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Na boca da cobra - Guariba selvagem
Quatro dias de trekking para visitar a cachoeira do Guariba em área selvagem do PN Chapada Diamantina
Trekking Camping MountaineeringFoto portada: vista do vale do Pati a partir da ladeira do Império, 1° mirante.
Avatar: jararaca cabeça de capanga
Preâmbulo da serpente
A mata na margem direita verdadeira do Pati, entre a casa do seu Joia e a Toca do Guariba, é linda. O tempo estava seco e quente. A trilha estava recoberta por folhas secas, sombreada pelas árvores. Ia na frente pois era o único que havia percorrido este trecho antes (7 anos atrás). Lembrei que o horário não era bom. Por experiência própria sabia que as cobras começam a se movimentar neste tipo de ambiente no final da tarde.
Dito e certo. Pouco depois, ao pisar numa raiz que formava um degrau na trilha, notei que algo se mexia pouco abaixo do meu pé. De relance vi a cobra passando encostada na raiz e no meu pé. No susto dei um pinote desajeitado para o lado. Evitei pisar na serpente por pouco. Se pisasse, o bote e a picada seriam certos.
A cobra seguiu lentamente para fora da trilha, o que permitiu que a gente a fotografasse e filmasse.
Quando eu aproximava o celular para filmar ela batia sua cauda na folhagem, fazendo o barulho parecido com o chocalho da cascavel. Avisava que não era para se aproximar mais. Era uma jararaca cabeça de capanga. Continuamos o caminho. Agora um pouco mais lentos e com a atenção redobrada.Um dos meus bastões de trekking entortou com o meu pulo.
Bastão torto.
12/10 - Início da Trilha
Eu, Frank e William chegamos a Andaraí na noite de 11/10. O guia Lé chegou na manhã seguinte, no feriado, pouco antes de acordarmos, as 05:30.
Com 3 minutos de carro a partir da Pousada estacionamos em frente ao camping Diamantino, no portal que marca o início da trilha. Começamos ali a subida da ladeira do Império, na Serra do Ramalho.
Esta subida deve ser iniciada preferencialmente muito cedo, ainda no escuro. A ladeira do Império, lado de Andaraí, é famosa pelo calor. A mineração de diamante tirou a camada de terra e a subida é andando sobre lajes de pedra com vegetação baixa ou arbustiva. O calor vem de cima e de baixo. Como o tempo estava um pouco nublado só começamos a senti-lo por volta de 10 horas.
Engenharia da época do garimpo. Um rego para conduzir a água até o local de lavagem da cascalheira.
Rocha descoberta pelo garimpo. Mesa da Dona Linda.
Fazia 2 a 3 meses que não chovia na Chapada, mas ainda havia água no Jalapão e na Bica.
Lé, que conhecia melhor a subida, avisava que faltava pouco para o Arrochador. É o topo da serra, passo de montanha, onde os tropeiros ainda hoje arrocham (apertam) a barrigueira das mulas, preparando-as para o balanço da descida e evitando queda da carga.
Eu confundi o nome, trocando Arrochador por Atochador. Perguntava quanto tempo faltava para o Atochador. Esqueci que no dicionário baianês, Atochador é aquele que mete até o talo. Lá ele! kkkkk. Os companheiros de trilha caíram na risada.
Paramos no Arrochador para descansar e lanchar. Calor retado. Agora seria a descida para o Pati de Baixo, para a casa de apoio do seu Joia. É o apoio mais ao sul do Vale do Pati. Dali até o rio Paraguaçu não há mais casas.
A descida é bonita. A visão para o Norte, com o Morro do Castelo entre o vale do Pati e do Calixto, é linda. Céu claro com poucas nuvens. Ao Sul era visível a entrada do cânion do Guariba, para onde iríamos.
No primeiro mirante para o vale do Pati.
Descida da ladeira do Império para dentro do vale do Pati. Foto do Frank.
Lá embaixo, cruzamos o Pati na ponte de troncos. Apesar de ficar a boa altura do leito do rio várias vezes os troncos foram arrastados nas cheias, obrigando seu Joia a refazer a ponte.
Ponte sobre o Pati.
Chegamos à casa de apoio por volta de 14 horas. Bate papo agradável com seu Joia e sua esposa, Dona Leu. Avisamos que íamos para a Toca do Guariba pernoitar, uma hora e meia de caminhada rumo sul, descendo o Pati. No dia seguinte subiríamos o cânion do Guariba até a cachoeira de mesmo nome.
O Guariba é um cânion lateral no Pati de Baixo, muito selvagem, pouquíssimo frequentado, fora dos roteiros tradicionais da Chapada. Seu Joia mostrou um vídeo feito por um grupo que mostrava um bando de Barbados (Guaribas), macaco de porte médio, na mata que iríamos percorrer, razão do nome do cânion.
Ofereceu café e bananas maduras. Pegamos o pão que encomendamos a Dona Leu.
Saímos um pouco tarde, 15:30. A mata sombreava a trilha. No nosso lado esquerdo o rio Pati fluía. Vistas bonitas para o paredão no lado oposto.
Seguíamos tranquilos até eu quase pisar na cobra, conforme narrado acima.
A chegada na toca do Guariba demorou mais do que pensava, por volta de 17 horas. Pouco tempo para armar o acampamento antes de escurecer.
Mas o avarandado formado pela toca permitia montar a tenda só com o teto(inner tent), sem o sobreteto. Optei por bivacar entre as três barracas dos meus parceiros. Tomamos um banho rápido no rio Pati.
Frank acendeu umas velas na toca. Ficou bonito que só. Falamos que ele era devoto de N. Sra. Aparecida.
As velas sempre afastam vida selvagem indesejada além da luz bonita e romântica (lá ele kkkkk). O Frank deve ter acendido porque além do dia de N.Sra Aparecida era dia do agrônomo, profissão dele.
Abaixo, bela foto do Frank. meu bivaque estava entre as tendas.
Lé fez uma janta a partir de verduras e legumes, usando diversos condimentos. Um luxo.
Fomos dormir cedo. O dia seguinte seria bem puxado.
13/10 - Dia de pula pedra
Saímos as 8:30. Para diminuir o peso, parte da comida deixamos escondida na toca pois voltaríamos para lá no dia seguinte. Eu levei tudo porque estava com minha mochila bem leve (6,5 kg de peso base).
O Guariba estava com pouca água, nada comparado a agosto de 2016 (ver relato “Boca da onça – o cânion do Guariba e o Pati esquecido”) quando pegamos o rio bem cheio, o que impediu-nos de alcançar o fundo do cânion e a cachoeira, devido a progressão muito lenta.
Embora não estivesse cheio, ainda assim não dava pé em trechos dos poções onde o cânion afunilava e não tinha margem de rio para andar. Estes trechos estavam com pouca luminosidade, o topo do desfiladeiro era tão estreito que as copas das árvores faziam um dossel sobre o cânion30 metros acima.
Eu e Frank estávamos com mochilas estanques. Chegávamos a flutuar na hora que perdíamos o pé.William e Lé tinham que levar as mochilas equilibradas na cabeça, segurando nas paredes do cânion. Frank voltou para ajudá-los enquanto eu vadeava mais a frente procurando os pontos mais rasos.
O Lé é um monstro. Conseguiu equilibrar uma mochila pesadíssima na cabeça. Ele veio direto de uma guiada de 7 dias pela Chapada. Estava com utensílios de cozinha para quatro pessoas.
Transpomos a área dos poções. Não há trilha e dificilmente andávamos pelas margens devido a pedras e vegetação. O caminho era pelo leito do rio, pulando pedra.Considero este tipo de trekking um dos mais difíceis e perigosos. Um escorregão pode resultar numa fratura séria. Além de ser cansativo. Tínhamos que pensar a todo momento qual o caminho a seguir, a linha de menor resistência.
Mas o menor volume de água no rio facilitou. Alguns trechos intransponíveis em 2017 agora permitiam passagem, evitando malabarismos que tivemos que fazer na ocasião.
Chegamos num ponto em que o rio engrunou. Passamos a percorrer um leito seco de pedras.
Por volta de 11 horas paramos numa laje de pedra sombreada. Lé abriu a mochila e começou a fazer café numa moka. Puxou um pote de doce de leite. Tinha o pão de dona leu e pasta de atum. Compartilhamos o lanche. O fundo do cânion não estava longe.
Barriga cheia, descansados, fomos para a última etapa. O cânion estreitava, ladeado por paredões entre 250 - 400 metros. Tínhamos que pular pedras grandes que despencaram em tempos beeeem remotos (assim esperávamos kkkkk) dos paredões.
Paredões altíssimos.
Logo antes do final do cânion uma subida forte entre as rochas. Mas cadê a cachoeira? Descobrimos que ela estava seca. A encosta tinha água escorrendo e o poção inferiorestava seco. Mas os sinais nas rochas do paredão indicavam que ela descia ali. Era uma cachoeira que caia de 300 metros de altura em época não seca.
Cachu seca, mas olha a altura!
Se a seca facilitou nosso avanço no cânion do Guariba, em compensação tirou nossa visão desta enorme cachoeira em plena exuberância.
William avançou mais um pouco, subindo bem até o final do cânion e descobriu duas pequenas cachoeiras com água, mas a água que caia quase imediatamente engrunava. O vídeo anexo feito por ele mostra estas cachoeirinhas.
Depois das fotos descemos o rio até um ponto onde a água desengrunava (ressurgia de seu caminho subterrâneo). Procuramos a partir dali um ponto para acampar. Já era em torno de 15 horas.
Achamos um lajeado bonito as margens do rio. Era um ponto suicida para um acampamento em época de chuvas, mas a previsão era de tempo bom e nada indicava uma mudança.
William sentado na laje onde acamparíamos.
Em todo caso decidimos deixar apenas as barracas, o meu saco de bivaque e sacos de dormir no lajeado. O restante ficaria dentro das mochilas durante a noite, num ponto elevado. Se começasse a chover bastaria corrermos para cima.
Acampamento. Aproveitei para descansar um pouco no meu bivaque.
Lugar bonito. Tendas quase tocando na água! Impensável em época de chuva.
Lé “Monstro” fez o jantar e montou sobre uma toalhinha de piquenique os talheres, pratos, xícaras e panelas com comida e café, o padrão dele quando está levando clientes. Brincamos dizendo que Lé tinha um lado feminino forte, brincou de casinha na infância.
Ele não estava guiando a gente, pois veio também para conhecer o Guariba. Mas dava para notar todas as suas qualidades como guia de grupos, além da simpatia e conhecimento que demonstrava a cada instante.
Demoramos para dormir, deitados na laje, observando o céu noturno e conversando. Fiquei bem dentro do saco de bivaque. O local era lindo, mas infelizmente tinha muito mosquito asa-caída. Uma praga, o que tem de pequeno, tem de picada dolorida.
Dormi, mas despertava volta e meia preocupado em manter a tela mosquiteiro do bivaque afastada do meu rosto, para evitar as picadas.
O Lé dormiu pouco porque as picadas do asa-caída nos tornozelos dele causaram uma alergia. É o mosquito mais chato da Chapada. Sorte que não tem em todos os lugares.
O Frank também dormiu mal porque o isolante STS dele furou. Na verdade, pareceu ser um defeito de fábrica.
14/10 – Retorno ao seu Joia
Bom café da manhã. Hora de continuar nossa volta. William “Cabrito” (pula pedra como ninguém) decidiu que hoje mesmo subiria a ladeira do Império pois tinha compromisso domingo, em Brumado, sua cidade. Eu, Lé e Frank decidimos dormir no camping do seu Joia, pois adiantaríamos o lado, reduzindo o trajeto no dia seguinte.
Fomos juntos até a Toca do Guariba. A descida do trecho que faltava dentro do cânion durou apenas duas horas. Pegamos o que escondemos e socamos nas mochilas. William se despediu de nós. Nós que ficamos, descansamos um pouco. Tomei um banho de rio.
Prosseguimos por volta de 14 horas. Eu na frente, mas olhando bem o chão e andando mais devagar. Porém a hora não era propícia para as cobras.
Antes de chegar ao seu Joia, paramos para um banho de rio, num belo poção no Pati. Ficamos pelo menos uma hora conversando dentro d’água.
Com mais 10 minutos chegamos à casa de apoio. Mostrei a foto da cobra e seu Joia logo identificou como jararaca cabeça de capanga.
Subimos para a área de camping e montamos as tendas e o meu tarp.
Lé avisou que tinha um cacaueiro atrás da casa de hóspedes carregado com cacau maduro. Trouxe um fruto e cortou-o para chuparmos a deliciosa polpa que envolve as sementes.
Casa de hóspedes do seu Joia.
Estávamos terminando a montagem dos abrigos quando notamos uma diminuição da luminosidade. Frank pegou sua lente de soldador e passamos a observar o eclipse parcial do sol. Belo espetáculo, logo antes do sol se esconder atrás das montanhas.
O chuveiro ao ar livre tem vista espetacular para o Pati de Baixo.
A noitinha após preparamos e comermos o jantar descemos para nos juntarmos aos demais hóspedes:Tâmia, Marcelo e um carioca. Marcelo, supersimpático, me conhecia dos relatos publicados no Aventure Box. Tem uma agência de rapel em Salvador.
Boa prosa acompanhada de cerveja. Seu Joia tem uma geladeira movida a gás. A janta para os hospedes que pagaram pensão completa parecia deliciosa.
Fomos dormir. A área de camping pega um bom vento. Meu saco de bivaque ficou bem ventilado porque virei o lado da cabeça (mosquiteiro) para o vento.
15/10 – Volta pela ladeira do Império.
Acordamos com o sol nascendo. Decidimos tomar o café apenas no topo da ladeira do Império, no Arrochador. Marcelo, Tâmia e o carioca iriam conosco. Subir cedo para não pegar o calorão.
Tâmia, Frank, Lé e Marcelo. Ladeira do Império ao fundo.
Prestes a sair.
Seu Joia ofereceu café e bolo, apesar de só termos pago o camping. Após a despedida cruzamos o Pati. Duas horas depois estávamos no Arrochador, onde Lé fez um café para todos.
Quase no topo do Império. Cansado.
A descida foi tranquila. Pegamos o calorão duas horas antes de chegar a Andaraí. Ao menos era descida e a mochila estava bem leve agora.
Seguimos para a sorveteria Apolo em Andaraí. Sorvetes exóticos e deliciosos. E um banho grátis no chuveiro do estabelecimento.
Despedida. O Lé “Monstro” voltaria para Rio de Contas. Eu e Frank num carro para Salvador. Muito cansados, mas felizes por termos conhecido um canto belíssimo e quase intocado da Chapada.
Agradecimentos e recomendações
O Lé “Monstro” é um guia excelente. Frank e família já foram guiados por ele e viraram fãs. Embora não estivesse nos guiando (foi pela aventura, pela exploração) percebíamos o profissionalismo, educação e competência dele, além de sua alegria e visão de mundo.
Foi muito boa esta trilha com Lé Monstro, William Cabrito e Frank Genealogista. Como disse um amigo do Bushcraft BA: só fera feroz!
Seu Joia é o mais gentil e agradável dos patizeiros (dono de casa de apoio do Pati). Recebe muito bem e gosta de uma boa prosa com os hóspedes e visitantes. Ele não tem a visão comercial de muita gente no Pati, que vê cifrão ao invés de visitantes.
O cânion do Guariba exige cuidado e experiência. Não há trilha dentro dele. Na época de chuvas (novembro a junho) não vale o risco de subir o cânion. Sempre olhe a previsão do tempo antes de ir. Eu não vou solo num lugar destes.
Use tênis de corrida de trilha auto drenante ou sandálias para trekking, ambos com bom grip. Não recomendo o uso de botas. Tem trechos do rio que é melhor seguir calçado na água, se ele for drenante não representa problema.
Leve repelente se for dormir dentro do Guariba. O asa-caída merece a fama que tem. Dê preferência a um que também sirva para repelir carrapatos.
Corda e facão. Não chegamos a usar, mas é bom estar a mão.
A área é quase intocada. Não vimos lixo. O leave no trace é essencial em lugares como este.
Seu Joia oferece serviço de transporte de mula até Andaraí (R$ 300 cada dia/mula). Isto é importante no caso de alguém se acidentar e não poder se locomover. Entre seu Joia e Andaraí são 4 a 6 horas a pé.
Ao invés de voltar pela ladeira do Império é possível descer o Pati até sua foz com o rio Paraguaçu e daí seguir pela margem do Paraguaçu até a Toca do Morcego, na estrada, perto de Andaraí. Mas é um dia completo de caminhada e sem trilha até o Paraguaçu. O Pati de baixo, a partir do seu Joia, é selvagem, sem habitações.
Relato dedicado a seu Joia, dona Leu e Lé.
Seu Joia e Dona Leu.
Grande Lé.
Show.
Muito bom Peter!!! Precioso relato, com dicas e recomendações valiosas ao final! Parabéns pela iniciativa de mais uma vez retornar a este recanto quase intocado das cercanias do Vale do pati!
Que beleza de aventura. Ter a Chapada Diamantina no quintal de casa é um privilégio para poucos, e você explora isso como poucos. Belo relato.
Muito bom Peter. Essa trilha é uma que estão na minha lista algum tempo. Que bom ter relatado com as dicas preciosas. Será uma das minhas referências 👏
Que legal esse compartilhar!! Tive lá no guariba ano passado com muita chuva .. sensacional recordar c seu relato!! E Lé já foi meu guia lá em Rio de Contas .. só alegria, sempre com um sorriso no rosto!! :)
Muuiito massa!!! Adorei a aventura!! Foi muito legal o encontro e fazer esse retorno com esse grupo!! Valeu a prosa, valeu a troca de experiência!!! Foi 10!!! Até uma próxima 😉
Como sempre, um relato incrível! O guariba com certeza guarda lindas cachoeiras, quero ter a oportunidade de conhecer em breve com água. Fiquei muito feliz por nosso encontro de forma não programada, Peter! Um forte abraço.