mas fortes chuvas impediram a travessia de um rio, inviabilizando a trilha.
Chegamos 06/09 no Camping Capão do Mel onde montamos nosso “acampamento base”. A ideia era relaxar da viagem de 6 horas a partir de Salvador. Em todo capão só tem este camping e mais uma casa. Fica 7 km do povoado de Riacho do Mel, município de Iraquara.
Camping Capão do Mel.
Encomendamos o almoço. Enquanto preparavam, montamos a barraca, nossa espaçosa TNF Mountain 25. Esta tenda ficaria no camping, montada, aguardando nossa volta da trilha de 2 dias.
Comemos uma deliciosa carne de sol preparada pela Elisângela. Para digestão eu e Lúcia caminhamos pela estrada de terra até o seu fim, no fundo do vale, e tomamos um banho num córrego que também passava na área de camping.
As piabas beliscavam nosso corpo, incomodando, com mania de grandeza, achando que eram piranhas. Assim desistimos de ficar muito tempo dentro d’água.
Voltamos e tiramos uma soneca na barraca. Após, um novo banho no riacho, que é mais caudaloso na área de camping.
Para jantar uma sopa de missoshiro e biscoitos salgados já que não estávamos com fome (almoçamos tarde). Edeilson e Elisangela nos chamaram para um café e uma prosa. Tomei garrafada (infusão de ervas com cachaça) de erva doce e de cambuí e licor de figo.
Depois fui com Lúcia tomar um vinho ao lado do riacho, para completar a bagaceira.
07/09
Dia seguinte, fácil adivinhar. Acordei com ressaca. Um cuscuz com ovo e um café forte ajudaram no processo de cura.
Arrumamos as mochilas e partimos. Na saída Edeilson perguntou a Lúcia se levávamos isqueiro para acender uma fogueira. Respondeu que sim. Depois ela comentou comigo: Edeilson não queria que recebêssemos uma visita indesejada durante a noite, no acampamento selvagem.
Estava garoando. A noite anterior choveu. Cruzando o riacho subimos por meia hora até os gerais do Dandá, onde saímos do terreno do camping (14 hectares). A vista Norte, para o Capão do Mel, era bonita. A vista para o Sul, direção do morro do Camelo, estava nublada.
Gerais do Dandá. Vista N para o Capão. Estava nublado mas para o Sul a névoa era mais forte.
Cortamos caminho pelos gerais, sem trilha. Sabíamos que adiante encontraríamos a estrada de terra que nos levaria até o início do sendero para a Cravada, onde há uma dúzia de casinhas. Poderíamos até ter ido de carro, mas isto representaria uma volta de vários km. Além de não ser esportivo.
Com uma hora nesta estrada chegamos as casas e liguei o Wikiloc para saber onde era o início da trilha. Ela era fácil, batida e subia suavemente para um selado baixo onde alcançamos os gerais de cima da Cravada. Consultei muito pouco o Wiki nesta trilha.
Rumo ao selado.
No topo, numa cerca de pedra com tramela, paramos para descansar e lanchar. Este selado fica entre duas serras escarpadas, parecendo um portal.
Prosseguimos por um “gerais”, delicioso para andar, com tufos de matas.
Após o selado, os gerais de cima da Cravada.
Ouvimos o canto inconfundível das siriemas. Cruzamos um riacho e caminhamos tendo a direita a mata ciliar que protegia este riacho. Este fazia uma suave curva para o sul. A trilha acompanhava a mata, em paralelo.
Com cerca de 40 minutos descolamos desta mata, até chegarmos a outro córrego. Este não dava para cruzar sem molhar os pés. Lucia parou para tirar as botas e meias. Eu, de tênis, decidi atravessar calçado.
Andamos mais uma hora e meia. Já dava para avistar a esquerda a vereda onde devia correr o rio da Cravada. Consultava o Wikiloc para ver onde seria uma quebrada que dava acesso ao poço da Sereia, um local bonito para acampar, sugerido por Edeilson e Elisangela.
Avistamos um bonito “oásis” de altas carnaúbas.
Era lá a quebrada. Uma alta mangueira me chamou a atenção. Na chapada isto é sinônimo de lugar que foi habitado por garimpeiros. Não deu outra. Havia uma ruína antiga com grossas paredes de pedra.
Perto da porta ainda tinha reboco e marcas de balas, que deviam ser de uma rixa da época dos diamantes.
Seguimos para o poço da Sereia, no rio da Cravada, onde chegamos 5 minutos após sair da ruína. Poço bonito com uma queda d’água que passava por uma canaleta na rocha e jorrava para a frente num ângulo de 45° com a horizontal. Decidimos acampar ali.
Pensava primeiro visitar a Cravada num bate e volta (eram 14:30 da tarde) para depois montar o acampamento. Lucia sugeriu a gente deixar o bate e volta para o dia seguinte. Acordando cedo teríamos mais tempo para visitar ela. E estava garoando. Se abrisse o sol amanhã seria melhor. Como sempre Lúcia chamava a razão. Boa ideia.
Montamos a barraca num espaço exíguo perto do rio. Mal coube a Lanshan 2. Tive que usar pedras para segurar alguns espeques que não ficavam firmes no solo pedregoso.
Pouco depois da montagem a garoa virou chuva. Corremos para a tenda e deitamos. Lucia pegou no sono. Também cochilei.
Quando a chuva parou, por volta de 16 horas, fui tomar um banho no poço. Deixei Lucia dormir mais um pouco. Era fundo, algo em torno de 5 metros de profundidade. Sai da água e subi um trecho rio acima pelas margens e lajeados. Estava fantasiado de índio. Não havia necessidade de calção de banho naquele lugar deserto.
Acordei Lucia após o passeio, para não ficar tarde para o banho dela.
Comecei a arrumar os utensílios para a janta, aproveitando a trégua da chuva. O dia todo foi de garoa e chuva com intervalos de tempo bom, mas nublado.
Embora a tenda estivesse perto do rio, havia altura suficiente em relação ao nível da água. Se estivéssemos entre dezembro e abril jamais armaria a barraca ali.
Fiquei impressionado com a rapidez da fervura da água com uma panela que comprei recentemente, a Pinnacle Dualist HS da GSI. O HS é de Heat Sink, ela tem um sistema que absorve mais calor da chama no fundo da panela. Ainda estava cortando os saches da sopa em pó e a água já estava fervendo!
Nota técnica: a panela não é ultraleve porque pesa 295 gramas, mas atende duas/três pessoas (1,6 litros). Isto significa 150 gramas por pessoa numa dupla. E na rapidez economiza o gás em cerca de 20%. Encaixa direitinho um cannister de 230 gramas de gás e um conjunto de 4 tigelas e 2 colheres, além do fogareiro. Usei-a com o fogareiro MSR PocketRocket Deluxe e um corta vento de titânio. Combinação ótima.
Como prato principal um macarrão a bolonhesa liofilizado. Só ficou minimamente aceitável porque Lúcia picou um queijo parmesão para melhorar o sabor.
Lavei os pratos com esponja, sem sabão. Não usamos sabão nem para lavar pratos nem para tomar banho. A natureza e sua pele agradecem.
Curtimos o final da tarde e ainda parte da noite, deitados em cima de uma grande rocha, formando uma meseta a margem do rio. O céu abriu estrelado. Não durou muito. Uma massa de nuvens tapou novamente a visão das estrelas e decidimos dormir.
Choveu durante a noite e ao amanhecer. Agradáveis 20° C como mínimo dentro da barraca.
08/09
Acordamos pouco depois das 6 horas.
Decidi fazer o café no avanço, numa das laterais da Lanshan 2. Enquanto isto Lucia já organizava as coisas para botar nas mochilas.
Terminamos o café e ainda garoava. Resolvemos desmontar a tenda e partir porque não parecia que iria parar logo.
Voltamos a ruína e consultei o Wikiloc para ver a continuação da trilha para a Cravada, uma hora dali. Mas o aplicativo indicava um ponto sem trilha, de mato. Imaginei que o pessoal foi para a cachoeira na base do vara-mato.
Voltamos para um ponto de bifurcação na frente da ruína que mostrava uma trilha bem batida, Eu imaginei ser ali o caminho correto e fomos. Logo adiante nova bifurcação. Peguei a esquerda. Pouco depois o mato fechava a trilha. Voltamos e pegamos a direita. Trilha bem batida. Seguimos por meia hora, mas ela não convergia para a cachoeira, subia para a direita. Outro detalhe, havia pequenas obras de engenharia, contenções com muros de pedra que indicavam ser coisa antiga de tropeiros e garimpeiros. Eles não queriam saber de cachoeiras e sim de caminho fácil para tropas de burros com mantimentos e para escoar a produção de diamantes.
Trilha errada mas bonita. Garoando.
Voltamos novamente para a ruína e decidi checar novamente o ponto mostrado pelo Wikiloc. Descobrimos que um capinzal escondia o começo da trilha e logo adiante a trilha estava perfeita e bem visível! Santa ignorância. Perdemos ao menos uma hora por eu não ter confiado no App.
A trilha seguia em meio a mata. Vários muros de pedra antigos, mangueiras e outras árvores frutíferas mostravam que ali houve muita atividade.
Com vinte minutos chegamos a uma área sem mata, recentemente queimada, cheia de arbustos calcinados e apenas vegetação rasteira verde, que brotou nas últimas chuvas.
Seguimos agora olhando frequentemente o Wikiloc. Era uma área antiga de garimpo, com muitos montes de pedras e seixos provenientes das escavações. Vimos também canais de água e bicanos usados na lavagem do cascalho. A trilha por vezes esvanecia naquele labirinto pedregoso.
Eu sempre ia 20 a 50 metros na frente de Lúcia para checar o caminho e ver se havia algum perigo (fendas escondidas, cobras, etc...). Parava constantemente para esperar ela se aproximar. Numa destas ocasiões, já perto da cachoeira, ela me aparece com o rosto sujo de terra. Havia levantado o rosto para ver onde eu estava enquanto caminhava e nisto tropeçou numa raiz indo com a cara no chão. Examinei-a e perguntei como se sentia, se tinha se machucado. Sorte que não. Ela estava bem, exceto pelo joelho esquerdo dolorido. Mas poderia ter caído e batido com a cabeça numa pedra ou toco. Lavei o rosto dela com água do cantil.
Vimos que a trilha descia para o poção inferior da cachoeira por uma ravina com mata. Perguntei se ela queria descer ou ficar descansando. Ela me disse que preferia não descer devido ao joelho. Pedi-lhe para eu descer sozinho, para fotografar a cachoeira e voltar rapidamente para junto dela. Ela acedeu, neguinha corajosa.
Deixei-a com minha mochila, só levando a pochete e os bastões. A trilha era íngreme e logo deixou de existir, passando a ser um pula pedra no meio de uma mata frondosa. Aquele tipo de ravina conhecemos na Chapada como fenda. Cansativo e exigia cuidado pelo tamanho das pedras, todas escorregadias devido à chuva.
À medida que descia a ravina alargava e nas margens junto ao paredão aparecia terra. Num ponto a esquerda vi o começo de uma trilha na terra, que adiantou muito o lado. Cheguei ao fundo depois de meia hora. Sai no paredão ao lado de uma clareira com um areal, excelente para acampar, podendo caber 3 ou 4 barracas.
Clareira com areal junto ao paredão.
Logo adiante a Cravada, linda cachoeira.
O cânion era relativamente largo, deixando bater sol na queda d’água boa parte do dia.
Poço da Cravada.
Tirei fotos e procurei gravar mentalmente as imagens. Prometi a mim mesmo voltar com Lúcia para acampar naquela clareira e passar um dia na cachoeira.
Subi logo para não deixar Lucia preocupada. De onde ela estava não me via ou me ouviria se eu gritasse. Me perdi duas vezes na subida, no labirinto de pedras. Na pressa de descer não gravei referências. O que me parecia a subida natural várias vezes terminava num beco sem saída.
Na subida por caminho errado consegui tirar uma foto da Cravada. Na descida não tive esta visão.
Mais de uma vez fiz escalaminhada. Numa tentativa passei por baixo de um túnel escuro formado por uma grande rocha e emergi num buraco do outro lado. Obviamente não havia passado por ali na descida. Forcei passagem porque sabia que a ravina no topo estreitava e mais cedo ou tarde encontraria a trilha de terra que era o começo da descida.
Finalmente achei a trilha de terra e dei um suspiro aliviado. Ali não era um bom lugar para se machucar.
Reencontrei Lucia e disse-lhe como era bonita a Cravada. Prometi-lhe mostrar as fotos logo que chegássemos ao camping. Eram quase 11 horas e tínhamos um longo caminho até lá. Cerca de 12 a 13 km. Nada demais não fosse o joelho dela.
Chegamos na ruína onde fizemos uma parada técnica. Comi muito cambuí vermelho. Centenas de cachinhos na mata. Eu adoro o licor de cambuí e agora tinha a fruta em natura (só soube depois que era o cambuí. Comi na ignorância, na curiosidade, por conta e risco kkkk).
Enorme quantidade de cachos (pontos vermelhos).
Cacho de Cambuí.
Voltamos calmamente. Notei que a chuva apagou as nossas pegadas do dia anterior, em sentido contrário. Mas agora fazia um sol bonito, as chuvas passaram.
Vista do Camelo, baixando já do selado para o início da trilha.
Já de volta nas casinhas da baixada encontramos um senhor consertando uma cerca. Ao saber que retornávamos da Cravada, perguntou se não estávamos com guia. Respondi que não. Ele disse que éramos corajosos. Não pude deixar de olhar para a pochete que tinha o celular com o Wikiloc. Na verdade, coragem é viver numa cidade grande como Salvador.
Nos gerais do Dandá tivemos a vista espetacular que a névoa nos negou na ida.
Subindo para os gerais do Dandá. Vista Norte.
O formidável Camelo se destacava e bem ao fundo era possível ver o Morrão. Uma das paisagens mais lindas da Chapada!
Chegamos no camping as 16 horas. Edeilson desceu para nos receber. Estava preocupado, provavelmente pensou que a onça nos pegou.
Havia mais 9 pessoas hospedadas lá, que chegaram no dia anterior. Pesquisadores da Universidade Federal de Feira de Santana que faziam um levantamento dos recursos naturais da região para uma publicação.
A conversa com Edeilson e Elisângela , à noite, durante o jantar, foi novamente animada e muito agradável.
Sábado, 09/09, retornaríamos para Salvador.
Edeilson e Elisângela, nossos gentis anfitriões neste cantinho lindo da Chapada.
Mais um riquíssimo relato! Parabens!!