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Rafael Damiati 02/02/2021 13:31
    Travessia Cassino x Chuí | Extremo Sul | Rio Grande/RS

    Travessia Cassino x Chuí | Extremo Sul | Rio Grande/RS

    Solando o Caminho dos Faróis em novembro de 2020

    Trekking Longa Distância

    A travessia Cassino Chuí certamente está entre as clássicas do Brasil. A proposta de caminhar pela areia de uma praia “plana” parece um tanto quanto fácil e convidativa. No entanto, as características geográficas da região dão um toque de dificuldade especial na empreitada. Se você fizer uma busca pela internet, não será difícil encontrar os adjetivos “desértica”, “inóspita”, “isolada” e “remota” para descrevê-la. Apesar de hoje achar que, com o devido planejamento, alguns desses adjetivos são um pouco mais sobre fama, é uma jornada a ser feita com a seriedade que um ambiente remoto exige.

    Neste relato, meu primeiro feito exclusivamente para o AventureBox, falo sobre o planejamento e trago um pouco da experiência vivida naquelas terras, no final de novembro de 2020.

    O início de tudo...

    Que 2020 não foi um ano fácil, todos sabemos. Em meio a tantas mudanças, adaptações e privações, eu precisava “gastar” minhas férias com algo que se adequasse ao contexto de restrições e ao mesmo tempo suprisse a vontade reprimida de estar ao ar livre. Vi na Cassino x Chuí a oportunidade ideal: não existia restrições de acesso à Unidades de Conservação, não seria ambiente com aglomerações e havia tempo o suficiente para planejar e executar a caminhada durante a temporada. Cenário perfeito para minha primeira travessia solo, não?

    Considerações sobre o planejamento

    Sendo bastante honesto, não recomendo que essa travessia seja a primeira experiência autossuficiente para quem tem pouca experiência com caminhadas longas. Além de todo o fator psicológico que envolve a empreitada, convém ter pleno domínio das técnicas envolvidas. Para aqueles que estão pensando em encarar a jornada, pense se tem os equipamentos adequados (mochila, calçado, abrigos, cozinha, vestuário) e se realmente tem o domínio dos ajustes corretos. Uma mochila mal ajustada e/ou um calçado não adequado pode comprometer facilmente o sucesso da empreitada.

    Nessa travessia a orientação não é um problema, considerando que basta seguir com a água do mar sempre ao seu lado, até o fim. Mas considere que é possível errar facilmente o planejamento de reabastecimento de água, principalmente no trecho no qual os arroios ficam mais esparsos. Você tem, e sabe usar, um GPS ou ao menos um aplicativo de localização no celular? E nesse último caso, qual a sua estratégia para garantir energia para o dispositivo até o fim da travessia?

    Na ocasião do planejamento me fiz essas mesmas perguntas e julguei que estaria apto a encarar o desafio. Ainda assim, considerei outras reflexões fundamentais para essa travessia solo:

    1. Somente existe estrutura urbana nos quilômetros iniciais e finais da travessia. Dessa forma, caminhar solo significa ter suprimentos o suficiente para os 230 km de travessia. O reabastecimento de água pode ser feito nos arroios ao longo do caminho. Eu deveria, então, carregar todo o peso de comida, cozinha e acampamento. Você tem equipamentos leves o suficiente para não ficar sobrecarregado?
    2. Considerando que a área é remota, eu não estava disposto a enfrentar o risco de consumir a água sem algum tipo de tratamento e colocar a jornada em risco. Na minha gestão de riscos, itens para o tratamento de água foram prioritários, mesmo diante dos relatos atestando a boa qualidade da água na região. Você considera importante o tratamento de água em suas atividades ao ar livre?
    3. A região é área de fenômenos meteorológicos intensos. Após uma análise climática, confirmei que a melhor época para a realização da travessia seria da metade para o fim da primavera. Os ventos predominantes seriam favoráveis, as temperaturas não estariam tão frias quanto no inverno nem tão quentes quanto no verão, o volume de precipitação tenderia a ser baixo e a ocorrência de tempestades de verão mais improvável. Ainda assim, no caso de encarar uma chuva, deveria ter cuidado com a possibilidade das descargas elétricas, por se tratar de ampla área descampada. Aqui vale uma ressalva. Comportamento climático (passado) não é garantia de tempo bom (presente ou futuro)! Mas a estatística tende a jogar a favor de quem faz escolhas mais conscientes nesse aspecto. Como anda o seu conhecimento sobre meteorologia?
    4. Considerando os pontos anteriores e a decisão de fazer solo, condicionei minha ida ao uso de um rastreador por satélites, para o fortuito caso de uma emergência. Eu não tenho o equipamento, mas sei que quem tem amigos, tem tudo: obrigado Clube Outdoor! Ah, sinal de celular só no início e fim da travessia (mas vou compartilhar um segredo: dizem que aquela operadora que funciona melhor no interior pega quando você sobe nas dunas, em parte considerável do trajeto. Eu não testei e é melhor você não contar com isso).

    Espero que estas reflexões sirvam para o SEU planejamento, mas recomendo fortemente que você procure outras versões e visões. Quer uma forcinha?

    Cassino Chuí por Marina Brum

    Cassino Chuí por Douglas Dessotti

    Cassino Chuí por Ronaldo Morgado Segundo

    Cassino Chuí por Alberto Farber

    Cassino Chuí por Edson Maia

    Chuí Cassino no Podcast Extremos com Thiago Waldhelm

    Caso não se sinta preparado, existem empresas que oferecem o serviço de apoio aos caminhantes. Pode ser uma boa pedida!

    A travessia!

    Dia 1 – 21/11/2020 - 37 km

    Comecei a caminhada um dia antes dos planejado. Eu iria usar este dia para comprar alguns alimentos frescos no mercado e descansar, mas ao ver que as condições meteorológicas estavam excelentes, resolvi agilizar o processo e começar no sábado mesmo. Passei então no mercado, comprei algumas bananas e o queijo que estava querendo e me desloquei do centro de Rio Grande para os Molhes da Barra. No caminho, o primeiro aprendizado. Pedi um carro pelo aplicativo e minha mochila logo chamou a atenção do motorista.

    Fomos conversando sobre minha empreitada e ele foi se abrindo, dividindo o difícil momento pessoal que estava enfrentando e como fazer aquela corrida comigo e saber do meu propósito o inspirava. Cheguei no ponto inicial arrepiado com o que tinha acabado de acontecer e ainda mais motivado a fazer da minha empreitada um sucesso.

    Pisei na areia, liguei o rastreador, disparei as últimas mensagens, tirei fotos do início e, às 09:30h, dei o primeiro passo. Afinal, é assim que se começam as grandes façanhas, não é mesmo?

    Registrando o início da travessia, nos Molhes da Barra de Rio Grande

    Após cerca de 2 horas de caminhada passei pela parte urbana do Cassino. Em meio ao agito da praia em um sábado ensolarado, encontrei com três caminhantes finalizando a travessia no sentido contrário. Eles me disseram haver outros quatro no mesmo sentido que eu, porém um dia à frente. Como a grande maioria dos que fazem a travessia, fui abordado por diversas pessoas querendo saber de onde vinha, para onde iria e o que comia! rs

    Estiquei a caminhada até às 19:00, considerando que o tempo estava bom e havia boa luminosidade, para chegar no local do meu primeiro acampamento.

    Dia 2 – 22/11/2020 - 25,5 km

    Eu já imaginava que o segundo dia seria um pouco mais arrastado, considerando a resposta do corpo pelo primeiro dia caminhando distante e com um peso razoável. Minha mochila estava com 21kg, sem água, no início da empreitada. Isso explica a diferença de quase 12km a menos em relação ao dia anterior. Mas foi uma caminhada feliz, novamente com tempo bom e muita motivação por estar lá percorrendo a maior faixa de areia do mundo (não entrarei na polêmica da maior praia por aqui...hehe).

    Nesse segundo dia o movimento de pessoas já era menor, pela distância do Cassino, mas ainda assim encontrei com muitos carros de pescadores aproveitando o domingo. Resolvi acampar próximo a um arroio, um pouco antes do farol Sarita, quando o corpo já pedia uma trégua.

    Da janela lateral

    Dia 3 – 23/11/2020 - 28 km

    Alcancei o Sarita logo no início do terceiro dia. Nesse dia também tive um pouco do gostinho de estar por algumas horas sozinho, sem nenhum sinal de atividade humana para qualquer direção que olhasse. Bom, a realidade não era exatamente assim. Eu não posso dizer que houve isolamento total em nenhum ponto da travessia, considerando que sempre existiam marcas de pneus de carros, objetos estranhos na areia, pegadas de outras pessoas ou mesmo mudanças na paisagem para trás das dunas. Nesse dia, por exemplo, uma floresta de pinus estava emoldurando a paisagem continental. Essa mesma floresta é responsável por uma grande circulação de veículos (caminhões, tratores, caminhonetes) dos que ali trabalham.

    Mas pude experimentar um turbilhão de pensamentos sobre estar sozinho em um lugar remoto. A verdade é que eu tinha a sensação muito forte de satisfação, por estar onde eu queria, na data que queria com a companhia que eu queria. Quando me perguntam se senti medo, a resposta categórica é: não! Meu maior medo era inventar qualquer desculpa para não colocar esse projeto em prática, depois de tantos meses planejando, e ficar imaginando como teria sido.

    Por outro lado, o tempo solo evidenciou o certo grau de ansiedade que me acompanha. Seja por me imaginar na chegada antes de percorrer cada passo que ainda estava por vir ou quando via as pegadas frescas indo na mesma direção, mas sem conseguir visualizar absolutamente ninguém. A travessia é um excelente treinamento mental para atividades de longo curso e, por que não, para alta montanha. Exige paciência, tranquilidade e foco em se manter no propósito. As dores chegam, às vezes passam e outras vezes não. Os ventos ora sopram contra, ora a favor e, ocasionalmente, nem sopram. O tempo pode estar mais aberto ou cinzento, mas você simplesmente continua no propóstio.

    O processo não pode ser só dolorido. Se embarcar nessa jornada, DIVIRTA-SE!

    Dia 4 – 24/11/2020 - 32,5 km

    Acordei cedo e comecei o quarto dia em um ritmo bem firme de caminhada. Após 40 minutos, tive uma surpresa. Avistei, bem distante, três pontinhos se movimentando e saindo das dunas em direção à parte firme da areia. Algumas horas depois acabei alcançando as três gurias que seriam a minha companhia até o final da travessia.

    Nos dias seguintes, elas relataram a percepção da minha aproximação por outro ângulo. "Tem alguém vindo em nossa direção. Parece estar de bike. Está muito devagar para alguém pedalando, mas está muito rápido para alguém caminhando". Nosso encontro foi alguns quilômetros antes de chegar ao farol Verga.

    Segundo elas, meu aprendizado certamente foi "antes mal acompanhado do que só"

    A referência para o acampamento neste dia era o fim da floresta de pinus, que se recusava a acabar. Mas sabíamos que haveria um bom arroio, com espaço para montar as barracas em gramado e protegido do vento pela vegetação. E até lá fomos! Na média, o tempo diário de atividade girou por volta de 9 horas, sem descontar as paradas para descanso e alimentação.

    Dia 5 – 25/11/2020 - 13,5 km

    Esse dia chama a atenção pela pequena distância percorrida. Fato é que, no dia anterior, junto com minhas novas companheiras gaúchas, surgiram minhas primeiras bolhas. Como eu tinha dias de sobra no planejamento da viagem, não hesitei em fazer um dia mais curto e descansar melhor para o trecho seguinte. Isso porque sabíamos que, depois do farol do Albardão, teríamos um dia longo e sem abastecimento de água. Optamos, portanto, em fazer uma caminhada mais curta e curtir um período de descanso no meio da travessia.

    O farol do Albardão não estava aberto para receber pessoas por conta da pandemia, mas os militares que lá ficam costumam ser bastante hospitaleiros com quem está fazendo a travessia.

    O famoso Farol do Albardão

    Dia 6 – 26/11/2020 - 31 km

    Do farol do Albardão até a casa do Ricardo, nosso ponto de pernoite nesse sexto dia, seriam mais de 30 km. E, pela primeira vez, com vento contra! Foi bom para ter o gostinho de caminhar com o famoso vento sul. Não era o Minuano, mas atrapalhou bastante o desempenho da caminhada. Chegamos esgotados na casa do Ricardo, que nos recebeu muito bem e compartilhou uma sopa no jantar.

    O Ricardo é figura já conhecida dos caminhantes. Ele nos contou sua história e também mostrou como o avanço das dunas o obrigou a começar a construção de uma nova casa, em área mais abrigada. Lá conseguimos ficar em um espaço coberto e abrigado do vento, um verdadeiro luxo depois das noites com vento e areia fina entrando por todos os cantos.

    Dunas avançando terreno, devastando a vegetação e chegando na casa do Ricardo

    Dia 7 – 27/11/2020 - 23,5 km

    Saímos da casa do Ricardo já esperando os temidos concheiros da travessia. Não demorou muito a aparecer aquele amontoado grande de conchas, que se extende por muitos quilômetros. Mas não podemos reclamar, pois a maré baixa nos permitiu percorrer boa parte do trajeto em bom terreno. Sobre as conchas a caminahda fica crocante e, às vezes, mais trabalhosa. Em alguns trechos as conchas já estão tão trituradas que se tornam areia fofa, tornando a caminhada bem mais desgastante.

    Conforme seguiamos em direção ao sul, barracos simples de pescadores iam surgindo. Em determinado ponto, decidimos procurar uma área para acampar. Ainda era cedo, mas estávamos satisfeitos com a caminhada naquele dia. Nós paramos bem ao lado de um barraco e perguntamos se não poderíamos acampar nos fundos, nos protegendo do vento e garantindo água para o reabastecimento. Mas foi muito melhor do que isso. Conseguimos um abrigo de luxo: um barraco cheio de material de pesca e alguns colchões. E o luxo não parou por aí...

    Caminhando sobre concheiros

    Além da carona para conhecer a Lagoa Mangueira, que fica a cerca de 2km para trás das dunas, nossos amigos pescadores nos convidaram para uma bela peixada no jantar. Eu realmente não contava com nada disso no planejamento, mas confesso que tamanha hospitalidade caiu muito bem.

    Dia 8 – 28/11/2020 - 35,5 km

    O último dia da travessia não foi ensolarado, mas o vento nos empurrou para o lado certo. E quer coisa melhor do que isso? Apesar de ter sido o segundo dia de maior distância percorrida, estavamos muito motivados a finalizar a empreitada. Então partimos cedo para nosso dever e, por volta do meio dia, já estávamos no distrito de Hermenegildo.

    Lá a coisa já tinha uma cara de fim. Nos demos o prazer de almoçar com calma e tomar umas cervejas antes de partir para os 12 km finais.

    Sueña, actua, realiza!

    Já concluída a travessia, ao subir nos molhes da Barra do Chuí, avistei a continuação da praia em território uruguaio. Naquele momento bateu uma vontade de simplesmente atravessar o arroio e continuar caminhando sentido sul. Nas minhas muitas reflexões, pensei que nada mudaria se tivesse que continuar a jornada por mais uma semana ou um mês. Claro que não é tão simples assim, mas ficou a lição de que esses desafios são sempre possíveis com o devido planejamento.

    Finalmente, é difícil traduzir em palavras todos os aprendizados de uma jornada como esta. Tenho exercitado isso ao relatar a experiência por aqui e também no boletim do Centro Excursionista Brasileiro. Se quiser saber um pouco mais da minha experiência nos campos neutrais, aguarde o próximo boletim do CEB. Prometo compartilhar por aqui ;)

    Rafael Damiati
    Rafael Damiati

    Publicado em 02/02/2021 13:31

    Realizada de 21/11/2020 até 28/11/2020

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    25 Comentários
    Rafael Damiati 04/02/2021 20:55

    Obrigado, Reynaldo! Com planejamento e vontade as caminhadas longas se transformam em realidade plausível. E cheio de ânimo fico eu, em conseguir estimular outros contando minha experiência. Abraço!

    Muito show, Damiati!! Eis aqui um dos curiosos que te encontraram na arrancada querendo saber detalhes da aventura que se iniciava hehehe Sem dúvida, tu será um dos grandes motivos que farão eu transformar o sonho da travessia a pé em realidade. Espero que num futuro próximo! Abração!

    Rafael Damiati 09/02/2021 10:57

    Com certeza, Anderson! Você já está no caminho de concretizar esse feito. E quem sabe não pedalamos juntos nela também. Grande abraço!

    Alexandre Fialho 15/02/2021 05:50

    O Nestor Freire do Projeto Giraventura fez a travessia de bike mais ou menos na mesma epoca que você completando a viagem dele que começou no Oiapoque.

    Rafael Damiati 16/02/2021 15:15

    Que maneiro, Fialho! Quando comecei a pensar em fazer de bike, logo pensei em você. Partiu?

    Alexandre Fialho 19/02/2021 07:08

    2022 tá ok

    Thiago Char 20/02/2021 22:52

    Muito bom Rafael, parabéns, e muito obrigado por compartilhar sua experiência... vou começar essa travessia em solo dia 28/02 e vai me ajudar muito oq vc compartilhou. Abraço e boas trilhas!!

    Rafael Damiati 21/02/2021 21:01

    Aproveite a grande jornada que está por vir, Thiago. Não deixe de trazer sua experiência aqui na plataforma. Abraço e bons ventos!

    Rafael Damiati

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